Português: 06/01/2020 - 07/01/2020

sexta-feira, 19 de junho de 2020

O título Aparição

Posicionamento de Vergílio Ferreira

1. As primeiras obras aproximam-se da corrente neorrealista: O Caminho fica Longe (1943), Onde Tudo foi Morrendo (1944), Vagão J (1946), distanciando-se posteriormente deste movimento.

 

1.1. Marcas neorrealistas em Aparição:

. as referências à miséria dos trabalhadores;

. o episódio do Bailote;

. a simpatia do narrador pelos ceifeiros, “homens e mulheres cosidos com a terra”, “gente fulminada pelo sol”;

. a atitude do reitor, de certo modo abusando da sua autoridade na interferência a respeito dos temas das composições dos alunos de Alberto Soares.

 

2. A partir de 1949, com o romance Mudança, dá voz às suas angústias existenciais, à problemática existencial e metafísica. Neste âmbito, torna-se discípulo de Jean-Paul Sartre, Heidegger e Jaspers.

 

2.1. A filosofia existencialista e Aparição:

. “o homem como um ser para a morte”;

. o absurdo da morte;

. a angústia metafísica;

. a busca do eu essencial;

. a busca da harmonia interior;

. a transcendência.

A filosofia existencialista e Aparição

            A temática da Aparição retoma a questão da interrogação sobre a existência humana. Ao nível mitológico, ela aparece, entre outros, patente no mito de Sísifo, filho de Éolo, fundador de Corinto, que foi condenado a empurrar um rochedo até ao alto de uma montanha, para, de lá, a atirar para o outro lado do monte. No entanto, a pedra voltava sempre para trás e todos os dias ele tinha de repetir a tarefa, com o mesmo desenlace. Neste contexto a pedra simboliza os obstáculos infindáveis com que o ser humano se depara, não obtendo a resolução definitiva dos problemas que marcam a sua existência.

            O problema no romance Aparição é o problema do “eu”, que se estende a cada homem. O “eu” pertence a um ser vivo que, progressivamente, toma consciência de si-próprio; são as diferentes “aparições” que compõem o processo de descoberta desse ente, cuja dimensão ultrapassa o plano individual e se situa no plano coletivo: o de todos os homens, em todas as épocas. Descobrindo o mundo, o Homem foi-se descobrindo a si próprio e tentou obter respostas. A existência suscitou sempre a sua reflexão e a constatação da morte inevitável definiu a sua condição e motivou a sua angústia. Dos vários pensadores que refletiram sobre estas questões, três marcaram profundamente Vergílio Ferreira: Kierkegaard, Heidegger e Sartre. Kierkegaard, considerado o fundador do Existencialismo, afirmou que o homem teria de renunciar a si mesmo para ultrapassar as limitações que a realidade lhe impõe – no final da obra, é um pouco esta a posição de Alberto Soares: sabe que nada mais poderá saber. Heidegger, por outro lado, salientou que o Homem só poderia conhecer-se à medida que existia e focou a angústia metafísica que o ser humano experimenta perante a ideia da morte. Para este filósofo, a linguagem constitui uma forma de acesso ao ser – ora, Alberto Soares, através da escrita (uma forma de linguagem), efetua a demanda do seu “eu” e da sua harmonia interior, aceitando tranquilamente uma qualquer forma de transcendência que justifica a existência, apesar de crer na “morte de Deus” (observemos, por exemplo, a interpretação do dom musical de Cristina, enquanto tocava piano, como uma manifestação do transcendente). Mas é Jean-Paul Sartre quem teoriza o Existencialismo, afirmando: “(...) o homem primeiramente existe, descobre-se, surge no mundo, e só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada.

            Só depois (existindo) será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber.”

 

            O Existencialismo ateu baseia-se, assim, nos seguintes princípios:

. a existência precede a essência, ou seja, o homem primeiro existe e só depois sabe quem é – é o ato de existir que conduz à descoberta do ser que existe em cada homem;

. ausência de determinismo – o homem é livre; o seu destino é construído por si mesmo (no mundo) e é independente de qualquer desígnio divino ou de qualquer outra natureza;

. o homem é responsável por tudo o que faz; essa responsabilidade estende-se aos outros, uma vez que aquilo que fizer afetará direta ou indiretamente aqueles que o rodeiam;

. a perceção da realidade é subjetiva, no sentido em que essa perceção resulta da constatação da própria condição humana (a perceção objetiva da realidade não é possível, uma vez que o Homem é angústia e revela necessidades e comportamentos que se prendem com a sua situação no universo);

. a solidão marca a existência – a liberdade provoca a solidão (sem deus, sem valores, o homem é um ser só);

. o Homem está condenado a “inventar o homem”, ou seja, a explicá-lo, de acordo com a sua própria visão da realidade, numa determinada época.

 

            Então, só e livre, cabe ao ser humano encontrar razões para a vida, razões para a morte e para o absurdo que esta representa.

            A filosofia existencialista subverte, pois, a perspetiva tradicional, segundo a qual a essência precede a existência. O indivíduo aparece, portanto, como um estranho a si mesmo, na busca de uma unidade que o conduza a uma ideia e a uma definição de si mesmo. O narrador de Aparição coloca a questão desta forma: “(...) o que eu sou não tem limites no puro ato de estar sendo, esta evidência que me aterra quando um raio da sua luz emerge da espessura que me cobre. E estas mãos, estes pés que são meus e não são meus, porque eu sou-os a eles, mas também estou neles, porque eu vivo-os, são a minha pessoa e todavia vejo-os também de cima, de fora, como a caneta com que vou escrevendo...” (p. 194).

 

            O título da obra remete, assim, para o sucessivo milagre que constitui cada “aparição” (a palavra aparece repetida na obra vinte e nove vezes) na descoberta do “eu”.

            E os princípios existencialistas estão presentes na ação do romance: Alberto Soares toma consciência de si mesmo, existindo; a sua “notícia” consiste, precisamente, no facto de ter descoberto e querer transmitir aos outros a sua descoberta de que “Deus gastou-se” – o que significa que o homem é livre e não se encontra, por outro lado, sujeito a qualquer tipo de determinismo, pelo que será ele o autor do seu destino; mas não se é apenas responsável pelos seus próprios atos, é-se igualmente responsável pelos dos outros – Alberto Soares é acusado da morte de Sofia, através de um telefonema anónimo, pois, na realidade, ele revela a Carolino algo que este não está preparado para ouvir, motivando, indiretamente, a sua atitude e a manifestação do seu ato de loucura; finalmente, a solidão e a angústia marcam as principais personagens da obra, que têm absoluta consciência do absurdo da sua morte e das limitações que se ligam à condição do ser humano.

            No final da obra, o narrador questiona-se sobre a possibilidade de construção da “Cidade do Homem”; de facto, a cidade que ele vê, quando dorme, pela última vez, na casa do Alto, é uma cidade na sua imaginação, votada à destruição pelo fogo, que a personagem alastra, a partir de uma “queimada”. Essa cidade, Évora, é um microespaço, símbolo do universo, que deveria ser recriado pelo homem: “O campo arde vastamente, como numa destruição universal.” (p. 269).

            A atitude de Carolino parece ser o epílogo necessário para provar que é preciso construir um mundo novo, ainda que a posição do narrador seja pessimista em relação a este facto: “A noite avança. A minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possível construir uma cidade como a imagino, a Cidade do Homem?” (p. 269).

            Na realidade, a Cidade do Homem situa-se no domínio da utopia.

Aparição : do Realismo ao Neorrealismo

1.1. Realismo (finais do século XIX):

. combate o Romantismo;

. busca a objetividade;

. visa a representação fiel da realidade;

. visa a análise científica da sociedade, a partir do Positivismo, do Determinismo, das teorias estético-sociais de Proudhon – o socialismo utópico;

. procura diagnosticar as causas dos vícios da sociedade com o objetivo de alcançar a sua cura;

. ligado ao Naturalismo e às ciências, socorre-se do método experimental.

 

1.2. Neorrealismo:

. surge a partir da segunda metade dos anos 30 do século XX;

. busca a objetividade da arte;

. visa a análise da sociedade, o empenhamento social e político, a partir do pensamento marxista:

. a literatura é uma forma de intervenção social e política e o escritor é um combatente que procura transmitir uma visão social da realidade e denunciar as injustiças sociais – literatura engagée;

. temas principais: a alienação, a exploração do homem pelo homem, as condições sociais do proletariado, os conflitos sociais, a consciência da classe.

sábado, 13 de junho de 2020

Características do romance histórico

▪ O romance histórico é caracterizado pela presença da História e pela oscilação entre a verdade e a verosimilhança.

▪ O romance histórico é marcado pela reconstituição histórica, que implica a recriação de determinados ambientes, conseguidos pelo recurso ao efeito da cor local e/ou da época. Este efeito é conseguido pelo recurso a várias estratégias:
-» evocação, o mais fiel possível, da linguagem da época e dos diferentes grupos sociais;
-» descrição pormenorizada do vestuário das personagens;
-» reconstituição de espaços físicos/geográficos (cidades, castelos, monumentos, etc.), com especial destaque para os aspetos arquitetónicos;
-» recriação de grandes movimentações das personagens (saraus, torneios, manifestações populares), com o objetivo de criar a ilusão da fidelidade ao tempo narrado.

▪ A presença de personagens referenciais (personagens pertencentes a um determinado contexto histórico e/ou mítico, que condicionam a leitura e a interpretação, mesmo que não possuam uma existência real – por exemplo, D. João V ou Scarlatti).

▪ As personagens ficcionais (persona → ideia de “ficção”) ocupam, geralmente, os papéis principais do romance, visto que proporcionam ao autor/narrador liberdade criativa, o que não acontece com as personagens referenciais, dotadas de características próprias e de personalidade conhecida que interessa respeitar.

▪ O romance histórico recorre também a fontes (verdadeiras ou apócrifas), desde “documentos antigos” a “velhos livros”, bem como “memórias” e “manuscritos que só o narrador conhece”, com a finalidade de atestar a veracidade dos acontecimentos narrados.

O conceito de romance histórico


O conceito de romance histórico, tal como hoje o entendemos, surge com o Romantismo, no século XIX, desde logo porque foi com este movimento que se deu um grande destaque, até aí desconhecido, ao passado. Antes, existiam romances que se centravam em tempos passados (por exemplo, Princesse de Clèves, de Madame de Lafayette), mas não se podem classificar como tal dada a inexistência de rigor ou factualidade histórica, a ausência de preocupações reais com a reconstituição de um determinando momento histórico, visto que apresentavam personagens, conceitos e mentalidades contemporâneos do respetivo autor.
O primeiro romance histórico considerado como tal é Waverley, de Walter Scott, publicado em 1814, o qual define os traços gerais do género: respeito pelos factos históricos, ênfase em determinados acontecimentos, etc.

Análise do poema "Palavras caras", de Adília Lopes

Em minha casa, detestávamos pessoas bem-
-falantes, palavras caras. De uma vez, apareceu a
prima Maria Lucília a dizer já não sei porquê:
       – Fiquei muito confrangida.
Passámos a chamar-lhe “a confrangida”.
Sempre que aparecia alguém na televisão a
declamar poesia ou a falar de poesia, desligáva-
mos a televisão.

O sujeito poético e a sua família (“Em minha casa”, “detestávamos”) têm aversão profunda a pessoas bem-falantes e ao emprego a despropósito de “palavras caras”. As pessoas bem-falantes são aquelas que fazem uso de palavras, de uma linguagem “cara” de forma inapropriada, na tentativa de se superiorizarem intelectualmente aos outros.
De seguida, apresenta, como exemplo do que acabou de dizer, o caso da sua prima Maria Lucília, que personifica a pretensa eloquência, com o verso em discurso direto em que usa uma palavra “cara”: “– Fiquei muito confrangida.”. Note-se que o nome da prima – Maria Lucília – é, também ele, exemplificativo dessa pretensão, dado o seu caráter composto. Por causa disso, o sujeito poético e a sua família deram-lhe uma alcunha, pela qual a passaram a tratar: “a confrangida”.
Nos últimos versos, refere o facto de ele e a família desligarem a televisão sempre que aparecia alguém a declamar ou a falar de poesia nela. Parece haver aqui uma associação entre as tais pessoas bem-falantes e aquelas que declamam ou falam de poesia na televisão. Note-se como a linguagem confirma a aversão do sujeito poético. De facto, nos três versos finais, a linguagem é bastante simples e caracterizada pela repetição do vocabulário, o que se opõe à das pessoas bem-falantes (de que a prima é um exemplo), do seu pretensiosismo e pomposidade, que muitas pessoas pretendem também atribuir à poesia.
As palavras usadas pelos bem-falantes constituem frequentemente uma forma de fugir à verdade; de forma semelhante, a eloquência em exagero é inimiga da boa poesia. Declamar ou falar de poesia de modo pretensioso, numa atitude de superioridade intelectual e de sobranceria é o contrário daquilo que o sujeito poético defende. Observe-se, por último, o tom sarcástico que domina todo a composição poética.

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Análise do poema "Visitações, ou poema que se diz manso"

Estrutura externa

. 5 estrofes: 2 monósticos, uma quadra, uma quintilha e um dístico.

. Métrica: irregular.


Tema: a arte poética e as figurações do poeta.


Análise

• O poema situa-nos num contexto familiar: o sujeito poético, feminino, estava a escrever um poema, quando a filha entrou de mansinho e o interrompeu.

• A entrada da filha, que é feita de mansinho, é comparada à chegada da madrugada (versos 1 a 3). As comparações sugerem que a entrada da filha é um acontecimento natural e espontâneo e destaca a mansidão, brandura e silêncio que caracterizam essa entrada.

• A entrada da filha veio interromper o ato de escrita do sujeito poético: “O poema invadia como ela, mas não / tão mansamente, não com esta exigência / tão mansinha.” (vv. 7-9). A comparação estabelece-se também entre o efeito dos poemas e o efeito da presença da filha.

• O «eu» poético constrói-se entre duas figurações: a de poeta e a de mãe ou mãe e poeta. Com o surgimento da filha em cena, no momento em que escreve, em que cria, assume o papel de mãe. Este papel maternal pode também relacionar-se com o ato da criação poética: o «eu», enquanto poeta, é mãe do poema que escreve.

• Assim sendo, a figura da filha pode entender-se num duplo sentido: representa para a mãe o que a inspiração representa para o «eu», ou constitui a fonte de inspiração necessária ao surgimento do poema.

• A comparação da filha a um “ladrão furtivo” e a metáfora final do «crime» sugerem a sua aproximação silenciosa e furtiva e o roubo da atenção da mãe.


Título

O título do poema sugere a articulação existente entre as situações descritas no texto – decorrentes da visitação da filha – e o surgimento, ainda que seja uma visitação mental e artística do poema, e ambos – filha e poema – são apresentados como «mansos», como dóceis. Dito de outra forma, a visitação da filha pode equivaler à visitação da inspiração para a criação poética.
Por outro lado, a personificação presente em “que se diz manso” associa a mansidão, a docilidade da jovem ao poema, que o seria também por influência dela.

Análise do poema "Testamento", de Ana Luísa Amaral

Análise

• O sujeito poético inicia o poema com a referência a uma realidade: vai fazer uma viagem de avião.

• Os três versos seguintes sintetizam a “vida desorientada” do «eu»: “o medo das alturas”, “tomar calmantes” e “ter sonhos confusos”.

• O testamento ocupa o resto do poema e consiste, ni fundo, num tratado de (des)educação da filha.

• O verso 5 refere uma realidade plausível: a sua morte (“Se eu morrer” – v. 5). Essa possibilidade leva o sujeito poético a exprimir um desejo: que a filha não se esqueça de si.

• Os desejos do sujeito poético não se esgotam aí, pois deseja igualmente:
a) que alguém lhe cante, mesmo com voz desafinada: o canto (talvez para a embalar, recordando-nos o cenário de uma mãe a embalar um filho antes de adormecer) simboliza a alegria;
b) que lhe ofereçam fantasia (sinédoque), imaginação, quiçá através de uma história de encantar que alguém lhe leia;
c) que lhe deem amor, mesmo após a sua morte;
d) que lhe deem “ver dentro das coisas”, ver a sua essência, a sua autenticidade;
e) que lhe deem sonhos, mas sonhos diferentes dos habituais (“sonhar com sóis azuis”),

• Este é o conjunto de desejos que o «eu» lírico exprime relativamente à sua filha, caso ela morra durante a viagem de avião e, por isso, não esteja presente para os cumprir. Serão esses princípios/valores que a filha deverá aprender e valorizar na vida: a alegria, o otimismo, a fantasia, o amor e o sonho.

• As referências às “contas de somar”, “descascar batatas”, ao “horário certo” e à “cama bem feita” representam aspetos materiais e atividades rotineiras do quotidiano, que o sujeito poético desvaloriza e que deseja que não constituam os princípios e valores que nortearão a vida da filha.

• Na quarta estrofe, o «eu» poético afirma desejar que preparem a filha para a visa se morrer na viagem e se transformar em “átomo livre lá no céu”, despegada do seu corpo (um espírito em liberdade) – eufemismos. Esta preparação para a vida consiste em dar à filha amor e fantasia e fazê-la sonhar, e não prepará-la para as tarefas do quotidiano (atente-se no valor, neste contexto, assumido pelo presente do conjuntivo).

• O sujeito deseja, afinal, que a filha se recorde dela e do seu “contentamento deslumbrado” (alegria) por ver “na sua casa as contas de somar erradas/e as batatas no saco esquecidas e íntegras” (vv. 26-28). Ou seja, o que traz alegria, felicidade e deslumbramento ao «eu» (“mais tarde”, “lá no céu”, isto é, após a sua morte) é a valorização do amor, do sonho e da fantasia, que equivale, por oposição, à desvalorização do quotidiano banal, material e rotineiro: as contas de somar erradas e as batatas esquecidas e íntegras (não tocadas, não descascadas).

• No fundo, a partir da última estrofe, nomeadamente dos versos 21 a 23, pode inferir-se que o sujeito poético deseja igualmente que os ensinamentos que deseja transmitir à filha serão semelhantes aos que esta proporcionará, por sua vez, à sua própria filha.


Representação do contemporâneo: a viagem de avião.


Figurações do poeta

As figurações do poeta dizem respeito à visão feminista e liberal que a poeta tem da educação, pois no poema exprime o desejo de emancipação da mulher relativamente ao papel tradicional que ela desempenha na sociedade/na vida doméstica.
De facto, Ana Luísa Amaral revela, na sua obra, uma grande preocupação com as questões de género e com as opressões daí derivadas, bem como a reivindicação de um espaço fora da esfera doméstica para o elemento feminino. Por isso, nesta composição poética, o «eu» deseja para a sua filha uma vida em que o amor, a fantasia e o sonho assumam um papel mais importante do que as rotineiras tarefas quotidianas/domésticas.
É, no fundo, a defesa da emancipação feminina e do direito à igualdade.


Título

Um testamento é um documento através do qual um indivíduo manifesta a sua vontade e dispõe, no todo ou em parte, os seus bens para depois da morte.


Análise formal
▪ Estrofes: uma quadra, uma sextilha, duas quintilhas e uma oitava.
▪ Rima:
- acentuação: grave ou feminina;
- versos brancos ou soltos.
▪ Métrica: irregular.


Características contemporâneas:
- estrutura formal;
- linguagem sintética, precisa e racional;
- alusão ao «avião».


Intertextualidade:
▪ Estâncias 89 e 90 do canto IX de Os Lusíadas.
Os Maias:
- influência da família na educação;
- relação entre Carlos e Afonso;
- desenvolvimento da inteligência por meio do conhecimento experimental de amor, virtude e honra.

Análise do poema "Soneto científico a fingir", de Ana Luísa Amaral


Contextualização do poema

Este poema pertence ao quarto livro de Ana Luísa Amaral, intitulado E Muitos os Caminhos, e nele a poeta associa-se à tradição poética, ao mesmo tempo que se lhe opõe, subvertendo-a, modificando-a, o que quer dizer renovando-a.


Título

• A poeta chamou «soneto» ao poema, no entanto, formalmente, foge a essa definição, dado que é constituído por 5 quadras, não sendo, além disso, nenhuma delas um terceto.

• O título remete-nos, pois, em simultâneo, para a tradição clássica (foi uma tipologia textual cultivada por Petrarca, Camões, etc.), para a herança modernista de Fernando Pessoa e a sua teoria do fingimento poético (em “Autopsicografia”, por exemplo, enquanto o título desta composição clarifica desde logo que se trata de um soneto “a fingir”) e para a modernidade/contemporaneidade, para um diálogo com todas estas possibilidades.


Análise

• Na primeira estrofe, o sujeito poético remete para outras formas poéticas: as composições de mote e glosa (Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, as redondilhas de Camões), neste caso, em torno do amor.

• O primeiro verso anuncia que o tema do poema é o amor, no entanto, no título, anuncia que é um soneto «científico». Estamos, pois, a falar de ciência, mas de quê? Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para execução de uma arte? Ou a ciência que, frequentemente, é contraposta ao amor e que o explica como reação química?

• A poesia / a arte tem uma função estética: pretende deleitar os sentidos e as pessoas que a apreciam. Por outro lado, “Se for antigo, seja. / Mas é belo / e como a arte: nem útil nem moral.” (vv. 3-4-). Ou seja, na poesia/arte “não há moralidade, não há certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem preconceitos ou limitações de qualquer ordem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Além disso, “a arte não tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Ao contrário dos poetas modernistas, o «eu» explora os temas e as formas clássicas, como já vimos, em oposição aos versos e linhas “devastados” desses modernistas, o que constitui uma forma de subversão: ao retomar essas formas e temas clássicos, entra em confronto com um dos traços modernistas: a regra de não ter regra (“Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe.” (vv. 5-8).

• O sujeito poético propõe-se tratar o tema do amor num soneto. Questionando a antiguidade da forma, contra-argumenta com o mundo: “também o mundo é e ainda existe” (v. 8). No entanto, não vê qualquer vantagem na rima, o que poderá ser visto como «limite» (v. 10), como determinante para a construção do soneto, mostrando a sua indiferença (“deixa ser” – v. 10).

• Contudo, apesar de, teoricamente, o poema ser uma forma clássica, há pontos comuns ao modernismo: a ausência de rima como forma fixa, dado que também este seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / (esta rimou, mas foi só por acaso.)” (vv. 9-12). O «eu» poético assume-se como uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna. O verso entre parêntesis, caracterizado pela linguagem coloquial, ilustra o afastamento da tradição literária, visto que não corresponde ao registo de língua exigido pelo soneto.

• De facto, após manifestar indiferença pela rima (v. 9), surgem os versos 10 e 11 a rimar. O sujeito poético sente a necessidade de referir a causa do facto, em discurso parentético, sublinhando, assim, a liberdade formal que defende.

• O recurso à terceira pessoa do plural e ao futuro do indicativo no verso 10 (“Dir-me-ão”) introduz uma espécie de contra-argumento do sujeito poético: ao justificar a sua tese (a subversão da tradição), entra numa espécie de diálogo com o leitor e antecipa, deste modo, uma resposta à reação que aqueles que não partilham da sua opinião poderão ter.

• Na quarta estrofe, o «eu» aproxima-se imenso de Pessoa e do fingimento poético. Ele transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, criando assim uma nova poética, cujas características são as seguintes: não é rígida na forma de seguir a tradição nem de romper com ela. O «eu» dialoga com as tradições, subvertendo as regras precisamente por não as seguir rigorosamente. Exemplo disso é este texto: ele (ela) escreve um soneto, mas um soneto “coxo” (v. 17) e com linguagem coloquial.

• A ideia do fingimento está bem evidente nos versos 15 e 16, quando o sujeito lírico afirma que os seus versos são mentira, bem como o que mostra. O fingimento é a base da sua criação poética, aliado à rejeição da obediência às regras formais.

• O sujeito poético, socorrendo-se do fingimento poético pessoano, afirma que não pode dobrar-se demasiado para falar de si e mostrar-se na “mentira que é o verso”. Em simultâneo, não sente necessidade de abandonar por completo as formas poéticas: adaptando-se às necessidades da expressão literária, o «eu» produz um soneto «coxo» plenamente consciente das limitações impostas por um soneto, mas não obedecendo a essas limitações.

• De facto, este soneto não segue o modelo do soneto clássico: não tem14 versos, tem 20; não é constituído por 2 quadras e 2 tercetos, mas por 5 quadras; não usa uma linguagem elevada, mas uma linguagem coloquial e até irónica: “se é soneto coxo”, “paciência” (vv. 17-18); é maioritariamente composto por versos brancos, com um desvio (a rima emparelhada em “ser” e “mulher” e cruzada em “paciência” e “ciência”); os versos são maioritariamente decassilábicos, mas alguns apresentam uma métrica diferente.

• O diálogo com a tradição reside precisamente aqui: o sujeito escreve um soneto, explora ainda o tema do amor (“dar mote ao amor”) e depois tem a sabedoria (“ciência”) de se desviar do tema. O «eu» conhece a técnica tem ciência e desvia-se da tradição a partir da tradição, criando a sua própria arte (última estrofe).

• A última estrofe justifica o título, concluindo a linha de pensamento, na indiferença em relação à estrutura do “soneto” e relativamente à construção do poema: afirmar a importância do tratamento do tema “amor” e promover o desvio poético é ciência. É isso que encontramos no poema e no título – um soneto (anunciado) científico (enunciando princípios de arte poética) a fingir (porque apenas é anunciado, mas não concretizado).


Arte poética

• A criação poética de Ana Luísa Amaral assenta, pois, no fingimento e na liberdade criativa, que passa pela rejeição das regras sociais. A criação poética estriba-se, portanto, na criatividade e espontaneidade e inspira-se em temas do quotidiano, como o amor, neste caso. A desobediências às regras formais justifica-se exatamente pelo facto de a obediência às mesmas poder comprometer a criatividade do poeta.

• Ao contrário dos modernistas, Ana Luísa Amaral não nega por completo a tradição literária, mas também não se limita às suas regras. A transgressão e a inovação estão presentes, exatamente na forma de adaptar os modelos à sua expressão, subvertendo-os frequentemente.

Bibliografia:

WILLMER, Rhea Sílvia, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português

Análise do poema "Metamorfoses", de Ana Luísa Amaral

Tema

O tema do poema enquadra-se no âmbito da criação poética despertada pelo quotidiano e pelos seus acontecimentos comuns. No caso deste poema, são as tarefas domésticas.


Análise

No poema, estão representados dois espaços, um exterior (“uma despensa”) e outro interior (o “sótão mental”) ao sujeito poético.

A composição coloca-nos face à imagem de uma mulher atual, dita moderna, que, envolta nas tarefas domésticas, como, por exemplo, a organização de uma despensa, se ocupa também da criação artística, o que faz com que acabe por atribuir sentido metafórico aos aspetos desse quotidiano doméstico.

O sujeito poético abre o poema com um pedido ou um desejo: “Faça-se luz / neste mundo profano”. Essa vontade constitui, no fundo, um apelo à criatividade, a que a sua inspiração surja. Esta ideia é continuada na terceira estrofe: “Que a luz penetre / no meu sótão / mental”.

O seu gabinete de trabalho é uma despensa, qualificado como «mundo profano». Este conjunto metafórico remete o «eu» poético para a condição da mulher urbana, dita moderna, que vive dividida entre a obrigação de se dedicar às tarefas domésticas, entre “presunto e arroz /, (…) e detergentes”, e o impulso «mental» para a escrita. Por outro lado, poder-se-á considerar que o quotidiano doméstico funciona como uma fonte de inspiração para a poesia.

Assim sendo, não pode haver qualquer estranheza no facto de o campo lexical predominante do poema ser algo estranho à poesia: «presunto», «detergentes», «arroz», «despensa». Este vocabulário relembra-nos de imediato “Num bairro moderno”, de Cesário Verde, nomeadamente o momento em que o «eu» recompôs um corpo poético feminino a partir dos vegetais e frutos existentes na giga da vendedeira. Por outro lado, tal pode sugerir igualmente que o quotidiano não é propriamente a fonte de inspiração «perfeita», no entanto, é possível, através da imaginação do processo de criação poética, transformar esses produtos em poesia. Assim se compreende que, no final do poema, se transforme o presunto numa carruagem encantada, características dos contos tradicionais.

O sujeito poético vai organizando a despensa, enquanto o momento de escrever poesia não chega, daí que, nesse período de tempo, tenha de aguardar que se faça luz, isto é, que a inspiração chegue, para que o poema vá surgindo nas folhas de papel que se assemelham aos produtos de consumo.

A segunda estrofe assenta na oposição entre «As outras» e o «eu». Aquelas estão circunscritas a «sótãos», espaços físicos superiores, universos mais elevados, marcados pelo exercício da escrita, enquanto o sujeito poético está confinado a uma simples despensa, onde se move entre «presunto», «arroz», «livros» e «detergentes», compelido a cumprir as tarefas domésticas, procurando conciliar o (esse) mundano com a criação artística (por isso, está sempre acompanhada pelos «livros»).

Assim, o sujeito poético apela à inspiração, que se faça luz e que “a luz penetre / no meu sótão / mental” (isto é, que ela se materialize), de modo que o seu desejo de escrever, de abandonar a despensa (as tarefas domésticas) e atingir o sótão, se concretize e desta forma se opere a transição do espaço exterior para o interior (“transformem o presunto / em carruagem!”).

A figuração poética é construída a partir da tensão entre a realidade do «eu» e a ficção desse mesmo «eu», num permanente “estar entre”. No caso deste poema, o «eu» poético é uma mulher que se divide entre as tarefas do quotidiano, exemplificadas pela organização de uma despensa, e a escritora-poeta que se dedica à escrita. A ligação entre as duas representações acentua-se pelo facto de esse quotidiano ser aquilo que fornece inspiração ao «eu» para escrever, para criar.

De facto, o «eu» poético, dividido entre duas representações distintas, vive nesse constante «estar entre»: de um lado, o quotidiano, feito de elementos concretos e objetivos; do outro, o mundo do sonho, da imaginação, da criatividade, do abstrato, isto é, da criação poética. Ao contrário do que se poderia talvez esperar, estes dois mundos não se opõem, antes se harmonizam, complementam e coexistem: na despensa, há um “sótão mental” e folhas de papel (mentais) que permitem transformar o “presunto / em carruagem”, ou seja, os aspetos domésticos do quotidiano em poesia – a metáfora da carruagem (ao gosto dos contos de fadas) representa a força vital da poesia de Ana Luísa Amaral.

Em suma, o «eu» poético apela à inspiração, pedindo que se faça luz, que essa luz penetre no seu sótão mental, para que o seu desejo de escrever se vá materializando e seja possível, nas «folhas» que embala «docemente», a epifania da escrita, o tão ambicionado sublimar do “presunto / em carruagem”.


Características da poesia de Ana Luísa Amaral

▪ Na poesia de Ana Luísa Amaral, fazem-se sentir com frequência os ecos do quotidiano feminino, especialmente os espaços da sua vivência quotidiana, como a cozinha, a sua casa, a despensa, as tarefas domésticas e quotidianos, os elementos mais recorrentes na sua poesia, os quais acabam por constituir matéria poética.


Estrutura forma
Estrofes: quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras.
Métrica: é irregular.
Rima: versos brancos ou soltos.

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