Português: 20/11/22

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Domingos


             À semelhança do que sucede com o Delfim, Domingos surge rodeado de vários epítetos: Domingos, criado, ironicamente escudeiro, mestiço, etc., sempre em função das características profissionais ou físicas.
            Esta personagem surge muito próxima do patrão, no entanto consuma o adultério com a esposa daquele, de quem também parece estar dependente. É verdade que procurou o Padre Novo dois dias antes da consumação do ato para fugir dali. Tratar-se-ia de uma tentativa desesperada para evitar qualquer desgraça?
            Domingos tem várias razões para odiar o patrão: tem de tratar dos cães, por quem não parece ter grande afeto; por outro lado, a sua própria deformação física constitui razão suficiente para tornar amargo um homem «mestiço», que não se pode identificar por completo quer com a etnia branca quer com a negra. Apesar de tudo isso, não detesta Tomás Manuel, antes mantém com ele uma relação quase filial e de fidelidade, baseada no medo, demonstrando, assim, não possuir qualquer consciência de classe.
            Domingos é “maneta e mestiço… a assopear palavrões, cortado pelo sol e a balançar o braço decepado (…) diante das feras (…) tornou-se frio (…) falou-lhes em tom comedido (…) com força e tão curto (…) movimentos precisos e eficazes da mão. Mão arguta (…) mão controlada.”, é uma figura que domina as situações, ou pelo menos há frieza, domínio, argúcia e controlo que chegam para dominar completamente as feras. É possível que Domingos tenha atingido o seu limite e não esteja mais disposto a ser humilhado. Também se poderá levantar a hipótese de a personagem ter sido usada como um objeto por ambos os membros do casal.
            Por último, tendo em conta a época em que a obra foi escrita – ditadura salazarista e período colonial –, Domingos representa o africano que foi escravizado e usado durante séculos, até ao dia em que ganhou consciência da sua condição e do seu direito à autonomia.

Caracterização de Maria das Mercês


             Maria das Mercês preenche o papel da mulher na ideologia dominante dos anos 60 do século XX em Portugal, simbolizado pela povoação da Gafeira (metonímia).
            Segundo a doutrina de Salazar, a vida em sociedade deveria assentar em três princípios: Deus, Pátria e Família, os quais se deveriam aplicar tanto a homens como a mulheres. No entanto, no primeiro caso, bastava que mantivessem a fachada no que respeitava a Deus e à Família, visto que da defesa da Pátria não podiam eximir-se, no contexto da guerra colonial. Assim sendo, o peso das instituições recaía todo sobre as mulheres e tudo era feito para que elas se mantivessem afastadas do pecado, ou seja, da sua sexualidade, e presas à procriação, porque elas eram o esteio da Família e, como havia guerra em África, deveriam apoiar incondicionalmente os homens, sendo boa mãe, boa esposa, boa irmã, boa filha, etc. Maria das Dores é a burguesa alienada, produto da ideologia do estado Novo, conforme se pode comprovar através do seguinte quadro:
 

Deus

Pátria

Família

a Igreja

a retaguarda amável

7 anos de casamento

o colégio de freiras

o serviço da esposa

A infertilidade só poderia ser feminina (vide Memorial do Convento)

as dádivas aos pobres

o sorriso à chegada

a obediência ao marido

a ceia de Natal com os trabalhadores

 

o ensino do criado

 
            O marido ausenta-se e deixa-a sozinha, entregue a si própria: “… dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães… fumando, cozendo bolos…”, “Sete anos de esposa, a passear de cá para lá”. A libertação da sua sensibilidade contida ocorre através de pequenos prazeres secretos como os passeios a cavalo e a masturbação.
            Neste contexto, Maria das Mercês aparece como inabitável, infecundo, incapaz de dar um filho ao casal. É a voz do povo que se faz ouvir: a mulher podia arcar com a exclusividade destas culpas, ao contrário do homem, que ficaria socialmente diminuído se tal lhe acontecesse.
            Chega um momento em que ela não pode suportar mais a situação incongruente, pelo que alguma coisa terá de mudar. O mesmo teria de suceder à sociedade portuguesa da época, que vivia à margem do mundo, pelo que a mudança seria necessária, o que veio a concretizar-se com o 25 de abril de 1974, acontecimento que teria grandes repercussões na evolução do papel social da mulher.
            Por último, a vida de Maria das Mercês ficará marcada pelo «crime perfeito», como dizia o marido sempre que se referia ao caso da Dama das Unhas de Prata, que provocara a morte «post coitum», visto que ela causa o falecimento de Domingos ao relacionar-se com ele sexualmente, já que este tinha “coração de passarinho”. O que a terá levado a agir assim? O ciúme? A raiva de ser preterida? O desejo de vingança? O despertar da sua sexualidade? Se, posteriormente, se suicidou, teve um acidente durante a fuga ou foi assassinada pelo marido, ninguém o sabe.

Caracterização do Delfim


             O Delfim é Tomás Manuel da Palma Bravo, a personagem principal da obra, o Engenheiro, a figura em torno da qual gira a narrativa e que é o elemento que possibilita o retrato da situação que se vivia em Portugal na época.

            Ele é o herdeiro das tradições machistas, não só da família, mas também do homem português, característico da burguesia salazarista. De acordo com as normas da época, Tomás Palma Bravo deveria ser superior a tudo e a todos, deveria ser o protetor, o primeiro em qualquer ocasião, o chefe, o sábio, o forte, superior aos trabalhadores, fossem eles camponeses-operários, criados, criadas, mas sobretudo em relação às mulheres, incluindo a própria esposa, dado que era inaceitável que qualquer mulher fosse considerada igual ao homem. De facto, na época o género feminino era encarado como um português de segunda, cuja existência se deveria resumir a atender aos desejos e necessidades do homem. Assim, este jamais se poderia mostrar fraco. Mesmo que o fosse, teria de encobrir a sua fraqueza, mesmo que através dos seus mastins, como é exemplificado pelo excerto seguinte: “o engenheiro anunciado por dois cães…”.

            Ao longo da obra, tomamos conhecimento dos vários epítetos com que é tratado: o nome próprio completo, o Engenheiro, o Amo, o Infante, Tomás Manuel (como todos os seus antepassados), membro do casal Palma Bravo, Tomás Manuel Undécimo. Seja qual for a denominação, ele é o Delfim, o centro das atenções da Gafeira e de todos os seus habitantes.

            Tomás Manuel é o chefe incontestado cujos suportes são a mulher e o criado. De facto, Maria das Mercês deveria acompanhá-lo perante o povo da Gafeira, enquanto Domingos o deveria fazer durante as suas visitas a bares e prostíbulos, tudo de acordo com a sua vontade e sem terem o direito de exigir ou sugerir o que quer que fosse, desde logo porque não eram considerados seus iguais. Só ele sabia tudo, ele era o senhor de ambos. Nada deveria ser discutido e nunca seria contestado. Só ele detinha o poder.

            Na realidade, nem sequer tem a coragem de se submeter aos exames necessários para esclarecer a origem da infertilidade do casal, isto é, determinar quem era estéril: ele ou a esposa, questão que ficará por esclarecer: “… não o vejo a ir à porta do médico e sujeitar-se a um atestado de esterilidade.” Tomás Manuel esconde o problema através das suas deambulações noturnas e do desprezo pela ciência e pelos seus avanços: “Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem-nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência.” Tudo isto demonstra uma grande falta de segurança e de confiança em si próprio. Tal como sucede, por exemplo, em Os Maias, no célebre episódio das Corridas de Cavalos no Hipódromo, vemos aqui o contraste entre o ser e o parecer em torno desta personagem, que insiste no culto das aparências. No final, tudo se desmorona em seu redor, desde logo porque nada nem ninguém pode parar a evolução do tempo e das mentalidades.

            A relação que mantém com Domingos é semelhante à que teria com um animal de estimação. Tomás Manuel diverte-se ao ver a falta de desenvoltura do criado em certas áreas, procurando iniciá-lo nos vícios e desinteressando-se completamente por saber sequer se isso dizia alguma coisa ao outro. Tudo se justifica pelo paternalismo do Delfim, que pretende fazer de Domingos um bom machista como ele, o que não se concretiza, dado que o criado depende completamente do Engenheiro, a única pessoa com quem convive, daí as suas falas sistemáticas com os cães e o entendimento especialíssimo com as máquinas.

Conceção das personagens em O Delfim

             Como não se trata de uma obra tradicional, as personagens são objeto de um tratamento diferente do habitual num romance.

            Em O Delfim, as personagens representam diferentes tipos sociais, planas, dado que não apresentam evolução interior, os seus comportamentos não se alteram ao longo da narrativa. A única exceção será Maria das Mercês, uma personagem redonda ou modelada, e talvez Domingos. Ambos ganham força interior e mudam o seu percurso existencial.

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