Português: Almada Negreiros
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sábado, 17 de fevereiro de 2024

Análise do quadro "Heterónimos", de Almada Negreiros


Almada Negreiros (1893-1970). Heterónimos. 1958. Mural Fac. Letras de Lisboa


    A arte, dando voz a Campos, é “a expressão de um pensamento através de uma emoção ou, em outras palavras, de uma verdade geral através de uma mentira particular.” (cit. por Coelho, 1949: 162). Sob esta forma de arte dramatúrgica representada em gente, o traço de Almada percorre os corpos de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos na sua própria linguagem, integrando-os numa estética que se classifica de intemporal. Num estilo único, Almada, não mais dramaturgo do que Pessoa ele mesmo, teatraliza o drama em gente e, na reprodução pictórica em causa, não se limita a apresentar o que este triângulo de poetas foi ou poderia ter sido. Almada vestiu as almas reais ao corporizar a totalidade da mentira dos corpos. Almada, pintor, dramaturgo despersonalizado, criou imagens como extensões das almas: da deles, de Pessoa, da sua. E o drama em gente foi interpretado, decifrado, transfigurado, metamorfoseado, representado, dramatizado, permanecendo, no final, os fragmentos daquilo que cada um deles foi: “Voo outro – eis tudo.” (Pessoa, 1950: 17).
Os “eus” que revelam a multilateralidade pessoana dificultam ao pintor a tarefa da sua representação na obra e, consequentemente, a de quem tenta descortinar o seu impossível retrato. O negro absoluto em que, pelas suas próprias mãos, envolveu as máscaras involuntárias (?) do seu fingimento, torna-as incoloríveis, se assim as podemos dizer, incompatíveis com qualquer representação pictórica, em suma, invisíveis de tão divisíveis que são. Contudo, os pintores continuarão pintando, perdendo-se, tentando encontrar os possíveis corpos, ajustando cores, moldando rostos a máscaras.
Almada Negreiros, que parece situar os heterónimos pessoanos em três planos distintos nesta representação, serve-se de uma linha quase contínua, que se move, simultaneamente, no sentido de uma abstração, de uma simplificação e de uma (ou várias) incerteza premente. Sabemos tratar-se de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, mas teremos iguais convicções que nos permitam identificá-los, à primeira vista, como sendo de facto quem aparentam ser?
A primeira figura da esquerda da representação, facilmente identificável com Alberto Caeiro, aparece-nos delineada melancolicamente por um tom azul dramático, quase trágico. Ligeiramente inclinado para trás, Caeiro é, das três personagens, a mais transparente. As linhas arredondadas que traçam o seu ténue volume demarcam, curiosamente, a sensação ambígua de quem já não está, daquele cuja vida “não pode narrar-se pois que não há nela de que narrar. Seus poemas são o que houve nele de vida” (idem, 1999: 329). E assim parece ser.
O poeta bucólico “era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era.” (idem, 1950: 26). É realmente frágil que Almada o pinta. Deste modo, “O facto curioso em Alberto Caeiro é que ele surge, aparentemente do nada e mais completamente do nada do que qualquer outro poeta.” (idem, 1999: 378). Surge do nada e, na voz do próprio, não passa de “um andaime” (ibidem: 378). Assim sendo, Caeiro é como um andaime vindo do nada feito para chegar a um outro local que não sabemos qual é. Um nada que leva a lado nenhum, ao desconhecido. Um nada que leva ao nada. E é deste modo que Caeiro irrompe da pintura como quem não suporta a ideia da própria existência. Caracterizado numa pose distorcida, articula-se com os vários sentidos que as linhas nos abrem, criando, dentro de um corpo, os rostos possíveis. O seu olhar, poderoso veículo de comunicação, é de um vazio profundamente assustador, tal como a expressão do seu rosto, mas, simultaneamente, os seus olhos são “azuis de criança que não têm medo” (idem, 1950: 27), como Álvaro de Campos de outro modo não os poderia revelar. O cabelo, de “um louro sem cor” (ibidem: 26) aparece-nos totalmente apartado para trás. As próprias linhas paralelas e secas que desenham o cabelo nada mais fazem senão corroborar esta duplicidade, ou multiplicidade, que acaba por caracterizá-lo: a criança que não teme e o adulto que não faz senão temer.
O braço esquerdo, posicionado ao longo do corpo, tal como o direito, termina numa mão ligeiramente inclinada, na posição normal de passo. Como as viu Campos, “as mãos eram um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga.” (ibidem: 27). Assim as pinta Almada. Ambas as suas mãos são perfeitamente visíveis, ao contrário do que acontece com as outras duas personagens, e na mão direita segura o que aparenta ser duas folhas, transparentes, tal como ele. Talvez Almada quisesse sugerir que, tal como Caeiro não era corpo, também as páginas não o eram. Páginas vazias de cor, de linhas, de letras, de pensamentos passíveis de serem guardados, num corpo inteiramente translúcido, pronto a ser ocupado, dito, escrito, vivido, existido.
A sua silhueta encontra-se inclinada para a direita, como quem caminha em frente, já que a perna esquerda está na posição de passo. No entanto, apesar de tudo nele indicar movimento (o que é coincidente nos três), Caeiro parece estático... Ou será que se encontra realmente imóvel? E, se assim é, o que espera Caeiro? Ou quem espera Caeiro na sua inércia?
Dou a palavra a Álvaro de Campos: “A expressão da boca, a última coisa em que se reparava – como se falar fosse, para este homem, menos que existir, – era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam – flores, campos largos, águas com sol – um sorriso de existir, e não de nos falar.” (ibidem: 27). A expressão da boca é de uma complexa interpretação. Aparentemente, não se mostra, como na anterior descrição, com um sorriso, mas, pelo contrário, é vagamente triste, emotivamente penosa, como quem busca as suas feições e não as encontra. Em Caeiro, Pessoa pôs todo o seu poder de despersonalização dramática. Talvez seja isso que Caeiro procura, ou o que espera. A sua (des)personalização, a sua pessoa, ou, tão simplesmente, a ausência de sentimento que sempre buscou.
“Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos.” (ibidem: 26).
Segundo a descrição que o próprio Pessoa faz dos heterónimos Reis e Campos, numa primeira impressão, a figura que se segue à de Alberto Caeiro corresponderia a Ricardo Reis. Afirmo-o até pelo simples facto de, no bolso esquerdo do seu casaco, Almada ter colocado uma folha enrolada em si própria e nela ter escrito o nome REIS com letras quase impercetíveis, mas que estão lá e que o confirmam. Logo, porquê a hesitação em atribuir o corpo ao nome que supostamente lhe corresponde?
Na voz de Pessoa, Ricardo Reis é um pouco mais baixo e mais forte do que Alberto Caeiro. Na representação pictórica em causa, aquele a quem chamaríamos Reis, pelo nome que tem na folha do bolso esquerdo do seu casaco, aparece-nos retratado como sendo um pouco mais alto do que Caeiro e em nada mais forte do que este, o que poderia ser facilmente refutado pelo facto de Almada parecer situá-lo numa perspetiva ligeiramente dianteira. Todavia, como justificar a sua tentativa de sorriso, a gola da camisa desmazelada, o último botão do casaco aberto, o bolso direito desleixadamente cheio do “pagão por carácter em quem Pessoa colocou toda a sua disciplina mental” (ibidem: 28)? Onde se encontra Ricardo Reis para quem “quanto mais fria a poesia, mais verdadeira” (idem, 1999: 392), que procura a perfeição de uma existência que sente imperfeita? Onde se encontra Ricardo Reis neste fingimento? Em quem reconhecer Ricardo Reis neste drama em gente? Como decifrar o seu jeito nada comedido quando comparado com o da figura de um objetivismo natural e próprio cuja mala na austera mão esquerda o identifica, supostamente, como Campos? E, sobretudo, a sua postura desalinhada, descuidada até? Será que podemos, sem a ínfima dúvida, atribuir esta representação à de alguém que “sintetiza toda a sabedoria do passado, todo o património moral da tradição humanística” (idem, 1978: 14)?
De Reis diz Álvaro de Campos ter uma inspiração “estreita e densa, o seu pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real, se bem que demasiadamente virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.” (cit. por Coelho, 1949: 164). Pertencerá, deste modo, este corpo ao Reis egocêntrico que Campos descreve? Ao Reis que escreve com um purismo que o próprio Fernando Pessoa considera exagerado? A um Reis de um triste epicurismo que não procura os prazeres violentos e que, do mesmo modo, não foge às sensações dolorosas, aparentando a calma, a serenidade, a placidez, a sobriedade individualista? Poder-se-ia, numa perspetiva de traço caricatural, adequar a descrição de um homem absolutamente disciplinado, cuja obra é profundamente triste, à personagem que, rigidamente, segura na sua mão esquerda a mala de Campos? Nesta ótica, é lícito considerar que Campos albergar uma página no seu bolso esquerdo pertencente a Ricardo Reis (coincidentemente, ou não, o mesmo lado onde a mala de Campos se encontra nas mãos de um possível Reis, mascarado de monóculo e de chapéu) e Reis teria uma mala de Campos. Qual o valor de um nome numa mala, numa folha? Por que motivo Almada não vestiria Campos de Reis e Reis de Campos? Por que razão se negaria ele o prazer de ser agora o dramaturgo deste drama em gente, destas personae que figuravam, mais do que em Pessoa, ao seu lado? Não estará a solução do enigma no breve sorriso do pretenso Reis? Ou, quem sabe, confidencialmente oculto na folha que acolhe o seu nome...
Permanecem as hipóteses, as incertezas demoram-se e as personagens vão teatralizando pelas mãos do dramaturgo que as encena...
Abro um parêntesis para lembrar que, segundo Álvaro de Campos, Ricardo Reis foi aquele que se lhe definiu como abominando a mentira, porque a mentira nada mais é do que inexatidão. Dando voz ao primeiro, “Todo o Ricardo Reis – passado, presente e futuro – está nisto.” (Pessoa, 1980: 268). Inexatidão, mentira, drama, teatro, ficção, engano, falácia de movimentos, de falas em atos onde as personagens, caricaturas, marionetas nas mãos do dramaturgo, agem em embuste. Ora, se assim é, como avaliaria Ricardo Reis o drama que o próprio Pessoa lhe preparou e que Almada tratou de teatralizar?
Todavia, se considerarmos que é Reis de facto a figura que se segue a Caeiro, vemos objetivamente que este se posiciona de frente na representação. É a figura central do triângulo que, contudo, se inclina para o seu mestre. De rosto voltado para a direita, num movimento rotativo para onde se encontra Caeiro, Reis parece buscar nele o equilíbrio que Campos procurava, a mais pura realidade, a intuição sobre-humana que lhe era natural. Nas palavras do próprio, “Eu era como o cego de nascença, em que há porém a possibilidade de ver; e o meu conhecimento com “O Guardador de Rebanhos” foi a mão do cirurgião que me abriu, com os olhos, a vista.” (idem, 1999: 366), assim os seus olhos parecem, numa demanda incessante, procurar em Caeiro a verdadeira sapiência que o liberte da cegueira em que se encontrava mergulhado.
Os três bolsos do casaco de Reis encontram-se repletos, talvez de corpos que, ocultos, se tornam indefiníveis. Objetos ocultos, outros visíveis que possivelmente contêm ocultos em si. A folha que Almada colocou no seu bolso esquerdo é, no mínimo, enigmática. A obscuridade que transmite o envolvimento em si própria faz-nos, se não mais, imaginar o que esconderá o lado encoberto da folha. Uma folha de Reis que partilha a similaridade com a da mão direita de Caeiro, mas que se apresenta como tudo menos transparente. A linha do bolso esquerdo de Reis fá-lo absolutamente redondo, descuidadamente cheio. O que ocultará? Quanto ao bolso superior, nele encontramos claramente uma caneta (possivelmente a do ortónimo) e aquilo que aparenta ser um lenço desalinhado, em harmonia com o bolso do casaco de quem o recolheu.
De perna direita à frente, cruzada sobre a esquerda, Reis sugere movimento, mas que, tal como em Caeiro, não pode ser absolutamente atestado. O braço direito, que em Caeiro segura páginas de nada, em Reis encontra-se fletido. O mesmo gesto, pelo mesmo braço, é partilhado por quem segura a mala de Campos; contudo, se em Reis o membro se esconde atrás das costas para uma mão vir segurar inesperadamente o outro braço (braço este que literalmente expõe uma larga e estranha mão de palma aberta virada para a frente, como que a revelar que não pertence a este corpo), em Campos o braço flete-se sobre o peito e é a mão que se encobre, vibrando, silenciosamente. Braço fletido com mão encoberta, como que a esconder-se do porte rígido que a sustém, a mão de Campos abriga-se entre os dois últimos botões do casaco, atribuindo a ordem ao corpo.
Casaco desabotoado no último botão, curiosamente tal como em Caeiro, gola de camisa descomposta, num corpo tendente a curvar-se que esconde um braço atrás das costas, que cruza uma perna em possível movimento e que inclina um rosto em busca, uma cara de Reis de cabelo liso e apartado ao lado pertencente a Campos, num olhar estranhamente impertinente, obscuro, como o braço, o bolso, a perna, o próprio Reis que Almada Negreiros retratou, fantasiou, dramatizou.
Álvaro de Campos, que surge a Pessoa em derivação oposta à de Reis, é a figura que se encontra no extremo oposto do triângulo, em oposição a Caeiro, o que não deixa de ser curioso. Campos aparece- -nos, tal como as outras personagens, em posição clara de movimento, se bem que, na representação, a aparência seja, de facto, mais realista comparativamente às outras, mesmo porque Álvaro de Campos parece vir ou ir de viagem devido à mala que segura na mão esquerda, facto que o pode situar talvez pela altura da morte de Caeiro, quando se encontrava em Inglaterra, já que afirma ter sido “uma das angústias da minha vida (...) que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele.” (idem, 1980: 272).
Descrito por Pessoa como o mais alto dos três, Álvaro de Campos surge-nos numa postura absolutamente retilínea, alinhada, austera, contrariamente ao Campos tendente a curvar-se que o ortónimo nos apresenta. Campos, “entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português” (idem, 1950: 26), não surge de cabelo “liso e normalmente apartado ao lado” (ibidem: 26), mas com um chapéu que lho encobre e que parece pertencer a Pessoa ele mesmo, aliás, tal como outros traços fisionómicos da personagem em si: “mito que sempre contempla Fernando Pessoa em travesti de passeio, óculos, chapéu, laço, gabardina, como as fotografias e os retratos que o fixaram nos últimos anos da sua vida.” (Stegagno-Picchio, 1988: 66).
O monóculo erudito que Pessoa lhe colocou, sim, está lá, talvez como o único objeto que realmente seja de Campos, ou, quem sabe, como nada mais do que um artifício entre tantos outros.
Álvaro de Campos, que na sua obra isolou o lado emotivo, “a que chamou «sensacionista», e que (...) produziu diversas composições, em geral de índole escandalosa e irritante” (Pessoa, 1968: 41), surge-nos aqui como uma personagem num porte absolutamente severo, clássico e regrado, um autêntico Reis. “E Reis nota em Campos a falta de uma disciplina, daquele domínio da emoção que faz a superioridade da poesia em relação à prosa.” (Coelho, 1949: 164): onde se encontra nesta personagem a rebeldia, onde ressalta a falta de domínio? Se “Pessoa isolou em Campos a sua impulsividade, os seus nervos; as impressões do dia-a-dia sensabor, a vontade lassa de as transmitir nuamente ao papel, sem refinamento estético.” (ibidem: 193), em que aspeto fisionómico transparece o ímpeto no filho indisciplinado da sensação? O ritualista em excesso, onde se encontra? E, se “Campos é o Pessoa que, pela imaginação, se mexe convulsivamente, raivosamente, com a força dos seus nervos, não uma força calma e duradoura” (ibidem: 192), onde está o extravasar de emoção de Álvaro de Campos? A inquietação metafísica com que Fernando Pessoa o concebeu? Onde se vê Álvaro de Campos neste corpo?
Interpretando-o como aquele cuja mala transporta o seu nome, em Campos as linhas do rosto são absolutamente reais, definidas até às formas mais simples do mais fino traço. Linhas retas que se alongam num traço contínuo da sobrancelha ao nariz, unindo os dois lados da face, linhas que contornam todo o seu corpo e temporariamente o retesam, são percebidas pela nossa memória como elevando-lhe em linha reta a perna direita (não ligeiramente fletida como em Reis, ou em Caeiro no caso da perna esquerda) num movimento ritmado, como quem caminha a largos passos em direção ao desconhecido. Talvez vá ao encontro de Reis, talvez siga até Caeiro. De face virada na direção de Caeiro a quem, tal como Reis, parece obedecer subalternamente, dele sobressai um olhar tão vago como a incerteza do caminho que toma, de quem ou daquilo que busca, ligando-o ao mundo exterior de uma forma sem retorno. Verdadeiramente negros, os olhos maquinalmente esvaziados coordenam, disciplinam um corpo que lhes obedece. Detêm um poder hipnótico, de onde brota a expressão que parece tudo querer possuir e, simultaneamente, de tudo abdicar, no vazio que por trás deles se rasga. Quem se encontra por trás daquele vazio? A quem obedece o corpo de Campos?
Nesta trilogia da unidade que Almada Negreiros interpretou, não podemos encarar a ordem na qual os colocou como meramente arbitrária. Os três planos de representação pictórica de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos não se apresentam como uma opção infundada; pelo contrário, Almada aplicou neles a sua mestria de representação. Nestas “ficções do interlúdio”, como Pessoa lhes chamou, as figuras pintadas em triângulo aparecem-nos como marionetas nas suas mãos. Suas... de Almada, de Pessoa, de ambos?
Ao traçar as linhas, prossegue numa melodia em que o ritmo une os elos dispersos das personagens, ritmo este que, só por si, justifica e resume a essência do gesto criador. Alberto Caeiro, sendo “o «mestre», porque elabora a doutrina e pratica a crítica que permite a emancipação de Fernando Pessoa do «decadentismo» a que estava acorrentado” (Simões, 1980: 321); Ricardo Reis “representando uma conquista substancial no caminho de uma personalidade que fará da simulação o seu processo normal de realização literária” (ibidem: 321); e Álvaro de Campos, “o discípulo que se aproveita das liberalidades que a rebeldia do primeiro favorece” (ibidem: 321), moldam como que um triângulo sem ângulos, partes de um todo como órgãos de um corpo, onde cada um deles converge do mesmo modo para a unificação, para ressurgir num Pessoa que se desintegra, reparte continuamente em cada um deles, escravo como é da multiplicidade de si próprio.
Na pintura, linha e cor unem as suas linguagens para nos devolver as figuras e o branco que a todos pertence não esgota em si a tonalidade semelhante da cor da pele que Almada Negreiros lhes veste. A camisa branca que lhes é comum, tal como o lenço que a lapela alberga, é uma das particularidades que os reconhece como únicos, unos, numa unidade essencial que se adivinha em afinidades, identificando-os na multiplicidade como indivisíveis na sua divisibilidade: “o mundo dos heterónimos constitui de facto um universo” (Coelho, 1949: 193).
Contudo, na semelhança reside a diferença, pois o branco que partilham, tal como a transparência que o traço, que lhes é comum, delimita, não deixa de ser aqui fator de desagregação, uma vez que a cor que descuida a camisa de um suposto Reis é a mesma que, pelo contrário, coloca no bolso de Álvaro de Campos um lenço dobrado meticulosamente, brindando-nos claramente com a diversidade na individualidade. Tornam-se entes diferentes do criador, filhos mentais com qualidades herdadas, mas com a diferença de serem outros. Outros distintos, marcadamente distintos.
Nesta oscilação entre semelhanças e diferenças, movimenta-se a linguagem de Almada, numa linha que demarca mais do que confunde, acentuando a lógica de um todo, as formas estruturais de um conjunto, de onde sobressai a interioridade das personagens. A arte de ser de Caeiro, a arte de sentir de Campos e a arte de viver de Reis consubstanciam-se no pincel de Almada e metamorfoseiam-se cada qual na sua máscara. “... quanto aos figurantes que as ostentam, eles dão-nos, ao mesmo tempo, a sensação de falar cada um para seu lado e de estarem continuamente a responder uns aos outros. São como personagens de uma peça monumental, na aparência toda construída em monólogos – os quais, todavia, se articulam num diálogo ininterrupto, estabelecido a uma zona mais profunda.” (Pessoa, 1978: 15).
Esta interpretação de possível caricatura que vemos pede-nos, obriga-nos à questão: para onde se dirigem Caeiro, Campos e Reis? O que pretendem encontrar? Quem pretendem encontrar? Ou será que devíamos perguntar-nos, pelo contrário, de quem pretendem fugir? Ou, ainda, de quem pretende fugir Almada quando teatraliza a fuga dos heterónimos pessoanos? Por que motivo fugirá Almada através deles?
A diversidade da personalidade artística de Almada, expressa, neste caso, através da pintura e representação, configura uma genuína teatralidade subjacente a todo o trabalho criativo do pintor. Deste modo, as diversas personagens, socorrendo-se de máscaras distintas, percorrem, não apenas o caminho que pelo poeta foi traçado, mas dramatizam a diversidade de caminhos que a obra do pintor percorreu. Personagens estas que instituem, afinal, uma obra, uma unidade, talvez um único ato, que o intérprete, ficcionista, dramaturgo, desenhista, despersonalizando-se, põe em ação, “da luta contra a histeria pela criação literária; do esforço do intelecto para expulsar a angústia; de como, despersonalizando-se, o autor se projeta no drama que compõe.” (Coelho, 1949: 164). Ou seja, as faces de Pessoa interagem, reagem umas às outras, comunicam, dialogam para que, através delas, por elas e nelas este possa encontrar caminhos possíveis, saídas para outros universos, para os universos da sua evasão.
    Os caminhos que percorrem, quando se encontram longe de si próprios para a si poderem regressar, são caminhos de procura, de rutura, de despersonalização. “É certo que Campos, algumas vezes perplexo (...) buscou evadir-se (...) por um certo ato de vontade delirante. E Reis, por seu turno, procurou o lenitivo do epicurismo. Deste modo, em face da situação que lhes é imposta, os discípulos de Caeiro tentam diferentes caminhos: a fuga pela alienação do mundo concreto, pela embriaguês da imaginação sensorial (Campos Whitmaniano), a criação por um esforço racional de um modus vivendi que reduza ao mínimo o sofrimento (Reis), ou a simples expressão da ansiedade, da angústia, da melancolia, do tédio (Campos, Pessoa ortónimo)” (ibidem: 190).
    Em Almada, a conquista da unidade passa pela noção da desconstrução do indivíduo coletivo. “Há uma abstração do «eu» concreto em proveito de um «eu» máscara, e, em Pessoa há uma abstração do «eu» concreto em proveito de outros «eus». Assim, Pessoa evolui num teatro feito daquilo que os sonhos são feitos, enquanto Almada traz a memória e o desejo da voz sonora, da fala como ato, na página como no palco.” (Martins, 1996: 312). Consciente da alteridade dos corpos, Almada reconstitui-se em novos fundamentos, anteriores ao encontro do “eu” consigo.
No retorno não encontra dentro de si o mesmo. Personalidade outra que pertence agora à própria Terra, à parte do mundo em que cada homem está. Dando voz a Almada, “O Homem não é um homem. O Homem somos nós todos e cada um de nós.” (Lambert, 1996: 148). Do mesmo modo, o que caracteriza a vida é a procura, não o encontro. É na procura que as vozes se cruzam e tecem. Tecido e o tear fundem- -se, confundem-se, acabando, finalmente, por ser o mesmo.
Almada Negreiros tenta restituir o segredo dos corpos, propiciar-lhes a existência através do mistério da linha, na essência plástica e anímica que os envolve. Agarrando os contornos do triângulo, na mesma linha fez eclodir a luz dos corpos, dos rostos, dos olhares, em semelhanças e contrastes de ligeiros traços e curvas difusas. É a linha que sobressai, que adquire o poder extraordinário de depurar as formas, de as reduzir a uma essência, ao próprio movimento e ao drama de ao corpo se unir e apagar a fronteira entre os dois mundos, unificando-os, eternizando-os, libertando-os ao encontro dessa essência, de uma genuinidade que a palavra manifestou e que Almada (trans)figurou.
O corpo é, assim, uma linha sem começo nem fim, triangular, que sugere o infinito, materializado a partir do universo escrito que funcionou como pretexto para a eclosão, para o preenchimento das formas a que as almas pertencem. A imaginação contaminou o universo ficcionado, realizando-o, encenando-o e dando-lhe um ou diversos sentidos. Sentidos estes que se ocultam no segredo da linha e lá permanecem, onde subsiste o drama em gente que o próprio Almada, porque toda a arte é uma forma de despersonalização, simulação e, simultaneamente, de espelho, completou.

 
Autoria:
 
Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas,
II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 233-249
 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Análise da Cena 5 do Ato II de Frei Luís de Sousa


  Importância da cena no contexto da peça
 
            Esta cena repõe aparentemente a ordem e a tranquilidade na família. Como o marido já não precisa de se esconder, D. Madalena sente-se “curada” e Frei Jorge incentiva-os a usufruir da felicidade como uma dádiva divina.
            Contudo, a alusão a sexta-feira, um dia muito temido por D. Madalena, e a ausência do marido, da filha e do próprio Telmo indiciam a vulnerabilidade da personagem, que ficará confirmada com a chegada do Romeiro. O confronto, cara a cara, entre D. Madalena e o primeiro marido prepara-se.
 
 
Estado de espírito de D. Madalena

D. Madalena surge em cena restabelecida e bem-disposta, afirmando estar bem (“Estou boa já, não tenho nada…”), mas essa boa disposição é passageira, e logo parece regressar à profunda tristeza em que vive [“(Vai recair na sua tristeza).”], procurando, após as palavras de Frei Jorge, mostrar-se alegre [“(fazendo por se alegrar)”].
 
No entanto, ao saber que o marido tem de ir a Lisboa, fica inquieta e apreensiva (“A Lisboa… hoje!”). A referência àquele dia (sexta-feira), ao qual atribui uma conotação muito negativa e considera aziago, deixa-a abatida e aterrorizada[“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!”]. Após as palavras de Manuel de Sousa, parece entrar num estado de resignação [“(caindo em si) – Tens razão.”; “(fazendo por se resignar)”].
 
As razões apresentadas por D. Madalena para a filha (e, no fundo, também o marido) não ir a Lisboa são todas de cariz sentimental e exageradas. De facto, não apresenta qualquer argumento racional ou sólido; apenas se lamenta de ficar só, abandonada por todos, entregue aos seus terrores:

- o terror de ser sexta-feira (“Logo hoje este advérbio de tempo será repetido 24 vezes até ao final do ato, constituindo uma espécie de refrão -voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os constantes terrores de D. Madalena);

- o terror de ficar só, sobretudo neste dia;

- a sensação de desamparo;

- a aflição por nunca se ter separado da família (cena 7);

- as inúmeras recomendações e os inúmeros cuidados, sobretudo com Maria, revelam o seu amor maternal;

- as expansões amorosas em relação a Manuel mostram a sua paixão (ficamos mesmo com a impressão de que o amor dela é muito mais profundo, talvez por Manuel se deixar guiar mais pela razão do que pelo sentimento).

 
A preocupação, a inquietação, a apreensão e a ansiedade de D. Madalena crescem quando o marido lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia
 
 
Retrato das restantes personagens
 
Manuel de Sousa sente-se apreensivo com o estado psíquico da esposa, que, embora procure disfarçar, está cada vez mais insegura, receosa e vulnerável.

Por outro lado, perante o crescimento da preocupação e da ansiedade de D. Madalena quando lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia é aziago e muito receado por ela, enquanto homem racional, Manuel de Sousa apresenta-lhe argumentos racionais que justificam a viagem (e a da filha por arrasto). Assim, (1) explica-lhe que, por uma questão de gratidão, deverá deslocar-se à capital para acompanhar o regresso do arcebispo a Almada. Além disso, (2) acrescenta que estará de volta a casa ao anoitecer e que, posteriormente, não sairá de junto dela durante o tempo que desejar.

Além disso, mais uma vez fica patente o contraste que caracteriza o casal: Madalena é uma mulher sentimental/emotiva, perseguida pelos agouros e ligada ao passado, do qual não se liberta, com problemas de consciência, enquanto Manuel é um homem decidido e racional, íntegro e sem problemas de consciência que o atormentem.

 
Maria fica entusiasmada com a perspetiva de ir a Lisboa, mas fica desiludida e triste quando lhe dizem que não poderá ir para não deixar a mãe sozinha. A alegria e o entusiasmo regressam quando tudo se compõe de forma a permitir a sua viagem, no entanto, acaba por reconhecer, num aparte, que não consegue deixar de pensar e de se preocupar, daí que a sua cabeça nunca será «fria», isto é, racional. Tal só sucederá quando estiver «oca», ou seja, sem vida.
 
Frei Jorge é aquela figura sempre pronta para pacificar os espíritos atormentados, por isso oferece-se para fazer companhia à cunhada durante a ausência, de modo que Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar Sóror Joana.
 
 
Presságios
 
O advérbio de tempo «hoje» é repetido treze vezes nesta cena, constituindo um símbolo da desgraça, um mau augúrio. A sua repetição indicia que algo muito importante vai suceder nesse dia.
 
A referência à “santa freirinha” (Sóror Joana), “que tanto deixou para deixar o mundo e se ir enterrar num claustro.” antecipa o destino de D. Madalena.
 
A sexta-feira é um dia aziago, de mau agoiro.
 

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Análise dos capítulos I a III da Parte II de Madame Bovary


             A superficialidade do romantismo de Emma fica clara nas suas interações com Leon, que compartilha do seu amor pelos sentimentos e paixão excessivos. A conversa de Emma com Leon no jantar é banal e sentimental – eles discutem como os livros os transportam para longe das suas vidas quotidianas –, mas para os dois parece arrebatadora e significativa. Ela desafia o seu casamento estável, todavia insatisfatório, com um relacionamento baseado em declarações falsamente profundas, em vez de sentimentos verdadeiros.
O nascimento da filha de Emma sublinha o materialismo dos seus sentimentos, mas também introduz alguns dos argumentos feministas do romance. Ela deseja ser uma figura materna apenas quando parece que o papel pode ser glamoroso. Assim que percebe que não pode comprar roupas e móveis caros para a bebé, o seu interesse desvanece-se, e vemos que o seu único interesse pelo filho constitui um meio para realizar os seus próprios desejos. Emma sonha ter um filho, porque acredita que ele terá o poder que lhe falta a ela. Essa declaração franca mostra que Flaubert estava ciente e talvez desaprovasse as liberdades concedidas às mulheres no final do século XIX. Emma observa que “um homem, pelo menos, é livre; ele pode explorar todas as paixões e todos os países, superar obstáculos, saborear os prazeres mais distantes. Mas uma mulher é sempre prejudicada.” Os amantes de Emma desfrutam sempre de uma liberdade que ela não possui.
            A descrição de Flaubert do mundo mundano que rodeia Emma é realista, mas um tanto exagerada. Ele usa uma linguagem poética e florida para descrever Yonville, referindo que “o campo é como um grande manto desdobrado com uma capa de veludo verde bordada com uma franja de prata”. Mas Flaubert também reconhece a banalidade do cenário quando se refere a “uma terra mestiça cuja linguagem, como a sua paisagem, não tem sotaque nem caráter”. Ao descrever a mesma cena de maneiras contrastantes, Flaubert produz dois efeitos. Primeiro, diferencia-se dos seus antecessores românticos, que teriam avaliado uma cena monótona como indigna de sua atenção. Em segundo lugar, faz contrastar a banalidade que Emma vê com a beleza que um estranho pode perceber. Flaubert estabelece assim que, embora a protagonista possa estar certa sobre o tédio da vida na aldeia, também é incapaz de captar uma camada de beleza que a sua perspetiva é muito estreita para abarcar.
            Os aldeões que cercam Emma proporcionam-nos um contexto para entender historicamente o estatuto social de Emma. A ama de leite que ela visita, por exemplo, mora numa pequena cabana com as crianças de que cuida. Quando vê a protagonista, implora por pequenas necessidades – um pouco de café, um pouco de sabão, um pouco de conhaque. Embora Emma continue infeliz porque não pode socializar com a aristocracia em Paris, a sua visita à ama de leite mostra-nos que está vive, comparativamente, bem. A estalajadeira da aldeia, por sua vez, é uma mulher prática cujas únicas preocupações são se a refeição será servida a horas e se os bêbados que frequentam a pousada vão destruir a mesa de bilhar. Embora ela não tenha imaginação, também representa algo que Emma não: uma mulher que aceita e gosta da sua vida.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Manifesto Anti-Dantas

     O Manifesto Anti-Dantas é «poema satírico de José de Almada-Negreiros, publicado em 1916. Júlio Dantas, o alvo da obra, afastou-se das posições de vanguarda da literatura coetânea, situando-se "entre um sub-romantismo remanescente e um parnasianismo de segundo plano" (no dizer do crítico José Carlos Seabra Pereira), nomeadamente nas páginas da Renascença, revista literária e crítica por ele lançada, e chamando "tarados originais" a todos aqueles que não se identificassem com a sua atitude. Mas o Manifesto visava toda uma geração literária, cujo expoente máximo, e porventura mais talentoso, era Júlio Dantas: "Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi! É um coio d'Indigentes, d'indignos e de vendidos e só pode parir abaixo do zero!".

     O Manifesto relaciona-se radicalmente com o Futurismo. Realiza essa corrente versilibristicamente, não só através da sua oralidade cultivada com onomatopeias, exclamações e o abuso de maiúsculas, mas também através da negação destrutiva das convenções do presente a revolucionar: o culto do convencionalismo, da solenidade, da frase feita, do lugar-comum, em suma, de um verbalismo oco dirigido a um público frívolo que procurava na literatura o mero divertimento. Como tal, é uma obra marcada pelo espírito do seu tempo, com paralelo nos manifestos futuristas do italiano Marinetti, e é esse mesmo tempo que lhe explica o sentido profundo e a violência da linguagem.»

Fonte: Infopédia


TEXTO

Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero!
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d'Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair... Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é inteligente, nem decente, nem zero!
Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:
A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!
A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.
A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.
A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.
Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.
E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda... Quem está aí?... E de candeias apagadas?
- Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror... E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d'alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.
Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d'interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d'investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o público já está farto de saber - que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.
A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.
Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do "Século" a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta "Júlio Dantas" e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume literatura portuguesa? Não Mil vezes não!
Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.
E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecelidades do Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pinto hu hi e os burros de cacilhas e os menos do Alfredo Guisado! E (o) raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!
E as convicções urgentes do homem Cristo Pai e as convicções catitas do homem Cristo Filho!...
E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!

José de Almada Negreiros
Poeta d'Orpheu
Futurista E Tudo
1915
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