Português: 19/11/20

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Análise de "Ai, dona fea, fostes-vos queixar"

 
Assunto: o sujeito poético elenca os defeitos da mulher a quem se dirige, os quais o impedem de lhe dedicar uma cantiga de amor.
De facto, perante a queixa de uma “dona fea, velha e sandia” que o sujeito nunca a louvara nos seus poemas, apesar de já ter trovado muito, ele dispõe-se agora a louvá-la.
 
 
Tema: ridicularização do amor cortês e da imagem da mulher ideal e perfeita, através do elogio a uma “dona fea, velha e sandia”.
 

Objeto da crítica: uma dama feia que desejava ser cantada, representando todas aquelas que expressavam esse desejo.
 
 
Razão da queixa: a “dona” queixa-se de nunca ter sido louvada nos cantares do trovador / sujeito poético, isto é, de este não compor cantigas sobre ela.
 
 
Caracterização do sujeito poético
▪ Irónico: declara que irá cantar a «dona» numa das suas cantigas, mas, na realidade, o seu cantar será depreciativo, ou seja, afirma que a vai elogiar, mas, na verdade, zombará dela.
▪ Afirma que louvará a dama, mas referindo que ela é feia, velha e louca.
▪ Motivo de nunca a ter elogiado / composto cantigas de amor sobre ela:
(1) não a considerava digna de uma cantiga de amor;
(2) não queria expressar um amor que não sentia;
(3) ela não tinha qualidades para tal: era feia, velha e louca.
▪ Afirma-se superior à «dona», adotando uma postura de arrogância e desprezo, bem visíveis no facto de a invocar, mas não lhe dar a palavra: ditar o silêncio a alguém é quase negar a sua existência como pessoa.
 
 
Retrato da “dona”
▪ feia;
▪ velha;
▪ louca;
▪ gostaria / desejava que o sujeito compusesse cantigas de amor, porque, assim, a elogiaria, e expressasse o seu amor por ela;
 possui as características opostas às da dona da cantiga de amor: feiura - beleza; velhice - juventude; loucura - bom senso / juízo.
 
 
Crítica
explícita: a “dona” é criticada por ser veia, velha e louca;
implícita:
» crítica à presunção e ao irrealismo da dama, que não tem noção de si e, por isso, se considera merecedora de louvor;
» crítica à vaidade feminina excessiva (comparar com o poema “Vaidosa”, de Cesário Verde).
• às cantigas de amor e às regras do amor cortês:
» ridicularização / paródia das regras do amor cortês, pelo elogio a uma dama «fea, velha e sandia» ausência de beleza + ausência de juventude + ausência de razão – um trovador deveria elogiar a sua dama e expressar o seu amor; o «eu» critica esta mulher de forma sarcástica;
» elogio da dama (cantiga de amor) ≠ sátira à dama (esta cantiga);
» caracterização abstrata das qualidades da dama (cantiga de amor) ≠ exposição concreta dos defeitos da dama (esta cantiga);
» desvalorização da imagem da mulher ideal das cantigas de amor.
 
 
Paródia ao amor cortês
 
Na cantiga de amor, o trovador exprime os sentimentos amorosos pela dama (destacando a sua coita de amor, que o faz enlouquecer ou morrer). Por seu turno, a mulher é a suserana a quem o trovador «serve», prestando-lhe vassalagem amorosa.
Esta cantiga de escárnio, através da ironia e da paródia, ridiculariza o amor cortês e o elogio exagerado da «dona» amada, porque é dirigida a uma «senhor» que não reúne os atributos da mulher da cantiga amorosa: formosura, juventude e bom senso / juízo.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
Nível fónico
 
Estrofes: três sextilhas isométricas.
▪ Metro: versos decassílabos e eneassílabos; refrão octossílabo.

▪ Rima:     - aaabab;
- emparelhada e cruzada;
- consoante ("queixar"/"cantar");
- grave ("via"/"sandia") e aguda ("queixar"/"cantar");
- rica ("queixar"/"cantar") e pobre ("via"/"sandia").
Cantiga de refrão (influência da cantiga de amigo), cuja importância advém:
- da apresentação irónica das três características negativas da "dona", que se opõem às do cânone feminino da cantiga de amor;
- de ser um reforço da crítica pela repetição (três vezes);
- de apresentar um ritmo ternário.
▪ Encavalgamento: vv. 8-9, 14-15, etc.
 
Nível morfossintático
 
. Vocabulário de teor negativo.
. Adjetivação: o refrão que fecha cada uma das estrofes contém três adjetivos extremamente negativos que traduzem as características da «dona».
. Repetição de versos e palavras de teor negativo, relativamente à mulher.
. Anáfora: reforço da caracterização negativa da "dona".
. Verbos, sobretudo louvar, usado ironicamente.
. Interjeição Ai: expressa o tom pseudo-lamentoso, pseudo-recetivo.
. A oração adversativa: marca uma viragem para a expectativa (inútil) do louvor ("... mais..."; "... toda via...").
. Dois pontos: abrem sobre o refrão um grau máximo de suspense relativamente ao modo como a mulher será louvada.
. Paralelismo semântico e estrutural (influência da cantiga de amigo): 1.ª copla quase igual à 2.ª, quase igual à 3.ª ® sátira obsessiva e cruel.
 
Nível semântico
 
. Jogo com o verbo «louvar»: passado – «nunca vos eu loei»; presente – «nunca louvo», «quero já loar»; futuro – «vos loarei», «um bom cantar farei».
. Apóstrofe: o trovador dirige-se a alguém, de forma irónica, mas não lhe dá a palavra.
. Exclamação e interrogação (indireta): traduzem ansiedade.
. Ironia: o trovador diz o oposto daquilo que pensa, promete uma coisa (elogiar a mulher) e faz o seu contrário (satiriza-a). A ironia reforça a intenção crítica e satírica do trovador.
. Disfemismo: "dona fea, velha e sandia".
. Sarcasmo: “dona fea, velha e sandia”. A rudeza destas palavras e a evidência de que a promessa de a louvar não passava de ironia dão lugar ao sarcasmo
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de escárnio:
. sátira/crítica velada: identificação vaga ("dona") do destinatário – não é referido o seu nome;
. linguagem humorística e irónica;
. finalidade de divertir e ridicularizar.
 
1.1. Formal: cantiga de refrão.
 
 
Valor documental
 
A referência excessiva, por parte de muitos trovadores, à "morte de amor" mereceu a denúncia vigorosa da falta de sinceridade dessa confissão. Tratava-se de mais uma convenção retórica que, usada em excesso, caía no ridículo.
Pêro Garcia Burgalês alude às muitas cantigas em que Rui Queimado diz morrer de amor e ironiza ao contrapor "morrer de amor" e "ressurgir ao tercer dia" para concluir que assim ninguém teria medo de morrer.
A retórica das cantigas de amor continha ainda outras convenções, como ensandecer, não poder viver sem a visão da "senhor". Interessante seria avaliar onde termina a sinceridade e onde começa o artificialismo, sabido que este se tornava quase inevitável devido ao fosso que separava o amador da sua amada, semelhante ao que separava o servo do senhor.
Esta cantiga parodia o amor e o louvor da dama, que constitui a temática da cantiga de amor.
 

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