27 de Junho de 2019, 2:05
“Ainda bem que já estou
de férias!”
A frase não me surpreendeu. Apesar de estudioso e bom leitor, o meu filho é
um rapaz saudável e, como todos os outros, aspira pelo tempo de piscina, praia,
passeio, televisão e outros divertimentos. Não dei andamento à conversa. Para
minha surpresa, o miúdo resolveu no entanto desabafar enquanto punha a mesa e
eu temperava a salada.
“Até que enfim estou livre daquelas ‘oficinas’ em que levámos o ano inteiro
a fazer projectos e nunca saímos do mesmo sítio... Uns trabalhavam e outros
ficavam a ver. O costume... Nas apresentações ninguém se preocupava se estava
bem feito ou não, se tinha sido copiado da Internet ou escrito por nós... Além
disso, eu pensava que os projectos eram para fazermos coisas úteis, giras... O
nome engana... ‘oficinas’... São uma seca e das grandes!”
Resolvi dar-lhe alguma atenção, mas silenciosa. Sem que eu lhe perguntasse
coisa alguma, do alto dos seus onze anos, não teve papas na língua: “Os
professores andam aborrecidos. Toda a gente vê. Não os deixam dar as aulas como
querem e não têm tempo para dar a matéria toda. Fica sempre a meio, agora com a
mania das disciplinas semestrais… Eles tentam disfarçar, mas nós bem vemos o
que está a acontecer. Dizem que para o ano que vem as aulas vão ser todas
assim. Só projectos e trabalhos de grupo. Que raiva! Estou mesmo a ver no que vai
dar... Mas nem quero pensar muito nisso. Já estou de férias. Quem me dera que
as aulas normais voltassem e acabasse esta porcaria que inventaram para aí.”
Perguntei-lhe se era o único a pensar assim. Poderia ter chamado a irmã,
avançada um ano nos estudos, mas quis saber o que ele me responderia. “Não sou
o único a dizer isto. Os meus colegas estão fartos como eu e só aqueles que não
se importam com nada é que andaram contentes porque não precisaram de fazer
nenhum. Trabalham uns e eles assobiam, portam-se mal nas aulas e chateiam toda
a gente, porque sabem que vão passar na mesma... Ninguém chumba no meu ano
nesta escola, mesmo que faça porcaria e não aprenda. A directora diz que
chumbar dá mau nome à escola... Que temos de acabar com o insucesso…”
A interrogação final veio de chofre: “Achas justo? É justo dar o mesmo
prémio àqueles que trabalham e àqueles que não se ralam e não querem
trabalhar?”
A opinião do catraio não me apanhou desprevenido, confesso. Já ao longo do
ano lectivo notara um certo desalento no miúdo quando se aproximava o dia das
“aulas diferentes”. Ia como cão por corda para a escola. A irmã, tanto quanto
me era dado ver e ouvir, tinha o mesmo sentimento. Em conversas com outros pais
e encarregados de educação, das suas turmas e de turmas diferentes, fui-me
apercebendo de que era um sentimento alargado. Também conhecia a opinião de um
grupo alargado de professores daquela escola. Ano após ano, várias dezenas
tinham saído da instituição, mesmo tendo-lhe dado uma, duas ou até três décadas
de serviço e dedicação. Muitos dos que permanecem no “degredo” desejam, dizem,
seguir o mesmo caminho, perante as atitudes da tutela e da gerência. Pura e
simplesmente, não aguentam – segundo afirmam – as pressões diárias de que são
alvo para porem em prática uma “doutrina pedagógica” com traços totalitários.
Não foi inesperado o desabafo do miúdo. Mas deixou-me porém preocupado,
sabendo eu o que é possível fazer e desfazer com os cinquenta por cento de
autonomia que o governo quer “oferecer” às escolas, em troca da aplicação cega
e militante da “flexibilidade curricular”. Também eu sou professor, embora
tenha a graça de leccionar num Agrupamento de Escolas onde ainda vai reinando o
equilíbrio, o bom senso e a sensibilidade humana. Como docente, consigo todavia
ser camaleão, se for necessário. Como pai, a minha grave inquietação vai
crescendo.
Com as mãos livres e acalentadas pela 24 de Julho, há dirigentes escolares
que estão a pôr em prática uma autêntica anarquia educativa, travestida contudo
pelas melhores intenções, que não passam de vassouras para esconder os
problemas que existem na nossa escola pública. E não lhes faltam coadjuvantes
ou cúmplices: alguns docentes que esperam receber benesses (no horário, na
distribuição de serviço ou quiçá em viagens ao estrangeiro, pagas pela União
Europeia) e alguns pais que não enxergam um palmo à frente do nariz. Bom seria
que alguém verificasse se os dirigentes escolares mais ferrenhos na aplicação
da nova via “pedagógica” não serão muito próximos do partido do governo (ou
mesmo seus militantes); há quem diga que sim. Não é por acaso que, para
estranheza de muitos e estupefacção de alguns, dois dos secretários de Estado
do Ministério da Educação marcaram presença conjunta (!) na inauguração (!) da
remodelação parcial (!) de um dos blocos de salas de aula de uma das escolas
mais fundamentalistas na aplicação da “flexibilidade”… Não há almoços grátis,
como se diz por aí.
Vítimas de teorias e práticas pedagógicas que já eram velhas há quarenta
anos, porque lhes dão jeito para camuflar o insucesso que realmente existe e
continuará a existir por este caminho, há escolas (e cada vez são mais) que
vivem um autêntico PREC educativo, com traços de maldade e insanidade, cujas
consequências plenas são ainda difíceis de alcançar. Uma delas é todavia
evidente. Os alunos com bom respaldo familiar conseguirão sobreviver a tudo
isto, com grande dispêndio de tempo e de dinheiro, que não há outro modo de
compensar o que lhes é tirado nessas escolas públicas. Alguns, filhos de
agregados mais abonados, partirão para bons colégios privados – onde a conversa
é outra… Aqueles a quem falta o dinheiro ou a família ou tudo isto junto serão
vítimas a médio prazo de uma escola que, assim, se demite de lutar contra as
desigualdades, em benefício de uma “inclusão” que é, na realidade, exclusão
social ao longo da vida.
Os colegas dos meus filhos que não fazem testes de avaliação, que se
alegram por passar de ano sem trabalhar e sem melhorar o seu comportamento, que
deixam de ter aulas baseadas no conhecimento sólido dos seus professores, que
não são treinados para o esforço que o estudo implica e implicará sempre, que
são vítimas da “flexibilidade” e da “inclusão”, poderão agora exultar com as
suas famílias, alheados do que se passa, do que motiva esta “nova pedagogia” e
dos seus resultados futuros. Estou certo disso, porque os vejo, os ouço e
converso com alguns dos seus pais. Os efeitos futuros não serão, todavia, algo
que seja bom de ver. Sem se terem habituado à exigência, ao trabalho, à
atenção, à concentração e ao estudo – enganados por sereias maviosas e
sorridentes que, desse modo, dizem “levar habilmente a escola rumo ao sucesso”
– ver-se-ão a braços com uma violenta e frustrante desigualdade de
oportunidades. E tal não é digno de um país que afirma defender a dignidade de
todos os seres humanos.
Ruy
Ventura
Escritor e investigador