O poema que serviu de base ao tema
musical foi composto em 1973 pelos compositores e intérpretes brasileiros Chico
Buarque e Gilberto Gil, para ser apresentado no programa “Phono 73”, que
divulgava os trabalhos, em duplas, dos maiores artistas agregados à editora
Phonogram.
A canção, graças ao seu conteúdo
profundamente crítico da situação política brasileira da época, acabou por ser
lançada apenas em 1978, tornando-se um dos maiores hinos anti-ditadura,
inscrevendo-se, portanto, no campo da música de protesto.
O tema do poema é a denúncia
da repressão, do autoritarismo e da violência que caracterizaram a ditadura no Brasil.
A composição abre com uma referência
bíblica a São Marcos: “Pai, se queres, afasta de ruim este cálice”. Esta citação
bíblica remete-nos para o calvário de Jesus Cristo, marcado pela perseguição,
pelo sofrimento e pela traição de que foi vítima. Por outro lado, ela contém um
pedido de um filho dirigido ao seu pai: o afastamento de si de um cálice. No
entanto, tendo em conta o contexto político brasileiro de então e a semelhança
de pronúncia entre o nome «cálice» e a forma verbal «cale-se» (semelhança essa
acentuada pela fonética do português do Brasil), é possível fazer outra leitura
desta passagem. Assim, o sujeito poético pede ao pai que afaste de si esse
«cale-se», isto é, implora-lhe que afaste a censura e a violência, dado que o
cálice contém «vinho tinto de sangue». Deste modo, o sujeito lírico estabelece
uma analogia entre a paixão (o sofrimento) de Cristo e o do povo brasileiro,
sujeito a um regime violento: na Bíblia, o cálice continha o sangue de Jesus;
no poema, o sangue é o das vítimas do regime.
Na primeira estrofe, o «eu»
interroga-se como será possível beber essa «bebida amarga», ou seja, como será
possível aceitar a amargura, a dor, o trabalho árduo e mal remunerado, como se
fossem coisas normais. Além disso, tudo isto é obrigado a aceitar calado, em
silêncio, uma referência clara à opressão e à ausência de liberdade de
expressão. De acordo com o próprio Chico Buarque, a «bebida amarga» é Fernet,
uma bebida alcoólica italiana que o cantor e compositor costumava beber.
Resta-lhe o peito, isto é, o que ele sente relativamente à situação e, quiçá, a
coragem e determinação para resistir.
O sujeito poético continua a
socorrer-se da linguagem metafórica de cariz religioso, afirmando-se «filho da
santa», subentendendo-se que se refere à pátria, entendida pelo regime político
como inquestionável, à semelhança de um dogma bíblico. Porém, preferiria ser
«filho da outra». Tendo em conta a sequência rimática, pode deduzir-se que o
termo a usar seria provavelmente «puta», contudo, por causa da censura, os
autores terão optado por uma linguagem mais «suave». O «eu» deseja outra
realidade, caracterizada pela inexistência da mentira, de autoritarismo e de
violência.
O início da segunda estrofe alude a
um método usado pela polícia militar: invadir, durante a noite, as casas das
pessoas, arranca-las das suas camas, prender umas e fazer desaparecer outras. A
consciência deste facto dilacera o sujeito poético, por acordar em silêncio
tendo consciência da violência que ocorria durante a noite e que,
eventualmente, também o atingiria («Se na calada da noite eu me dano»).
O sujeito lírico deseja soltar um
«grito desumano» contra a situação, procurando, assim, ser ouvido e combate-la.
O silêncio deixa-o atordoado, impotente, mas, apesar disso, conserva-se atento,
pronto para agir se surgir uma oportunidade. Entretanto, mantém-se passivo na
arquibancada, esperando que o «monstro da lagoa» surja. A expressão «monstro da
lagoa» remete-nos para o imaginário dos contos infantis, simbolizando o mal que
nos vem aterrorizar e que devemos temer. Neste sentido, a expressão poderá ser
entendida como uma metáfora da ditadura, do poder repressivo que estava
escondido, mas pronto para atacar a qualquer momento. Por outro lado, ela
designava também os corpos de pessoas desaparecidas que apareciam,
ocasionalmente, a boiar nas águas de um rio ou do mar, vítimas do regime
ditatorial.
A terceira estrofe abre com nova
metáfora – a da «porca gorda» –, que representa o governo ditatorial e corrupto,
que «já não anda», isto é, não funciona mais. A gordura remete para o pecado da
gula, ou seja, para a ganância que dominava a «porca», o governo, que, de tão
gorda(o), já não se consegue mexer. A «faca», nova metáfora, que simboliza a
violência e a brutalidade, já não «corta» por ter sido tão usada, ou seja, está
a perder força, eficácia. A alusão ao facto de ter sido muito usada sugere o
grau de violência que tem sido praticada sobre as vítimas pelas entidades
governamentais e policiais.
A referência à dificuldade de abrir
a porta representa o desejo de liberdade do «eu», que permanece silenciado, com
«essa palavra presa na garganta». De seguida, questiona-se de que adianta «ter
boa vontade», numa referência à passagem bíblica «Paz na terra aos homens de
boa vontade», sugerindo que não tem paz. De que adianta ter boa vontade para
com o governo se a paz não vem? Daí vem o «pileque homérico»: tudo estava tão
fora do lugar que é como se o mundo estivesse todo bêbedo.
Perante a impotência e a repressão,
mantém-se, no entanto, o pensamento crítico, mesmo que calado, representado pela
«cuca / Dos bêbedos do centro da cidade», isto é, as pessoas rebeldes e
desajustadas que procuram sobreviver e continuam a desejar e a lutar por uma
vida melhor.
A estrofe seguinte contrasta com as
anteriores, porque introduz a ideia da esperança, através da possibilidade de o
mundo não ser pequeno, ou seja, de o mundo não se limitar àquilo que o sujeito
poético conhece. Além disso, talvez a vida não seja um facto consumado, isto é,
talvez não tenha de ser tão dolorosa e a ditadura não seja uma circunstância
irremediável, eterna.
Numa atitude de rebeldia, o «eu» reclama
o direito a ser dono da sua vida e a escolher o que fazer com ela, de acordo
com os seus desejos e regras, sem ter de obedecer a ordens e regras de outrem.
É isso que significam os versos «Quero inventar o meu próprio pecado / Quero
morrer do meu próprio veneno». Para que tal se concretize, é necessário «perder
de vez tua cabeça», ou seja, é necessário derrubar o poder opressivo e
ditatorial. O sujeito poético deseja ser livre e reprogramar-se de tudo aquilo
que a sociedade conservadora lhe inculcou e deixar de estar subjugado a ela.
«perder teu juízo».
Os dois versos finais fazem
referência a métodos de tortura comuns na época: a inalação de óleo diesel por
parte das pessoas que eram presas. Além disso, apontam para uma tática de
resistência: fingir perder os sentidos, para que a tortura fosse interrompida.
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.
BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 144.
Análise da letra de Mulheres de
Areia
1. Memória
discursiva.
“Mulheres
de Atenas” faz referência a aspectos da sociedade ateniense do período clássico
e a alguns episódios e personagens da mitologia grega. A letra faz uma alusão
aos famosos poemas épicos Ilíada e Odisséia, ambos atribuídos a Homero.
Penélope, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia,
viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com
dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro,
os bens familiares atraem a cobiça de pretendentes, que julgavam seu marido
morto. Ela lhes dizia que só escolheria o futuro marido após tecer uma
mortalha, que, a bem da verdade, não fazia questão de terminar: passava o dia
tecendo e, à noite às escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E enquanto
seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notícia, ela se vestia de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se,
pedia e implorava para a deusa Atena que providenciasse o retorno de seu amado.
Helena,
filha de Zeus, era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua história é uma
das mais conhecidas na mitologia grega. Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi
seduzida e raptada por Páris, filho do rei de Tróia. Esse rapto deu origem à
guerra de Tróia, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em
Ilíada de Homero. Embora Ulisses não figurasse
no primeiro plano da Ilíada, nela é
freqüentemente mencionado, como um viajante conduzido à terras distantes e
herói da batalha de Tróia. Por essa escolha Homero, o poeta, relaciona as duas
epopéias. A esposa de Ulisses, a prudente Penélope, opõe-se à esposa infiel – senão
verdadeiramente culpada – Helena, que na Ilíada
é causa inicial da guerra. Por essas e outras razões a Odisséia
está intimamente ligada à Ilíada.
Assim,
como uma referência histórica de um momento da humanidade que data de 5 séculos
antes de Cristo, os autores de “Mulheres de Atenas” valem-se da ideologia de Odisséia para chamar a atenção das
mulheres que ainda “vivem” e “secam” por seus maridos ao estilo ateniense. Após
a narrativa da morte dos pretendentes de Penélope, o rei Agamêmnon, filho de Atreu,
lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referência
à esposa de Ulisses, descrita em Odisséia,
de Homero, na Rapsódia XXIV, p. 216, Abril Editora, edição de 1981:
“A alma do filho de Atreu
exclamou: ‘Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era o mérito da
que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensível Penélope, filha
de Icário, que soube manter-se sempre fiel a seu esposo Ulisses! Por isso,
jamais perecerá a fama de sua virtude, e os Imortais inspirarão aos homens
belos cantos em louvor da prudência de Penélope’”.
Os autores
também realizam um apurado trabalho com a linguagem, no que se refere tanto à construção
das frases quanto à seleção e ao emprego das palavras. Para obtermos uma melhor
compreensão desse texto, necessariamente teremos de percorrer os caminhos da história,
da mitologia, e reconhecer o diálogo aberto com outros textos, contido em
“Mulheres de Atenas”.
Entretanto,
não é nosso ofício nos deter extensivamente com a história que envolvia a
sociedade ateniense na época de Odisséia.
Por essa razão, e colaborando com o trabalho de estabelecer essas pontes, antes
do desenvolvimento de nossa análise, de forma sucinta, apresentamos um trecho
escrito pelo historiador Edward MacNall Burns sobre o comportamento das
mulheres de Atenas dos séculos V e IV a.C.:
“Embora o casamento continuasse a ser uma
instituição importante para a procriação dos filhos, que se tornariam os
cidadãos do Estado, há razão para se crer que a vida familiar tivesse declinado.
Ao menos os homens de classes mais prósperas passavam a maior parte do tempo longe
de suas famílias. As esposas, relegadas à uma posição inferior, deviam
permanecer reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos
maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras1,
algumas das quais eram naturais das cidades jônicas e demonstravam grande
cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a alguns de
seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era também
necessário, naturalmente, ter alguém para tomar conta da casa”.
É
comum, ainda nos dias de hoje, leitores menos avisados considerarem essa música
como uma apologia à submissão e à subserviência feminina ao machismo
brasileiro, a exemplo das mulheres da Grécia antiga. Aliás, isso aconteceu com
muitas mulheres que se diziam feministas, algumas leitoras vacilantes e
obtusas, que criticaram os autores porque julgaram a música “machista” –
segundo elas, a letra da música sugeria que as mulheres de hoje tivessem o
mesmo comportamento das mulheres da antiga Atenas. Não conseguiram perceber a
inteligente ironia do texto... Onde
se lê “Mirem-se...” sugere-se que se faça o contrário; dessa forma, o texto é
um hino contra a submissão das mulheres que se sujeitam às regras ditadas pelas
sociedades patriarcais. O próprio Chico Buarque, em uma entrevista à televisão
Cultura, ao ser indagado sobre o pensamento das feministas da época, disse: “Elas não entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se
no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é
exatamente ao contrário”.
1 mulher dissoluta, cortesã, prostituta elegante
e distinta.
2. Estrutura do
Texto.
Mesmo
sendo uma letra de música, portanto um texto para ser ouvido, “Mulheres de
Atenas” apresenta um primoroso trabalho formal. O texto se compõe, fundamentalmente,
de cinco estrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema
fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto, o oitavo e
o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Do ponto de vista
métrico, é inegável a habilidade do autor que abusou de uma métrica elaboradíssima:
os dois primeiros versos têm 14 sílabas poéticas: o terceiro, o quarto, o sexto
e o sétimo têm oito; o quinto e o oitavo têm quatro e o nono tem duas. Os dois
primeiros versos funcionam como refrão. As idéias básicas do poema são reafirmadas
pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe.
Por
conta desse rol de advertências podemos verificar uma situação cíclica de
ladainhas que não pretendem parar no poema. Ao introduzir no final do poema a repetição,
como se fosse iniciar uma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexão do
leitor que poderá buscar no subconsciente qualquer fato que se assemelha às
advertências anteriores para completá-lo. Exatamente por conta disso é que o
refrão vem no início de cada estrofe.
O
refrão apresentado nessa música nos remete à mesma estrutura usada nas cantigas
medievais. O paralelismo apresentado nele é bastante semelhante ao das cantigas
medievais, porém, com ligeiras alterações no segundo verso. O primeiro verso do
refrão sempre se repete identicamente em todas as estrofes, introduzindo uma
idéia de múltiplas escolhas no segundo verso, com poucas variações entre si em
todas as estrofes, mantendo-se fixas as formas “pros seus maridos” e “Atenas”.
A semelhança não reside somente no paralelismo, mas também na métrica de 14
sílabas poéticas, uma contagem marcante na Cantiga de Amor de Bernardo de Bonaval,
entre os séculos XII e XIII, aproximadamente. Essa não é, sem dúvida, a
primeira e única performance de Chico Buarque com semelhanças medievais. As
músicas “Atrás da Porta” e “Com Açúcar Com Afeto”, por exemplo, são claros
exemplos de cantigas medievais de amigo, de autoria masculina para um Eu-lírico
feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausência do amigo (amante). Esse é,
sem dúvida, um recurso marcante nas cantigas medievais também usado nas músicas
dos autores contemporâneos Caetano Veloso (Esse Cara) e Vinícius de Moraes (Pobre
Menina Rica).
3. O eixo
paradigmático da canção.
Do
ponto de vista sintático, podemos destacar os sujeitos presentes na canção (SN
– sintagma nominal) e seus respetivos predicados (SV – sintagma verbal). O
ponto mais importante da canção está no segundo verso de cada estrofe. Ele tem
sua carga significativa centrada no verbo, sempre em terceira pessoa do plural,
tendo como SN ELAS, as mulheres de Atenas.
Evidentemente, no coletivo, porém, representadas pelas figuras de Penélope e
Helena. Há, também, outro SN que é introduzido no enredo e faz parte do contexto,
sem importância central: ELES (soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc).
A menção de Helena, uma figura de conduta antagônica à de Penélope, é feita no
poema para expressar sua rara beleza. Assim seus maridos buscam os carinhos de
outras “falenas” (outro SN), mas mantém em suas residências uma mulher de
beleza maior para quem sempre voltam para os braços, sem reminiscência de seus
atos extraconjugais.
Mas o
eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença
dos verbos conjugados em 3ª pessoa do plural, como uma ação que ainda ocorre no
presente do indicativo. Eles se fazem presentes no segundo verso de cada estrofe,
denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas. Assim, vivem, sofrem, despem-se, geram, temem,
secam, são verbos se são colocados numa forma cíclica das funções e das
vidas daquelas mulheres. Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo viver
e se fecha com o verbo secar, isto é, morrer. No meio desse trajeto as mulheres
de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade única de gerarem os
filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras (falenas) ou
amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer. Esses verbos resumem uma
existência quase sem muito propósito e sem autonomia, como escravas de seus próprios
maridos.
4. Marcadores da
narrativa e da oralidade.
Há
muito, muito pouca característica de oralidade no poema, podendo somente ser
percebida no refrão, mais notadamente no segundo verso de cada estrofe com a
conjunção (em contração) “pros”. Na instância da narrativa não observamos
fortes demarcações de tempo (não se
define época ou momento histórico; considera-se um tempo genérico, falando no
presente, mas se referindo a um passado indeterminado). Quanto ao espaço, este é demarcado como a cidade
de Atenas, havendo menções de mares e de guerras (supostamente em terras
distantes, fato denunciado pelas ausências e naufrágios de seus maridos).
Quanto
aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a função da narrativa, exibindo a
condição dos sujeitos atenienses. Entretanto, do ponto de vista gramatical destacamos
que o autor dirige a narrativa ao conjunto de mulheres que se submetem aos valores
da sociedade patriarcal no instante presente. Esse conjunto está representado
gramaticalmente pelo sujeito da forma verbal de terceira pessoa do plural do
imperativo afirmativo mirem-se (vocês). Observe que o verbo no
imperativo não admite a classificação de sujeito indeterminado (a norma culta
diz que só se emprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatário da
mensagem, daí não ser possível classificar o SN de um imperativo como indeterminado).
5. Da instância
lexical.
Podemos
destacar, para elucidar um pouco mais o poema, duas palavras estrategicamente citadas
pelo autor: Cadena e Falena. Cadena
é um espanholismo que significa “cadeia, corrente”. Se consultarmos o Aurélio,
teremos a seguinte definição: “Meio empregado
para tirar dos chifres do touro, sem perigo, o laço que o prende”. Os dois
sentidos significam um aprisionamento ou acorrentamento. Assim, cadenas nos
remete à cadeia em que as mulheres de Atenas vivem, aprisionadas pelos desejos
e caprichos de seus maridos. Falena no
mesmo dicionário é explicada da seguinte forma: “Gênero de insetos
lepidópteros, noctuídeos, que reúne mariposas noturnas cujas larvas, fitófagas,
são nocivas a culturas vegetais”. Todavia o sentido emp regado aqui é metafórico,
referindo-se a uma prostituta.
Ao usar
o verbete falena, o autor estabelece uma das metáforas mais significativas do
poema. No sentido denotativo, falena significa mariposa de ação noturna, ou
seja, que brilha a noite. No sentido conotativo, o termo falena é empregado no
poema, fazendo uma alusão às prostitutas que brilham a noite, ou seja, que têm
vidas noturnas, que são procuradas à noite pelos maridos. Assim, falena
representa uma grande e importante metáfora que denuncia o comportamento narrado
pelo historiador Edward MacNall Burns quando diz: “O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado
por mulheres estranhas, as famosas heteras”, conforme já o dissemos
anteriormente.
Do
ponto de vista semântico, há um grande emprego de palavras com muita
aproximação para corroborar a idéia condicional das mulheres atenienses. Podemos
destacar algumas palavras mais próximas
semanticamente: amadas... carinhos; pedem... imploram; fustigadas... penas;
carícias... carinhos; gosto... vontade; sonhos... presságios; Por outro lado,
há outras mais distantes semanticamente:
amadas... fustigadas; violentos... amantes; violentos... carinho; defeito...
qualidade; amadas... abandonadas; encolhem... confortam. Mas o grande sentido
de distanciamento se encerra na grande antítese do poema: vivem... secam (no
sentido de morrem).
6. O diálogo entre os
textos (intertextualidade)
O
diálogo que “Mulheres de Atenas” estabelece com o poema Odisséia, com a história e a mitologia da Grécia Clássica é o que
podemos chamar de intertextualidade. O poema faz referências camufladas à obra
mitológica grega de Homero, mais notadamente à história de Penélope, à
despersonalização das mulheres de Atenas e à passagem pela ilha das sereias,
vivida por Ulisses.
É
importante notar a forma subentendida que o
autor se refere à Penélope no poema. Segundo a história de Penélope, em Odisséia, a virtuosa esposa de Ulisses
convence seus pretendentes de que deveria fazer uma túnica, que serviria de mortalha
para cobrir o corpo de Laertes, o venerável pai de Ulisses, que com a notícia
do casamento de sua nora, morreria de depressão, dado ao avançado da idade. E
como era costume das mulheres tecerem uma mortalha para os entes queridos que
se encontravam prestas a deixar esse mundo, Penélope usa desse artifício para
ganhar tempo com seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por ser uma
proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois na tentativa de fazer
com que seus pretendentes desistissem da idéia de disputar o lugar de Ulisses,
ela desmanchava a noite o que fazia durante o dia. Então a esposa do
aventureiro Ulisses é conhecida na mitologia grega como o símbolo da mulher que
tece longos bordados, enquanto seus maridos se ausentam por períodos delongados.
No poema de Chico Buarque essa referência à Penélope é feita na segunda
estrofe: “Quando eles embarcam, soldados / Elas tecem longos bordados / Mil
quarentenas”.
Ao se
referir às mulheres atenienses, o autor expõe a vida de completa subserviência
a que elas se submetiam para seus maridos. Em Ilíada, Helena é usada pela deusa
Vênus para servir como prêmio para o príncipe Páris. Ao apaixonar-se por ele,
ela é tida como vulgar, por haver deixado de amar seu verdadeiro marido. Essa
situação foi abordada e defendida por Górgias, um sofista e mestre da retórica
clássica grega, que escreveu um discurso intitulado Elogio a Helena, em 414 a.C.
A questão colocada por Górgias era que Helena, apesar de casada com Menelau e,
do ponto de vista moral ligada a ele, tinha também o direito de apaixonar-se
por Páris, dando vazão aos seus sentimentos. Na verdade, Vênus prometera a
Paris não apenas Helena, mas o amor de Helena, dizendo: “... Se o amor é um deus, como poderia ter resistido e vencer o divino
poder dos deuses quem é mais fraco do que eles? Se se trata de uma enfermidade
humana e de um erro da mente, não há que se censurar como se fosse uma culpa,
mas considerá-la apenas uma má sorte2”. Os versos que salientam uma absoluta despersonalização das mulheres
de Atenas estão na quarta estrofe: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem
defeitos nem qualidade / Têm medo apenas”.
Outra
referência à epopéia de Homero é o momento da passagem de Ulisses, em sua longa
viagem, pela ilha das Sereias, próximo ao golfo de Nápoles. Segundo o épico,
Ulisses tapou com cera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem
ao mastro do navio, para que nem ele nem a tripulação se deixassem seduzir pelo
canto de morte das sereias, todavia, ele queria saber como era esse canto. Essa
passagem não passa desapercebida pelo autor da música e é lembrada nos versos:
“O seu homem, mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. Sirenas, segundo o
Aurélio, é o mesmo que sirene (objeto emissor de som, muito usado em navios) ou
sereia. O aparelho que produz som tem esse nome por lembrar o hipnotizante
canto das sereias da mitologia.
2 GÓRGIAS, Fragmentos
y Testimonios, pp. 90-91. Tradução de Antônio Suáres Abreu, professor livre
docente pela Universidade de São Paulo, in: A Arte de Argumentar –
Gerenciando Razão e Emoção.
7. Os recursos
expressivos do texto
É
inegável que o texto de “Mulheres de Atenas” é bastante requintado e muito bem
elaborado, tanto na sua estrutura quanto nas referências à cultura grega do período
clássico. Numa primeira leitura ou acompanhamento da música somos fisgados pela
emoção estética da música, podendo até nos determos em algumas passagens
específicas. Mas só com sucessivas leituras, realizando um trabalho mais
racional (sem perder a emoção) é que chagamos à uma interpretação mais rica do
texto.
A
canção é inteiramente metaforizada. Isso faz dela um poema, embora haja um
indício de narrativa ao passar uma idéia do que acontece com as mulheres em
Atenas. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na
canção e sua significação é, quase sempre, muito sutil.
Outro
recurso muito presente é a antítese.
Ao expressar a condição feminina da mulher ateniense, o autor valoriza suas
palavras com idéias contrárias. Assim, podemos destacar: defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se;
gosto... vontade; amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc.
Outro,
menos abundantes, o anacoluto, é
usado apenas para manter a construção idêntica das estrofes: “Lindas sirenas
(sereias) / Morenas”; “Se confortam e se recolhem / às suas novenas / Serenas”;
“Querem arrancar violentos / Carícias plenas”; etc.
Alguns
eufemismos são empregados no texto para atenuar a condição de dramaticidade
exposta pelo autor. Destacamos alguns:
Há
outro recurso expressivo que aparece logo no início do texto, na primeira
estrofe, que denuncia a degradante condição das mulheres de Atenas em total
subserviência. É o emprego da Gradação.
Nesse caso, o autor estabelece uma gradação com clímax ao empregar uma seqüência
encadeada em ordem crescente: “Se
ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas / Cadenas” (cadeias).
O zeugma é outro recurso presente nessa
canção. O autor se vale desse recurso para imprimir um ritmo de reflexão maior
ao comparar a condição (ou estilo de viver) da mulher com a do homem; exemplo: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeito
nem qualidade / (elas) têm medo
apenas” / (elas) Não têm sonhos, só
têm presságios / O seu homem (tem)
mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. O zeugma é marcado pela
elipse de um termo integrante da oração que foi mencionado anteriormente.
Quando se refere à mulher, o autor usa o verbo “têm”, considerando que elas
não têm sonhos, mas apenas prenúncios e agouro a respeito do futuro,
portanto, têm medo apenas; já seu homem, esse tem o mar, o naufrágio (aventura)
e lindas sereias morenas, ou mulheres para seus deleites, enquanto as esposas
ficam encarceradas em casa, “banhando-se com leite”, pela ausência do ar da
rua.
Mas o
recurso estilístico mais importante dessa música fica reservado para a ironia. Esse recurso permeia toda a
canção e consiste em dizer o contrário do que se está pensando ou questionar certo
tipo de comportamento com a intenção de ridicularizar, de ressaltar algum
aspecto passível de crítica. É nesse sentido que o autor usa o verbo “mirem-se” para dizer não faça isso
jamais, ou seja, tome cuidado com isso; evite isso.
Não é a
primeira vez que Chico usa de ironia em suas canções. Na música “Bom Conselho”,
Chico trabalha ironicamente os provérbios tradicionais. Veja sua forma irônica
de se referir a eles:
8. Conclusão do ponto
de vista estilístico.
“Mulheres
de Atenas” é uma canção que pode ser considerada uma advertência para as mulheres
contemporâneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com
costumes praticados há quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grécia
antiga. Para expressar a idéia irônica que sugere uma mudança de vida, o autor
provoca intertextualidade com as maiores obras sobre a mitologia grega: Ilíada e Odisséia, ambas atribuídas a Homero. Ao se referir àquelas obras, o
poema traz como referência a história de duas mulheres que representam as mulheres
atenienses: Penélope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia, viu seu marido ficar longe de
casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta
fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tróia, representa um símbolo da
beleza para quem seus maridos voltam sempre correndo para seus braços, após
deitarem-se e fartarem-se com suas famosas falenas (mulheres dissolutas,
cortesãs, prostitutas elegantes e distintas).
Composto
de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo de rimas:
o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o
terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Os dois primeiros versos funcionam
como refrão. As ideias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que
traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe, entretanto, sugere
uma continuidade às advertências proferidas.
Os
sujeitos da história são as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso,
o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a
presença dos verbos conjugados em 3.ª pessoa do plural, como uma ação que
ocorre no momento presente. É por isso que a advertência é dirigida para as
mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, em completa subserviência
aos seus desditosos maridos, até morrerem. Tais verbos marcam uma situação
cíclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem, despem-se, geram, temem,
secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto é, morrer. No
meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade
única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas
heteras (falenas), ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer.
Não é
só do ponto de vista estrutural que “Mulheres de Atenas” é surpreendente. Semanticamente,
ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da canção fica por
conta do sentido irônico que o autor estabelece na mensagem que procura passar
para as mulheres que não perceberam que ainda vivem centenas de séculos atrás,
secando-se por seus maridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento
feminista trouxe várias conquistas nas últimas décadas e a evolução da condição
feminina tem alterado o comportamento geral, de homens e mulheres, no sentido
de um equilíbrio maior na distribuição de funções, no trabalho e na vida em
família. Entretanto, há mulheres que ainda não perceberam essa mudança nem a
importância de seu papel na sociedade contemporânea. Por isso, Chico faz a
advertência, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o
autor exprime-se do contrário daquilo que se está pensando, ou seja, NÃO é para seguir o exemplo daquelas
mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e façam o contrário!
A
ironia não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher.
O autor estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e
elevados, em relação ao sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada
estrofe veremos que sempre quando se refere aos homens atenienses, Chico faz
complementos enaltecendo suas características. O exagero e a insistência da
exposição das qualificações superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam
bastante a atenção daqueles homens que, na visão das mulheres de Atenas, são
heróis, mas, por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias, aventuras,
naufrágios e morte prematura, por inconseqüências de seus atos vulgares. Assim,
o que parece querer enaltecer as habilidades e as características dos maridos
atenienses torna-se outra ironia de grande dimensão. Os seus maridos, orgulho e
raça, poder e força, bravos guerreiros, procriadores, heróis e amantes, na
verdade são ausentes, agressivos, mal amantes, violentos, irresponsáveis e
infiéis. É nesse sentido que ironicamente o autor se refere à supremacia
masculina dos maridos das “Mulheres de Atenas”.
Esse é,
sem dúvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco
conhecido e não tão bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.
Trabalho da autoria do Professor José Anastásio Rosa