Português: 29/08/23

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Ciência do narrador de O Delfim


    O narrador não se estabelece no plano da posição de focalização zero, ou narrativa não focalizada, que lhe permitiria saber tudo sobre todos – omnisciente, portanto. Pelo contrário, ele sabe tanto quanto as outras personagens. Talvez um pouco mais porque procura a informação, recolhe-a e analisa-a – daí o escritor-furão. Ou seja, estamos perante um caso de focalização interna.
    Não obstante, se o narrador não é omnisciente, como se explica a longa e pormenorizada descrição do espaço íntimo de Maria das Mercês no capítulo XXV? Trata-se de pura imaginação.
    O narrador sabe muitas coisas, mas ignora outras tantas. De facto, os mistérios subsistem n’O Delfim, como, por exemplo, as mortes de Domingos e de Maria das Mercês, e que constituem a intriga mais evidente (ao nível mais superficial). Assim sendo, factos, etc., o que coloca o romance na esfera do romance policial, constituindo o narrador o detetive. Não é por acaso que se fala de «crime perfeito», de enigma da Dama das Unhas de Prata e no diálogo que o narrador e Palma Bravo travam. Frequentemente, aquele invoca, mesmo que ironicamente, o nome de Sherlock Holmes. Também não é por acaso que surge no texto uma transcrição da revista «Merkur» que relata um crime. Em suma, não é por acaso que o ritmo da narrativa se faz com frequentes alternâncias, encaixes e elipses.
    No entanto, os mistérios não ficam por aqui. Maria das Mercês morreu acidentalmente, foi assassinada ou quis, de facto, suicidar-se? Quem é estéril: Maria das Mercês ou Tomás, que sempre se recusou a fazer testes? Ou seriam os dois? Ou seria Tomás um macho orgulhoso, mas impotente? Seria homossexual? O que é que se passou na noite do bar da Shell?
    O narrador não é propriamente um detetive, mas parece sê-lo, tendo em conta que é um escritor-furão, curioso, insaciável, permanentemente em busca de uma verdade. Ele recolhe as versões de todos os informantes, confronta-as e vai formulando hipóteses. Parece aproximar-se da verdade, muda de pista, debruça-se sobre pormenores. Neste contexto, o discurso é modalizado por expressões de dúvida como «talvez», «é de crer», «supõe-se», «conta-se», e várias formas verbais no modo conjuntivo. A sua «investigação» é constantemente dificultada pelo surgimento de boatos, preconceitos e mitos (as versões distorcidas da Estalajadeira, do Batedor e, sobretudo, a do Cauteleiro). Além disso, há a verdade sobre a última noite dos Palma Bravo, guardada pelo zelo do Regedor (que não quer alimentar intrigas) e pelo laconismo do Padre Novo. Apenas eles, juntamente com o médico que fez a autópsia, sabem o que aconteceu (veja-se o capítulo XVIII).
    Mas há outros mistérios, segredos íntimos, informações confidenciais, sobre os quais pouco se sabe em concreto, dado que as provas e os testemunhos ora são omissos, ora inconcludentes. Instaura-se um nível de incerteza a partir dessa realidade polissémica: “Interessa mais a suspensão do facto do que a sua decifração”. Deste modo, o narrador envolve o leitor numa teia de incertezas, sendo frequentemente chamado a participar na decifração. Estaremos na presença de uma estratégia para suscitar a atenção do leitor?
    Basicamente, a estrutura do romance assenta no percurso do caçador que chega à Gafeira e se instala numa hospedaria conhecida. “Cá estou” é a expressão inaugural que institui o tempo da narração: o presente do indicativo, o tempo da pseudo-objetividade. Trata-se de uma narração que ocorre em simultâneo com o percurso do narrador, que frequentemente dá notícia do tempo que corre. A outra parte são excursos, as divagações e as lembranças, que dão densidade à obra. Neste âmbito, desempenha um papel importante a memória, uma memória seletiva que transporta o narrador no espaço e no tempo – e o leitor com ele. A memória ganhará mais relevância ainda quando é instigada pela insónia das personagens: a recapitulação de acontecimentos, a reconstituição de factos, as lembranças espontâneas e as divagações preencherão esse vazio doloroso causado pela insónia.
    Um outro elemento importante na estrutura do romance é o quarto, o espaço onde o narrador passa grande parte do seu tempo e de onde frequentemente se evade por meio do pensamento. Primeiro, do ponto de vista logístico, porque permite um olhar distanciado, sobranceiro. Fica num primeiro andar e tem uma janela («vigia», «postigo») sobre o largo, a rua e o café – espaços de confluência, conhecimento, comunicação. Ao longo, avistam-se os montes e a Lagoa, vê-se o céu.
    Por outro lado, o quarto é, por excelência, um lugar de introspeção, de onde ele parte para reflexões, associações (“De raciocínio em raciocínio irei longe”), evade-se em recordações obsessivas através do seu reflexo nas vidraças espelhadas da janela (como no espelho de Alice?), vendo-se e revendo-se no passado, transfigurando-se noutros. No quarto, existem outros pontos de fuga: o caderno de apontamentos, a Monografia, a aguardente no cantil; as distrações exteriores (passos, vozes, ruídos), o fumo e o nevoeiro (a bruma como fator encantatório). Há, em suma, um acordar e a transição, transformação ou metamorfose é quase impercetível. O narrador sente-a, pressente-a.
    Outro elemento a ter em conta é o jogo, também ele associado à decifração de enigmas, à interpretação de símbolos e metáforas. Todavia, apresenta-se também sob outras formas: os jogos verbais (o “jogo do olho-vivo”), os provérbios e trocadilhos); o jogo de “bridge” no café, protagonizado pela jovem das calças de amazona e os caçadores; a caça, jogo de vida ou morte.
    Em suma, o narrador, deste modo, gere a narrativa de forma artificiosa jogando com o tempo (anacronias: analepses, prolepses, elipses, digressões) e com o espaço (interiores, exteriores, enquadramentos, perspetivas, panorâmicas, pormenores), confundindo até as coordenadas.

O Senhor Ventura, de Miguel Torga


    O Senhor Ventura é um alentejano de Penedono que, aos vinte anos, vai cumprir o serviço militar para Lisboa, onde se distingue pela sua irreverência e pela habilidade para desenrascar pequenas situações ou ocorrências e pelo assassínio de um homem numa taverna, ato que não se consegue provar, mas todos suspeitam de si. Por isso, é enviado para África, onde se envolve, amorosamente, com a filha de um oficial e, descoberto, acaba por desertar e envolve-se no tráfico de ópio por mar. Após assassinar um fiscal britânico quando este se preparava para abordar o barco (mais uma vez sem testemunhas) decide voltar a terra, deslocando-se para a cidade de Pequim, para uma garagem da casa Ford. Aí, encontra outro desertor, um minhoto de nome Pereira, dono de um «local» onde serve refeições, até ao dia em que se envolvem numa rixa com soldados americanos e são obrigados a fechar o «estabelecimento».
    Decidem então ir para a Mongólia entregar duzentos camiões da Ford ao governo chinês. A aventura seguinte é o rapto do velho milionário Chung Lin. O desejo de regressar à pátria é suspenso pela montagem de um arsenal que forneça armamento às várias fações em guerra na China, após umas febres que o afetaram e das quais foi salvo graças aos esforços tenazes de Pereira. Durante um assalto feito pela fação rebelde do exército chinês, o Sr. Ventura perde tudo menos a vida. Menos afortunado é Pereira, que morre e é enterrado no deserto.
    De novo em Pequim, um mês depois, apaixona-se por Tatiana, com quem casa. No entanto, ela é uma mulher rebelde, que não o ama, não é prendada (nem cozinhar sabe), e os dois agridem-se regularmente. Ao amor dele corresponde apenas a atração física dela.
    O nascimento do filho Sérgio leva-o a procurar uma vida economicamente mais estável e menos feita de expedientes, daí que resolva distribuir por vários locais da cidade máquinas de jogo. De seguida, monta uma garagem de táxis e aprende a ler e o dinheiro começa a crescer.
    Intuindo que algo está para mudar na China, vende os carros, pega fogo à garagem, recebe o dinheiro do seguro e monta, num bairro discreto, uma fábrica de heroína. Denunciado o negócio da heroína, o Sr. Ventura é repatriado, deixando na China o filho e a mulher, esta com uma procuração para gerir o que resta da sua fortuna.
    Em Penedono, aluga a herdade do Farrobo por cinco anos com intenções de a fazer render bom dinheiro e descreve à sua mulher, a russa Tatiana, a notícia, mas a resposta demora um ano a chegar. Acumulando graves prejuízos na exploração da herdade durante os primeiros anos, chega a Portugal o filho de oito anos pela mão do Sr. Gomes, que lhe relata o que sucedeu nesses quatro anos na China. Em suma, a mulher levara uma vida de dissipação com amantes, primeiro um turco e depois um inglês.
    A colheita do quinto ano é abundante. O Sr. Ventura paga as dívidas reparte os lucros entrega a herdade, uma chave ao filho, que entretanto colocara num colégio de Lisboa, e retorna à China para se vingar. Passado meio ano de procura obstinada e obsessiva por meio Oriente, encontra finalmente Tatiana em Xunquim, ou melhor, encontra-o ela a morrer num hospital, vitimado por um cancro no fígado.
    Enterrado nessa cidade, o filho é expulso do colégio por falta de quem pague as mensalidades, para o Farrobo, onde o velho Gaudêncio o acolhe e põe a guardar ovelhas. "Pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou."

Séries de animação do meu tempo: "Os Estrumpfes"


    Os Estrumpfes, ou Smurfs, surgiram em 1958, no n.º 1071 da revista Spirou, enquanto personagens secundárias de uma história intitulada "A Flauta de Seis Buracos", da banda desenhada Johan et Pirlouit. Contudo, tornar-se-iam um fenómeno de popularidade sobretudo na década de 1980, quando os estúdios Hanna-Barbera lançaram os desenhos animados.
    Os Estrumpfes foram criados pelo cartunista e roteirista belga Pierre Culliford, mais conhecido por Peyo. Em 23 de outubro de 1958, Johan e Pirlouit são encarregados de recuperar uma flauta mágica, que exigia alguma feitiçaria por parte do assistente de Homicídio. Deste modo, eles encontram uma pequena criatura humanoide e pele azul, vestida com roupas brancas, chamada Schtroumpf, acompanhada por um grupo de figuras parecidas com ele, com um líder idoso que usa roupas vermelhas e tem uma enorme barba branca: é o Grand Schtroumpf.
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