Português: 08/03/20

domingo, 8 de março de 2020

Análise do capítulo XLIV de Viagens na Minha Terra


Contextualização do capítulo

A carta de Carlos a Joaninha, datada de 1843, ocupa vários capítulos (XLIV-XLVIII) e é lida pela narrador-viajante e cronista da obra, em 1843, quando a recebe das mãos de Frei Dinis, que reencontra ao passar pelo vale de Santarém de regresso a Lisboa.
A carta é, sem simultâneo, uma carta-punhal e um texto autobiográfico e memorialístico, e evoca a tragédia familiar, que termina na mor, física ou moral, de todos os intervenientes.


Estrutura do capítulo XLIV

1.ª parte (linha 1 – “Olha o que será o resto!”): Considerações gerais sobre o passado e a personalidade de Carlos.

2.ª parte (“Tu não ignoras…” – “e não guardei verdade a ninguém.”): Análise da situação da família e dos erros cometidos.

3.ª parte (“Mas espera, ouve…” – Exílio de Carlos em Inglaterra e a sua devoção às três filhas da família que o acolhe.


Mudança de narrador e narratário

Narrador: Carlos autodiegético (1.ª pessoa), com uma dimensão de relato autobiográfico.

Narratário: Joaninha (2.ª pessoa).


Retrato de Carlos

▪ Carlos mostra confusão emocional («confunde-se, perde-se-me esta cabeça nos desvarios do coração.»), algum desespero («Eu estou perdido.») e sentimento de culpa.

Carlos perdeu a sua pureza e o seu idealismo quando integrou a vida em sociedade e aceitou as suas convenções.

Possui uma grande ânsia de viver («excessos»), mas, em simultâneo, sente uma grande frustração existencial por não ser quem sonhou.

Quando se refere ao passado familiar, Carlos mostra-se:
» amargurado («e imaginei-a poluída de um enorme crime…»);
» enraivecido e revoltado («não o podia ver, hoje que sei o que ele me é… Deus me perdoe, que ainda o posso ver menos!»);
» ressentido («… ainda o posso ver menos!») e incapaz de perdoar («… eu, como lhe hei de perdoar eu…»).

No amor, Carlos é uma figura volúvel, egoísta e mentirosa (mente às mulheres que o amam).

Afirma-se «perdido», por duas razões: a sua natureza incorrigível → energia em excesso e coração demasiado ardente; a perda da sua integridade pessoal e da sua honestidade, passando a reger-se pelas convenções, pelos interesses e pelas manhas sociais, o que o deixa profundamente angustiado e a sensação de que falhou.

Duvida que Joaninha o compreenda, pois é mulher, e ele acredita que as mulheres, como são diferentes dos homens, jamais entenderão os seus excessos. No entanto, conta-lhe a verdade, destruindo-lhe as ilusões, para que ela, conhecedora da verdade da natureza masculina, se prepare para as armadilhas do amor/coração.

A sua partida do vale ficou a dever-se ao crime que manchou a casa paterna (a morte do seu suposto pai), ignorando que o verdadeiro era Frei Dinis.

Por outro lado, julgava que a avó tinha sido cúmplice do crime e, não o sendo, culpa-a de omissão e confessa que não consegue também perdoar o adultério da mãe.

Confessa a Joaninha que a amou, mas o seu coração não era inteiramente livre e mentiu-lhe (e a si próprio), ainda que involuntariamente, por isso não se considera merecedor do seu amor.


A carta como analepse e como digressão sobre o amor

2.1. A carta como analepse:
. escrita em maio de 1834 – lida em 1843:
- a juventude de Carlos;
- o exílio em Inglaterra;
- a relação com as três irmãs inglesas;
- regresso a Portugal.

2.2. A carta como digressão sobre o amor:
. o drama amoroso de Carlos:
- a sua paixão (correspondida por Laura);
- a impossibilidade dessa paixão (Laura é comprometida);
- a recordação de Joaninha;
- a aproximação a Júlia;
- a paixão por Georgina;
- a separação, com a partida para os Açores;
. a evolução do sentimento de Carlos;
- “Em breve eu amava perdidamente uma delas” (Laura);
- “… pois nesse mesmo instante distintamente me apareceu diante dos olhos de alma a única imagem que podia chamá-la do abismo: era a tua, Joana!”;
- “Júlia era parte de nós, era uma porção do nosso amor… E já as confundia ambas por tal modo no meu coração, que me surpreendia a não saber a qual queria mais.”;
- “Uma delas, jovem, ardente, apaixonada, quis tomar a empresa de me consolar. (…) Era Soledad. (…) Eu não amei Soledad.”;
. “… todo o passado me esqueceu assim que te vi. Amei-te.” (Joaninha).


Visão de Joaninha segundo Carlos

É generosa: «tens generosidade».

Não o compreende, por causa da sua natureza de mulher.

É jovem e inexperiente, vista como de outro tempo, que destoa no mundo moderno: «Tu és jovem e inexperiente, a tua alma está cheia de ilusões doces.»

Vive cheia de ilusões: «a tua alma está cheia de ilusões doces».

É uma vítima de ter amado um herói perseguido por um destino adverso: «Tu não compreendes isto, Joaninha, não me entendes decerto; e é difícil».


Visão de Carlos da mulher e da génese do amor

1. Visão romântica da mulher
» natureza diferente do homem: «… as mulheres não entendem os homens.»;
» é um «produto» social e natural que suscita admiração, desejo, amor: «Há três espécies de mulheres neste mundo: a mulher que se admira, a mulher que se deseja, a mulher que se ama.»;
» a mulher-anjo: «E era um anjo…».

2. A génese do amor
- a admiração
- a beleza
- o espírito «os dotes de alma e do corpo»
- a graça
- o amor romântico:
. é indefinível («O amor não está definido nem o pode ser nunca»);
. distingue-se do flirt, da admiração, do desejo.


Informações sobre o passado da família

A mãe de Carlos manteve uma relação adúltera com Frei Dinis.

Dessa relação nasceu Carlos.

A avó escondeu essa relação dos olhos do mundo.


A vida de Carlos em Inglaterra

No início, Carlos estranhou os hábitos da aristocracia inglesa, protegida e artificial, no entanto depressa se lhe moldou, revelando a maleabilidade do seu caráter.

Adaptou-se também à arte da sedução, aprendendo a flartar, de modo inconsequente, com as três irmãs. No seu caso, a emoção dominava a razão, e ele enganava-se a si mesmo, interiormente.


Carlos, o herói romântico: «Tenho energia demais, tenho poderes demais, no coração».

Carlos luta pelo ideário liberal, pela liberdade.

Temperalmente, é impulsivo, intenso, não admite injustiças nem afrontas.

Sentimentalmente, é um homem sensível, com alma de poeta, que se entrega ao amor de forma excessiva e se deixa dominar pelo coração, pelo sentimento, que coloca à frente da razão.


Recursos expressivos

Metáfora:
- «sabia-a [à casa materna] manchada de um grande pecado, e imaginei-a poluída de um enorme crime»: os erros («pecado», «crime») cometidos por membros da família de Carlos a uma sujidade que conspurca aquele lar para dar conta de que a pureza inicial foi «manchada» e «poluída» pelos comportamentos ilícitos do pai, da mãe e da avó do protagonista;
- «afiz-me a vegetar docemente na branda atmosfera artificial daquela estufa sem perder a minha natureza de planta estrangeira.»: Carlos tinha confessado a Joaninha que a amava, no entanto, pela leitura da carta, declara que amava outra mulher e que ficara fascinado ainda por outras duas. Revela-se, assim, um marialva, egoísta e desonesto no amor, ou seja, um D. Juan.

Agrupamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes encerrado devido ao COVID-19

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