Português: 02/03/20

segunda-feira, 2 de março de 2020

Análise do capítulo XX de Viagens na Minha Terra

Estrutura do capítulo

1.ª parte (do início até “à menina do seu nome”): Apresentação de um quadro idílico: Joaninha, adormecida, no meio da natureza.

2.ª parte (de “Com o aproximar dos soldados” até “há dois anos?”): Caracterização de Carlos.

3.ª parte (de “Dizendo isto” até “Agora vamos, Carlos”): Encontro e conversa entre Carlos e Joaninha.

4.ª parte (de “E falando assim” até ao fim do texto): As personagens dirigem-se para o vale de Santarém.


Retrato de Joaninha

Joaninha é uma jovem campestre, simples e de sentimentos e intenções puros, e revela-se espontânea na forma de agir, bem como terna e afetuosa.

Fisicamente, possui um corpo esbelto (“formas graciosas”) e o rosto “expressivo”.

Joaninha representa a pureza, a autenticidade e a simplicidade da Natureza. Por essa razão, Garrett mostra grande cuidado na descrição do cenário que a envolve, onde predomina a verdura.

Joaninha, adormecida, surge como um elemento indissociável (isto é, enquadrado) do espaço em que se encontra; personagem e espaço parecem fundir-se num todo, iluminadas pela luz do crepúsculo, de modo que é difícil distinguir os limites de uma dos da outra. Este enquadramento da personagem na natureza serve para estabelecer uma relação de afinidade e sintonia entre ambas, de perfeita harmonia e sintonia, que permite sugerir que Joaninha é natural, autêntica (sem o artifício de outras mulheres) e simples.

De facto, a sua apresentação de Joaninha é associada a um quadro de naturalidade. Desde logo, é apresentada como alguém com quem o narrador se deparou por acaso e é descrita exatamente dessa forma: adormecida, nem sentada nem deitada, num tufo de erva, com as formas do corpo realçadas pelo assento natural em que se encontra. Além disso, a expressão «sem arte nem estudo» sugere exatamente essa naturalidade do quadro de Joaninha adormecida.

▪ Joaninha tem os olhos verdes, o que constitui uma alusão à esperança e à fecundidade da terra verdejante. No fundo, representa a própria terra-mãe, ao mesmo tempo que evoca um passado que constitui uma espécie de paraíso perdido: «Sobre uma espécie de banco rústico de verdura, tapeçado de gramas e de macela brava, Joaninha, meio recostada, meio deitada, dormia profundamente”.

O rouxinol:
a) Simboliza o sentimento amoroso: Joaninha, adormecida, era embalada pelo canto harmonioso do rouxinol, que a acompanhava. O barulho dos soldados silenciou-o, mas a chegada do misterioso oficial inspirou-lhe o canto, que se tornou um prelúdio do amor. Símbolo, como Joaninha, da pureza do Vale, o rouxinol faz-se aqui eco do sentimento a despertar nela.

b) Representa a graciosidade e o caráter natural de Joaninha; surge como o prolongamento metonímico da natureza e da personagem que se lhe associa. A “torrente de melodias, vagas e ondulantes como a selva com o vento, fortes, bravas, e admiráveis de irregularidade e invenção, como as bárbaras endeixas de um poeta selvagem das montanhas” não constitui uma mera função de enquadramento decorativo: essas melodias trazem consigo os sentidos da espontaneidade, da naturalidade e da criatividade anticonvencional que se concentram nos olhos verdes de Joaninha.
c) Serve para preparar o encontro amoroso entre Joaninha e Carlos.

Características românticas:
» Joaninha representa a mulher-anjo;
» a paisagem serve de enquadramento ao reencontro de Carlos e Joaninha;
» o rouxinol: inspira premonições como o sofrimento, a desilusão amorosa, a morte (Menina e Moça).


Retrato de Carlos

Num segundo momento, verifica-se a entrada em cena de uma nova personagem (um oficial), procedendo o narrador, de seguida, à elaboração do seu retrato, enquanto Joaninha permanece adormecida.

Antes de introduzir Carlos, o narrador dirige-se familiarmente, num registo coloquial, às «amáveis leitoras» (narratário), pois serão as que maior interesse terão em conhecer o oficial. Por um lado, mais uma vez a mulher é «chamada» quando se vão tratar questões do foro amoroso; por outro, o narrador consegue interessar quem o lê na história, quase levando a que sejam também parte dos acontecimentos.

▪ A utilização da expressão «entrada em cena de um novo ator» reflete a novidade da escrita das Viagens, visto que o narrador interpela constantemente o leitor, optando por uma escrita de caráter conversacional e informal. Por outro lado, a forma como a novela é introduzida no relato da viagem, o predomínio do diálogo e a constante interação com o leitor assemelham a obra a um texto dramático, acentuando o seu hibridismo.

Este retrato é feito a partir do aspeto físico para o espiritual.

O narrador apresenta a personagem envolta em grande anonimato e mistério, designando-o meramente por “O oficial”, estratégia que favorece a curiosidade das “amáveis leitoras”.

Idade: menos der 30 anos.

Fisicamente:
» é um jovem militar, mas já com feições de homem feito/aspeto de adulto e um rosto marcado pela vida e pelas preocupações;
» é magro, mas de peito largo e forte;
» é de estatura mediana;
» tem barba e cabelos pretos;
» tez / pele clara;
» os olhos são vivos, pardos e não muito grandes, mas eloquentes;
» a boca é pequena;
» a testa é alta;
» tem um busto clássico;
» está vestido com uma farda militar.

Psicologicamente:
» é gentil e determinado;
» é elegante e de passo enérgico;
» a compleição e os olhos pardos e grandes indiciavam que se tratava de um homem de talento e com a nobreza de um «caráter franco, leal e generoso», isto é, inteligência, talento e alguma irreflexão;
» tem uma personalidade «pouco vulgar»;
» é impulsivo, arrebatado e orgulhoso, ora sério, ora alegre.

A componente física do retrato serve como veículo de acesso às características psicológicas e emocionais.

▪ A descrição de Carlos é feita de forma gradual e entremeada de divagações. O narrador começa pela sua estatura, o vestuário, os olhos, a boca, o rosto, o cabelo, o busto e termina com uma síntese que remete para a excecionalidade da personagem: «Daquele busto clássico e verdadeiramente moldado pelos tipos da arte antiga, podia o estatutário fazer um filósofo, um poeta, um homem d’estado, ou um homem do mundo, segundo as leves inflexões d’expressão que lhe desse». As divagações que acompanham a descrição acentuam-lhe os traços românticos.

▪ O narrador foca especialmente os olhos e o olhar de Carlos: «Os olhos pardos e não muito grandes». Ora, o olhar do homem romântico vê coisas que os outros não podem/conseguem ver e transcende a realidade comum. Daí que os olhos da personagem se caracterizem por «uma luz e viveza imensa, [que] denunciava o talento, a mobilidade do espírito».

Por outro lado, o narrador valoriza em especial certos pontos estratégicos da fisionomia, em grande parte coincidentes com o que em Joaninha é também descrito: os olhos, lugar preferencial de projeção do temperamento e das emoções, a boca e o rosto.

▪ A comparação «mas o peito largo e forte como precisa um coração de homem para pulsar livre» destaca a importância que o coração assume para o homem romântico. Por outro lado, a antítese entre o «corpo delgado» e o «peito largo» da personagem realça a valorização dos sentimentos, associada à ideia de um coração grande e generoso.

A fisionomia revela uma personagem marcada por traços de excecionalidade bem típicos do herói romântico:
» a superioridade e impulsividade;
» o viver pelo sentimento;
» a luta por causas;
» as antinomias (“fácil na ira, fácil no perdão, etc., mas sobretudo a oscilação entre os polos da mobilidade e da gravidade);
» o pendor da marginalidade e para o isolamento existencial que se adivinham no “caráter pouco vulgar e dificilmente bem entendido”;
» ser incompreendido e com características de uma certa genialidade.

Estes factos são confirmados pela trajetória biográfica de Carlos: ao contrário de Joaninha, ele é dominado por uma sistemática tendência para a mudança – a partida do vale de Santarém, a experiência no exílio, o regresso ao vale, seguido de nova partida (definitiva), as mudanças no campo amoroso e, por fim, no campo social.

Crítica: o retrato é interrompido pelo narrador para criticar o desprezo a que foi votado o uniforme militar nacional (patriotismo romântico): “Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações…”.


Encontro entre Carlos e Joaninha

Joaninha acorda e não quer crer que é Carlos quem está à sua frente, porque tinha sonhado que ele morrera, tal como a avó (presságio de tragédia), daí a grande emoção que evidencia, traduzida pelas pausas no seu discurso, marcadas pelas reticências, pelas exclamações e pelas repetições de palavras ou expressões.

É revelado o parentesco entre as duas personagens: são primos (“– Carlos, meu primo…”) e de algo que ultrapassa o mero parentesco familiar entre primos (“… sonhava com aquilo em que só penso… em ti.”; “e abraçaram-se num longo, longo abraço – com um longo, interminável beijo…”).

As duas personagens começam por se tratar por «prima(o)» e «irmã(o)» e por exprimir a saudade que sentiam um do outro, mas acabam por manifestar o amor que nutrem mutuamente, selado por um beijo.

Os sentimentos expressos por Carlos e Joaninha estão em consonância com o espaço em que se reencontram – o ambiente natural do vale. Assim, é com naturalidade e espontaneidade que manifestam os sentimentos puros que nutrem um pelo outro.

São também bem visíveis os preconceitos sociais que os envolvem: a preocupação com a honra (“E sós, sozinhos aqui a esta hora! (…) E que dirão? (…) Mas quem não souber, pode dizer…”).

A felicidade absoluta e perfeita das duas personagens não pode continuar, porque tudo é efémero. Se assim não fosse, «os anjos» trocariam o céu pelo paraíso que seria a terra: «Senão… invejariam os anjos a vida na terra”.

Um outro facto relevante consiste na revelação a Carlos da cegueira da avó.


Informações sobre a família

Introdução de duas novas personagens: Frei Dinis e a avó, cega.

Joaninha e Carlos são primos.

A cegueira da avó tem uma causa triste, não revelada ainda.

Carlos desconhece coisas, que Joaninha contará mais tarde.

Joaninha e a avó pensavam que Carlos tinha morrido.


Linguagem e recurso expressivos

Sinédoque: “o trato das armas” – é uma sinédoque da vida militar, visto que se associa a parte (as armas) ao seu todo (o exército, a carreira militar, na qual as armas são elemento essencial).

Estrangeirismos: demi-jour, coquette, boudoir, great coat.

Metáforas:
- «quando pinto, quando vou riscando e colorindo as minhas figuras»: designa o ato da escrita.

Comparação:
- com «pintores da Idade Média», que escreviam uma espécie de legendas por baixo das pinturas que pintavam, para que estas fossem mais bem compreendidas – o narrador faz o mesmo e as suas divagações correspondem às suas legendas.

Tom coloquial: «Voltemos ao nosso retrato».

Caracterização pela negativa: «Os olhos pardos e não muito grandes…».

Frases curtas.

Pontuação expressiva:
» frases exclamativas: «Carlos, meu primo… meu irmão!»;
» frases interrogativas: «Pois tu sonhavas?»;
» frases interrompidas pelo uso de reticências: «Tu não morreste…».

Vocativos: «Carlos, Carlos!».

Os últimos recursos referidos estão presentes, neste capítulo, de forma a recriar a linguagem oral e, simultaneamente, sugerir o estado de espírito de Joaninha, colhida de surpresa pelo inesperado encontro com o primo.

Mistura da cultura erudita e popular: por um lado, faz-se uso de formas de relacionamento informal com o interlocutor e, por outro, recorre a referências artísticas que só o leitor culto acompanha: o teatro, a pintura, a escultura.

Digressão: «Uniforme tão militar, tão nacional, tão caro a nossas recordações – que essas gentes, prostituidoras de quanto havia nobre, popular e respeitado nesta terra, proscreveram do exército… por muito português de mais talvez! deram-lhe baixa para os beleguins da alfândega, reformaram-no em uniforme da bicha!».

Coloquialidade: «Não pude resistir a esta reflexão: as amáveis leitoras me perdoem por interromper com ela o meu retrato».

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