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quarta-feira, 2 de junho de 2021

Análise de "Cálice", de Chico Buarque e Gilberto Gil

             O poema que serviu de base ao tema musical foi composto em 1973 pelos compositores e intérpretes brasileiros Chico Buarque e Gilberto Gil, para ser apresentado no programa “Phono 73”, que divulgava os trabalhos, em duplas, dos maiores artistas agregados à editora Phonogram.
 
            A canção, graças ao seu conteúdo profundamente crítico da situação política brasileira da época, acabou por ser lançada apenas em 1978, tornando-se um dos maiores hinos anti-ditadura, inscrevendo-se, portanto, no campo da música de protesto.
 
            O tema do poema é a denúncia da repressão, do autoritarismo e da violência que caracterizaram a ditadura no Brasil.

            A composição abre com uma referência bíblica a São Marcos: “Pai, se queres, afasta de ruim este cálice”. Esta citação bíblica remete-nos para o calvário de Jesus Cristo, marcado pela perseguição, pelo sofrimento e pela traição de que foi vítima. Por outro lado, ela contém um pedido de um filho dirigido ao seu pai: o afastamento de si de um cálice. No entanto, tendo em conta o contexto político brasileiro de então e a semelhança de pronúncia entre o nome «cálice» e a forma verbal «cale-se» (semelhança essa acentuada pela fonética do português do Brasil), é possível fazer outra leitura desta passagem. Assim, o sujeito poético pede ao pai que afaste de si esse «cale-se», isto é, implora-lhe que afaste a censura e a violência, dado que o cálice contém «vinho tinto de sangue». Deste modo, o sujeito lírico estabelece uma analogia entre a paixão (o sofrimento) de Cristo e o do povo brasileiro, sujeito a um regime violento: na Bíblia, o cálice continha o sangue de Jesus; no poema, o sangue é o das vítimas do regime.
            Na primeira estrofe, o «eu» interroga-se como será possível beber essa «bebida amarga», ou seja, como será possível aceitar a amargura, a dor, o trabalho árduo e mal remunerado, como se fossem coisas normais. Além disso, tudo isto é obrigado a aceitar calado, em silêncio, uma referência clara à opressão e à ausência de liberdade de expressão. De acordo com o próprio Chico Buarque, a «bebida amarga» é Fernet, uma bebida alcoólica italiana que o cantor e compositor costumava beber. Resta-lhe o peito, isto é, o que ele sente relativamente à situação e, quiçá, a coragem e determinação para resistir.
            O sujeito poético continua a socorrer-se da linguagem metafórica de cariz religioso, afirmando-se «filho da santa», subentendendo-se que se refere à pátria, entendida pelo regime político como inquestionável, à semelhança de um dogma bíblico. Porém, preferiria ser «filho da outra». Tendo em conta a sequência rimática, pode deduzir-se que o termo a usar seria provavelmente «puta», contudo, por causa da censura, os autores terão optado por uma linguagem mais «suave». O «eu» deseja outra realidade, caracterizada pela inexistência da mentira, de autoritarismo e de violência.
            O início da segunda estrofe alude a um método usado pela polícia militar: invadir, durante a noite, as casas das pessoas, arranca-las das suas camas, prender umas e fazer desaparecer outras. A consciência deste facto dilacera o sujeito poético, por acordar em silêncio tendo consciência da violência que ocorria durante a noite e que, eventualmente, também o atingiria («Se na calada da noite eu me dano»).
            O sujeito lírico deseja soltar um «grito desumano» contra a situação, procurando, assim, ser ouvido e combate-la. O silêncio deixa-o atordoado, impotente, mas, apesar disso, conserva-se atento, pronto para agir se surgir uma oportunidade. Entretanto, mantém-se passivo na arquibancada, esperando que o «monstro da lagoa» surja. A expressão «monstro da lagoa» remete-nos para o imaginário dos contos infantis, simbolizando o mal que nos vem aterrorizar e que devemos temer. Neste sentido, a expressão poderá ser entendida como uma metáfora da ditadura, do poder repressivo que estava escondido, mas pronto para atacar a qualquer momento. Por outro lado, ela designava também os corpos de pessoas desaparecidas que apareciam, ocasionalmente, a boiar nas águas de um rio ou do mar, vítimas do regime ditatorial.
            A terceira estrofe abre com nova metáfora – a da «porca gorda» –, que representa o governo ditatorial e corrupto, que «já não anda», isto é, não funciona mais. A gordura remete para o pecado da gula, ou seja, para a ganância que dominava a «porca», o governo, que, de tão gorda(o), já não se consegue mexer. A «faca», nova metáfora, que simboliza a violência e a brutalidade, já não «corta» por ter sido tão usada, ou seja, está a perder força, eficácia. A alusão ao facto de ter sido muito usada sugere o grau de violência que tem sido praticada sobre as vítimas pelas entidades governamentais e policiais.
            A referência à dificuldade de abrir a porta representa o desejo de liberdade do «eu», que permanece silenciado, com «essa palavra presa na garganta». De seguida, questiona-se de que adianta «ter boa vontade», numa referência à passagem bíblica «Paz na terra aos homens de boa vontade», sugerindo que não tem paz. De que adianta ter boa vontade para com o governo se a paz não vem? Daí vem o «pileque homérico»: tudo estava tão fora do lugar que é como se o mundo estivesse todo bêbedo.
            Perante a impotência e a repressão, mantém-se, no entanto, o pensamento crítico, mesmo que calado, representado pela «cuca / Dos bêbedos do centro da cidade», isto é, as pessoas rebeldes e desajustadas que procuram sobreviver e continuam a desejar e a lutar por uma vida melhor.
            A estrofe seguinte contrasta com as anteriores, porque introduz a ideia da esperança, através da possibilidade de o mundo não ser pequeno, ou seja, de o mundo não se limitar àquilo que o sujeito poético conhece. Além disso, talvez a vida não seja um facto consumado, isto é, talvez não tenha de ser tão dolorosa e a ditadura não seja uma circunstância irremediável, eterna.
            Numa atitude de rebeldia, o «eu» reclama o direito a ser dono da sua vida e a escolher o que fazer com ela, de acordo com os seus desejos e regras, sem ter de obedecer a ordens e regras de outrem. É isso que significam os versos «Quero inventar o meu próprio pecado / Quero morrer do meu próprio veneno». Para que tal se concretize, é necessário «perder de vez tua cabeça», ou seja, é necessário derrubar o poder opressivo e ditatorial. O sujeito poético deseja ser livre e reprogramar-se de tudo aquilo que a sociedade conservadora lhe inculcou e deixar de estar subjugado a ela. «perder teu juízo».
            Os dois versos finais fazem referência a métodos de tortura comuns na época: a inalação de óleo diesel por parte das pessoas que eram presas. Além disso, apontam para uma tática de resistência: fingir perder os sentidos, para que a tortura fosse interrompida.
 

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Análise da letra de "Mulheres de Atenas"


Mulheres de Atenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.

BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 144.


Análise da letra de Mulheres de Areia

1. Memória discursiva.

                “Mulheres de Atenas” faz referência a aspectos da sociedade ateniense do período clássico e a alguns episódios e personagens da mitologia grega. A letra faz uma alusão aos famosos poemas épicos Ilíada e Odisséia, ambos atribuídos a Homero. Penélope, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro, os bens familiares atraem a cobiça de pretendentes, que julgavam seu marido morto. Ela lhes dizia que só escolheria o futuro marido após tecer uma mortalha, que, a bem da verdade, não fazia questão de terminar: passava o dia tecendo e, à noite às escondidas, desmanchava o trabalho realizado. E enquanto seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notícia, ela se vestia de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atena que providenciasse o retorno de seu amado.
                Helena, filha de Zeus, era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua história é uma das mais conhecidas na mitologia grega. Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptada por Páris, filho do rei de Tróia. Esse rapto deu origem à guerra de Tróia, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em Ilíada de Homero. Embora Ulisses não figurasse no primeiro plano da Ilíada, nela é freqüentemente mencionado, como um viajante conduzido à terras distantes e herói da batalha de Tróia. Por essa escolha Homero, o poeta, relaciona as duas epopéias. A esposa de Ulisses, a prudente Penélope, opõe-se à esposa infiel – senão verdadeiramente culpada – Helena, que na Ilíada é causa inicial da guerra. Por essas e outras razões a Odisséia está intimamente ligada à Ilíada.
                Assim, como uma referência histórica de um momento da humanidade que data de 5 séculos antes de Cristo, os autores de “Mulheres de Atenas” valem-se da ideologia de Odisséia para chamar a atenção das mulheres que ainda “vivem” e “secam” por seus maridos ao estilo ateniense. Após a narrativa da morte dos pretendentes de Penélope, o rei Agamêmnon, filho de Atreu, lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referência à esposa de Ulisses, descrita em Odisséia, de Homero, na Rapsódia XXIV, p. 216, Abril Editora, edição de 1981:
                “A alma do filho de Atreu exclamou: ‘Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era o mérito da que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensível Penélope, filha de Icário, que soube manter-se sempre fiel a seu esposo Ulisses! Por isso, jamais perecerá a fama de sua virtude, e os Imortais inspirarão aos homens belos cantos em louvor da prudência de Penélope’”.
                Os autores também realizam um apurado trabalho com a linguagem, no que se refere tanto à construção das frases quanto à seleção e ao emprego das palavras. Para obtermos uma melhor compreensão desse texto, necessariamente teremos de percorrer os caminhos da história, da mitologia, e reconhecer o diálogo aberto com outros textos, contido em “Mulheres de Atenas”.
                Entretanto, não é nosso ofício nos deter extensivamente com a história que envolvia a sociedade ateniense na época de Odisséia. Por essa razão, e colaborando com o trabalho de estabelecer essas pontes, antes do desenvolvimento de nossa análise, de forma sucinta, apresentamos um trecho escrito pelo historiador Edward MacNall Burns sobre o comportamento das mulheres de Atenas dos séculos V e IV a.C.:
                “Embora o casamento continuasse a ser uma instituição importante para a procriação dos filhos, que se tornariam os cidadãos do Estado, há razão para se crer que a vida familiar tivesse declinado. Ao menos os homens de classes mais prósperas passavam a maior parte do tempo longe de suas famílias. As esposas, relegadas à uma posição inferior, deviam permanecer reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras1, algumas das quais eram naturais das cidades jônicas e demonstravam grande cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a alguns de seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era também necessário, naturalmente, ter alguém para tomar conta da casa”.
                É comum, ainda nos dias de hoje, leitores menos avisados considerarem essa música como uma apologia à submissão e à subserviência feminina ao machismo brasileiro, a exemplo das mulheres da Grécia antiga. Aliás, isso aconteceu com muitas mulheres que se diziam feministas, algumas leitoras vacilantes e obtusas, que criticaram os autores porque julgaram a música “machista” – segundo elas, a letra da música sugeria que as mulheres de hoje tivessem o mesmo comportamento das mulheres da antiga Atenas. Não conseguiram perceber a inteligente ironia do texto... Onde se lê “Mirem-se...” sugere-se que se faça o contrário; dessa forma, o texto é um hino contra a submissão das mulheres que se sujeitam às regras ditadas pelas sociedades patriarcais. O próprio Chico Buarque, em uma entrevista à televisão Cultura, ao ser indagado sobre o pensamento das feministas da época, disse: “Elas não entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é exatamente ao contrário”.

1 mulher dissoluta, cortesã, prostituta elegante e distinta.



2. Estrutura do Texto.

                Mesmo sendo uma letra de música, portanto um texto para ser ouvido, “Mulheres de Atenas” apresenta um primoroso trabalho formal. O texto se compõe, fundamentalmente, de cinco estrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto, o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Do ponto de vista métrico, é inegável a habilidade do autor que abusou de uma métrica elaboradíssima: os dois primeiros versos têm 14 sílabas poéticas: o terceiro, o quarto, o sexto e o sétimo têm oito; o quinto e o oitavo têm quatro e o nono tem duas. Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As idéias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe.
                Por conta desse rol de advertências podemos verificar uma situação cíclica de ladainhas que não pretendem parar no poema. Ao introduzir no final do poema a repetição, como se fosse iniciar uma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexão do leitor que poderá buscar no subconsciente qualquer fato que se assemelha às advertências anteriores para completá-lo. Exatamente por conta disso é que o refrão vem no início de cada estrofe.
                O refrão apresentado nessa música nos remete à mesma estrutura usada nas cantigas medievais. O paralelismo apresentado nele é bastante semelhante ao das cantigas medievais, porém, com ligeiras alterações no segundo verso. O primeiro verso do refrão sempre se repete identicamente em todas as estrofes, introduzindo uma idéia de múltiplas escolhas no segundo verso, com poucas variações entre si em todas as estrofes, mantendo-se fixas as formas “pros seus maridos” e “Atenas”. A semelhança não reside somente no paralelismo, mas também na métrica de 14 sílabas poéticas, uma contagem marcante na Cantiga de Amor de Bernardo de Bonaval, entre os séculos XII e XIII, aproximadamente. Essa não é, sem dúvida, a primeira e única performance de Chico Buarque com semelhanças medievais. As músicas “Atrás da Porta” e “Com Açúcar Com Afeto”, por exemplo, são claros exemplos de cantigas medievais de amigo, de autoria masculina para um Eu-lírico feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausência do amigo (amante). Esse é, sem dúvida, um recurso marcante nas cantigas medievais também usado nas músicas dos autores contemporâneos Caetano Veloso (Esse Cara) e Vinícius de Moraes (Pobre Menina Rica).



3. O eixo paradigmático da canção.

                Do ponto de vista sintático, podemos destacar os sujeitos presentes na canção (SN – sintagma nominal) e seus respetivos predicados (SV – sintagma verbal). O ponto mais importante da canção está no segundo verso de cada estrofe. Ele tem sua carga significativa centrada no verbo, sempre em terceira pessoa do plural, tendo como SN ELAS, as mulheres de Atenas. Evidentemente, no coletivo, porém, representadas pelas figuras de Penélope e Helena. Há, também, outro SN que é introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importância central: ELES (soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc). A menção de Helena, uma figura de conduta antagônica à de Penélope, é feita no poema para expressar sua rara beleza. Assim seus maridos buscam os carinhos de outras “falenas” (outro SN), mas mantém em suas residências uma mulher de beleza maior para quem sempre voltam para os braços, sem reminiscência de seus atos extraconjugais.
                Mas o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos conjugados em 3ª pessoa do plural, como uma ação que ainda ocorre no presente do indicativo. Eles se fazem presentes no segundo verso de cada estrofe, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas. Assim, vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, são verbos se são colocados numa forma cíclica das funções e das vidas daquelas mulheres. Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo viver e se fecha com o verbo secar, isto é, morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras (falenas) ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer. Esses verbos resumem uma existência quase sem muito propósito e sem autonomia, como escravas de seus próprios maridos.



4. Marcadores da narrativa e da oralidade.

                Há muito, muito pouca característica de oralidade no poema, podendo somente ser percebida no refrão, mais notadamente no segundo verso de cada estrofe com a conjunção (em contração) “pros”. Na instância da narrativa não observamos fortes demarcações de tempo (não se define época ou momento histórico; considera-se um tempo genérico, falando no presente, mas se referindo a um passado indeterminado). Quanto ao espaço, este é demarcado como a cidade de Atenas, havendo menções de mares e de guerras (supostamente em terras distantes, fato denunciado pelas ausências e naufrágios de seus maridos).
                Quanto aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a função da narrativa, exibindo a condição dos sujeitos atenienses. Entretanto, do ponto de vista gramatical destacamos que o autor dirige a narrativa ao conjunto de mulheres que se submetem aos valores da sociedade patriarcal no instante presente. Esse conjunto está representado gramaticalmente pelo sujeito da forma verbal de terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo mirem-se (vocês). Observe que o verbo no imperativo não admite a classificação de sujeito indeterminado (a norma culta diz que só se emprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatário da mensagem, daí não ser possível classificar o SN de um imperativo como indeterminado).



5. Da instância lexical.

                Podemos destacar, para elucidar um pouco mais o poema, duas palavras estrategicamente citadas pelo autor: Cadena e Falena. Cadena é um espanholismo que significa “cadeia, corrente”. Se consultarmos o Aurélio, teremos a seguinte definição: “Meio empregado para tirar dos chifres do touro, sem perigo, o laço que o prende”. Os dois sentidos significam um aprisionamento ou acorrentamento. Assim, cadenas nos remete à cadeia em que as mulheres de Atenas vivem, aprisionadas pelos desejos e caprichos de seus maridos. Falena no mesmo dicionário é explicada da seguinte forma: “Gênero de insetos lepidópteros, noctuídeos, que reúne mariposas noturnas cujas larvas, fitófagas, são nocivas a culturas vegetais”. Todavia o sentido emp regado aqui é metafórico, referindo-se a uma prostituta.
                Ao usar o verbete falena, o autor estabelece uma das metáforas mais significativas do poema. No sentido denotativo, falena significa mariposa de ação noturna, ou seja, que brilha a noite. No sentido conotativo, o termo falena é empregado no poema, fazendo uma alusão às prostitutas que brilham a noite, ou seja, que têm vidas noturnas, que são procuradas à noite pelos maridos. Assim, falena representa uma grande e importante metáfora que denuncia o comportamento narrado pelo historiador Edward MacNall Burns quando diz: “O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras”, conforme já o dissemos anteriormente.
                Do ponto de vista semântico, há um grande emprego de palavras com muita aproximação para corroborar a idéia condicional das mulheres atenienses. Podemos destacar algumas palavras mais próximas semanticamente: amadas... carinhos; pedem... imploram; fustigadas... penas; carícias... carinhos; gosto... vontade; sonhos... presságios; Por outro lado, há outras mais distantes semanticamente: amadas... fustigadas; violentos... amantes; violentos... carinho; defeito... qualidade; amadas... abandonadas; encolhem... confortam. Mas o grande sentido de distanciamento se encerra na grande antítese do poema: vivem... secam (no sentido de morrem).



6. O diálogo entre os textos (intertextualidade)

                O diálogo que “Mulheres de Atenas” estabelece com o poema Odisséia, com a história e a mitologia da Grécia Clássica é o que podemos chamar de intertextualidade. O poema faz referências camufladas à obra mitológica grega de Homero, mais notadamente à história de Penélope, à despersonalização das mulheres de Atenas e à passagem pela ilha das sereias, vivida por Ulisses.
                É importante notar a forma subentendida que o autor se refere à Penélope no poema. Segundo a história de Penélope, em Odisséia, a virtuosa esposa de Ulisses convence seus pretendentes de que deveria fazer uma túnica, que serviria de mortalha para cobrir o corpo de Laertes, o venerável pai de Ulisses, que com a notícia do casamento de sua nora, morreria de depressão, dado ao avançado da idade. E como era costume das mulheres tecerem uma mortalha para os entes queridos que se encontravam prestas a deixar esse mundo, Penélope usa desse artifício para ganhar tempo com seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por ser uma proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois na tentativa de fazer com que seus pretendentes desistissem da idéia de disputar o lugar de Ulisses, ela desmanchava a noite o que fazia durante o dia. Então a esposa do aventureiro Ulisses é conhecida na mitologia grega como o símbolo da mulher que tece longos bordados, enquanto seus maridos se ausentam por períodos delongados. No poema de Chico Buarque essa referência à Penélope é feita na segunda estrofe: “Quando eles embarcam, soldados / Elas tecem longos bordados / Mil quarentenas”.
                Ao se referir às mulheres atenienses, o autor expõe a vida de completa subserviência a que elas se submetiam para seus maridos. Em Ilíada, Helena é usada pela deusa Vênus para servir como prêmio para o príncipe Páris. Ao apaixonar-se por ele, ela é tida como vulgar, por haver deixado de amar seu verdadeiro marido. Essa situação foi abordada e defendida por Górgias, um sofista e mestre da retórica clássica grega, que escreveu um discurso intitulado Elogio a Helena, em 414 a.C. A questão colocada por Górgias era que Helena, apesar de casada com Menelau e, do ponto de vista moral ligada a ele, tinha também o direito de apaixonar-se por Páris, dando vazão aos seus sentimentos. Na verdade, Vênus prometera a Paris não apenas Helena, mas o amor de Helena, dizendo: “... Se o amor é um deus, como poderia ter resistido e vencer o divino poder dos deuses quem é mais fraco do que eles? Se se trata de uma enfermidade humana e de um erro da mente, não há que se censurar como se fosse uma culpa, mas considerá-la apenas uma má sorte2”. Os versos que salientam uma absoluta despersonalização das mulheres de Atenas estão na quarta estrofe: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeitos nem qualidade / Têm medo apenas”.
                Outra referência à epopéia de Homero é o momento da passagem de Ulisses, em sua longa viagem, pela ilha das Sereias, próximo ao golfo de Nápoles. Segundo o épico, Ulisses tapou com cera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem ao mastro do navio, para que nem ele nem a tripulação se deixassem seduzir pelo canto de morte das sereias, todavia, ele queria saber como era esse canto. Essa passagem não passa desapercebida pelo autor da música e é lembrada nos versos: “O seu homem, mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. Sirenas, segundo o Aurélio, é o mesmo que sirene (objeto emissor de som, muito usado em navios) ou sereia. O aparelho que produz som tem esse nome por lembrar o hipnotizante canto das sereias da mitologia.

2 GÓRGIAS, Fragmentos y Testimonios, pp. 90-91. Tradução de Antônio Suáres Abreu, professor livre docente pela Universidade de São Paulo, in: A Arte de Argumentar – Gerenciando Razão e Emoção.



7. Os recursos expressivos do texto

                É inegável que o texto de “Mulheres de Atenas” é bastante requintado e muito bem elaborado, tanto na sua estrutura quanto nas referências à cultura grega do período clássico. Numa primeira leitura ou acompanhamento da música somos fisgados pela emoção estética da música, podendo até nos determos em algumas passagens específicas. Mas só com sucessivas leituras, realizando um trabalho mais racional (sem perder a emoção) é que chagamos à uma interpretação mais rica do texto.
                A canção é inteiramente metaforizada. Isso faz dela um poema, embora haja um indício de narrativa ao passar uma idéia do que acontece com as mulheres em Atenas. Algumas metáforas mais expressivas podem ser destacadas facilmente na canção e sua significação é, quase sempre, muito sutil.


                Outro recurso muito presente é a antítese. Ao expressar a condição feminina da mulher ateniense, o autor valoriza suas palavras com idéias contrárias. Assim, podemos destacar: defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se; gosto... vontade; amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc.
                Outro, menos abundantes, o anacoluto, é usado apenas para manter a construção idêntica das estrofes: “Lindas sirenas (sereias) / Morenas”; “Se confortam e se recolhem / às suas novenas / Serenas”; “Querem arrancar violentos / Carícias plenas”; etc.
                Alguns eufemismos são empregados no texto para atenuar a condição de dramaticidade exposta pelo autor. Destacamos alguns:


                Há outro recurso expressivo que aparece logo no início do texto, na primeira estrofe, que denuncia a degradante condição das mulheres de Atenas em total subserviência. É o emprego da Gradação. Nesse caso, o autor estabelece uma gradação com clímax ao empregar uma seqüência encadeada em ordem crescente: “Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas / Cadenas” (cadeias).
                O zeugma é outro recurso presente nessa canção. O autor se vale desse recurso para imprimir um ritmo de reflexão maior ao comparar a condição (ou estilo de viver) da mulher com a do homem; exemplo: “Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / (elas) têm medo apenas” / (elas) Não têm sonhos, só têm presságios / O seu homem (tem) mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”. O zeugma é marcado pela elipse de um termo integrante da oração que foi mencionado anteriormente. Quando se refere à mulher, o autor usa o verbo “têm”, considerando que elas não têm sonhos, mas apenas prenúncios e agouro a respeito do futuro, portanto, têm medo apenas; já seu homem, esse tem o mar, o naufrágio (aventura) e lindas sereias morenas, ou mulheres para seus deleites, enquanto as esposas ficam encarceradas em casa, “banhando-se com leite”, pela ausência do ar da rua.
                Mas o recurso estilístico mais importante dessa música fica reservado para a ironia. Esse recurso permeia toda a canção e consiste em dizer o contrário do que se está pensando ou questionar certo tipo de comportamento com a intenção de ridicularizar, de ressaltar algum aspecto passível de crítica. É nesse sentido que o autor usa o verbo “mirem-se” para dizer não faça isso jamais, ou seja, tome cuidado com isso; evite isso.
                Não é a primeira vez que Chico usa de ironia em suas canções. Na música “Bom Conselho”, Chico trabalha ironicamente os provérbios tradicionais. Veja sua forma irônica de se referir a eles:






8. Conclusão do ponto de vista estilístico.

                “Mulheres de Atenas” é uma canção que pode ser considerada uma advertência para as mulheres contemporâneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com costumes praticados há quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grécia antiga. Para expressar a idéia irônica que sugere uma mudança de vida, o autor provoca intertextualidade com as maiores obras sobre a mitologia grega: Ilíada e Odisséia, ambas atribuídas a Homero. Ao se referir àquelas obras, o poema traz como referência a história de duas mulheres que representam as mulheres atenienses: Penélope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, herói do poema Odisséia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, período em que ela se porta com dignidade e absoluta fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tróia, representa um símbolo da beleza para quem seus maridos voltam sempre correndo para seus braços, após deitarem-se e fartarem-se com suas famosas falenas (mulheres dissolutas, cortesãs, prostitutas elegantes e distintas).
                Composto de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As ideias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse inicial uma sexta estrofe, entretanto, sugere uma continuidade às advertências proferidas.
                Os sujeitos da história são as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso, o eixo paradigmático da canção é marcado pelo SV, mais notadamente com a presença dos verbos conjugados em 3.ª pessoa do plural, como uma ação que ocorre no momento presente. É por isso que a advertência é dirigida para as mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, em completa subserviência aos seus desditosos maridos, até morrerem. Tais verbos marcam uma situação cíclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto é, morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com a finalidade única de gerarem os filhos, pois o amor deles é desfrutado pelas famosas heteras (falenas), ou amantes; afora isso, só fazem sofrer e temer.
                Não é só do ponto de vista estrutural que “Mulheres de Atenas” é surpreendente. Semanticamente, ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da canção fica por conta do sentido irônico que o autor estabelece na mensagem que procura passar para as mulheres que não perceberam que ainda vivem centenas de séculos atrás, secando-se por seus maridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento feminista trouxe várias conquistas nas últimas décadas e a evolução da condição feminina tem alterado o comportamento geral, de homens e mulheres, no sentido de um equilíbrio maior na distribuição de funções, no trabalho e na vida em família. Entretanto, há mulheres que ainda não perceberam essa mudança nem a importância de seu papel na sociedade contemporânea. Por isso, Chico faz a advertência, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o autor exprime-se do contrário daquilo que se está pensando, ou seja, NÃO é para seguir o exemplo daquelas mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e façam o contrário!
                A ironia não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher. O autor estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e elevados, em relação ao sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe veremos que sempre quando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suas características. O exagero e a insistência da exposição das qualificações superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam bastante a atenção daqueles homens que, na visão das mulheres de Atenas, são heróis, mas, por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias, aventuras, naufrágios e morte prematura, por inconseqüências de seus atos vulgares. Assim, o que parece querer enaltecer as habilidades e as características dos maridos atenienses torna-se outra ironia de grande dimensão. Os seus maridos, orgulho e raça, poder e força, bravos guerreiros, procriadores, heróis e amantes, na verdade são ausentes, agressivos, mal amantes, violentos, irresponsáveis e infiéis. É nesse sentido que ironicamente o autor se refere à supremacia masculina dos maridos das “Mulheres de Atenas”.
                Esse é, sem dúvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco conhecido e não tão bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.


Trabalho da autoria do Professor José Anastásio Rosa

Publicado em Mundo Cultural
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