TEMAS
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CARACTERÍSTICAS
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A autobiografia
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. origens e circunstâncias biográficas;
. natureza da sua própria obra literária;
. amores, sonhos e frustrações;
. estados de alma;
. homem vítima do e marcado pelo Destino cruel;
. homem marcado pela morte da mãe;
. homem exilado;
. amoroso incontinente e inconstante;
. vida económica muito difícil;
. encontra a paz na sepultura.
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O amor
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. duas tendências: – amor idealizado, de fundo bucólico e petrarquista, de inspiração clássica (amor platónico – ligado, por vezes, ao “locus amoenus”); – amor mais intenso e menos artificial, por vezes frenético e desesperado, próximo do carnal e erótico (amor-paixão):
. sentimento exagerado e não controlado pela razão;
. sentimento intenso e totalizante que faz sofrer e desesperar pela
falta de correspondência ou pela infidelidade da mulher;
. ilusão breve / desilusão permanente/duradoura;
. sentimento hiperbolizado;
. sentimento que provoca o ciúme e o desejo de morte.
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A
mulher
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. divinização da mulher (divina, meiga, doce,
carinhosa, perfeita); . ponte para o infinito, para o absoluto; . comparada, frequentemente, à Natureza, mas sempre
superior; . vencida pelos “ais” e pelo sofrimento do sujeito
poético (“Se é doce...”); . indiferente ao amor do sujeito ou ausente; . infiel e cruel; . faz sofrer o homem e leva-o ao ciúme e ao
desespero; . em última análise, fá-lo desejar a morte para
solucionar o sofrimento. |
A
Natureza
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. personificada; . “locus amoenus” (clássica e arcádica): natureza alegre, amena,
suave, luminosa, harmoniosa – uma espécie de Paraíso; . “locus horrendus” (pré-romântica): natureza escura, horrenda,
medonha, aterrorizadora, triste...; . agreste, selvagem, rude; . reflexo do estado de alma do sujeito poético, marcado pela dor e
pela frustração por não ser correspondido amorosamente ou pela mulher estar ausente; . incapaz de equiparar-se ao sofrimento, à dor e à solidão vividas
pelo sujeito poético; . confidente, ouve os lamentos e os desabafos do sujeito poético. |
O
ciúme
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. motivado pela desconfiança, pela ausência ou pela
infidelidade da mulher amada; . personificado, frequentemente, como um ser terrível, diabólico, um
monstro devorante; . enquadrado em cenários nocturnos, tenebrosos, lúgubres, dantescos e
infernais, habitados por seres monstruosos, é um abismo que atrai e devora o
homem enamorado; . conduz o homem a um sofrimento atroz e exacerbado que o faz desejar
a morte de amor que ponha fim a essa dor lancinante; . o homem é um ser condenado a amar e a sofrer o que o Destino
inexorável determinou. |
A
noite
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. o sofrimento, a mágoa, o desencanto – motivados pela traição, pela
crueldade e pela não correspondência da mulher amada – levam o sujeito poético
a refugiar-se na paisagem nocturna e sombria, abrigo temporário para essa
frustração amorosa; . o homem deleita-se em estados de meditação, de devaneio e
melancolia; . por isso, busca cenários nocturnos e sepulcrais (“locus horrendus”)
adequados ao seu estado de alma (sombrio e melancólico); . espaço propício à confissão e à solidão, é frequentemente
personificado e alegórico (imagem da morte). |
A
confissão e o
arrependimento |
. reflexão sobre o passado: – tempo de felicidade ilusória; – tempo de loucura; – tempo de uma existência intensa e vivida
desregradamente; – tempo de escravidão dos vícios e das paixões; . reflexão sobre o presente: – tempo de verdade; – tempo de contrição/arrependimento perante a vida
passada; – tempo de reencontro. |
A
morte
|
. solução para os problemas e conflitos; . destinatária preferencial nos momentos mais
infelizes; . fascínio pelo nocturno, pelo horrível e pelo
macabro; . ligada à natureza funérea – “locus horrendus” (vítima de um Destino
implacável, a paisagem horrenda não o apazigua; só a morte poderá pôr termo
ao sofrimento); . consequência do amor não correspondido. |
A
liberdade
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. condições histórico-políticas que estão na sua
génese: – Revolução
Francesa (1789): ideais de liberdade, igualdade, fraternidade; – consolidação da República Francesa
(1797); – estado de absolutismo despótico
que se vivia em Portugal; . presente de falta de liberdade, de opressão, de
despotismo; . efeitos do despotismo: ausência de liberdade, ocultamento do amor
pátrio, “torcer” da vontade, fingimento/mentira; . esta situação leva o sujeito poético a gritar pela redenção e pela
salvação trazidas pela liberdade. |
A
dicotomia
razão/sentimento |
. o sujeito poético vive angustiado, infeliz e sofredor, comandado
pelo amor-paixão, pelo ciúme e pelo desejo de cenários nocturnos e de morte; . a razão aconselha-o a seguir os seus ditames, a “fugir” ao
sentimento, a fugir e a revoltar-se contra a mulher amada; . o sujeito poético, incapaz de resistir ao poder do amor e da paixão,
recusa a razão: como pode ele desejar fazer mal à mulher amada, se a ama
tanto? |
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quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Temas da poesia lírica de Bocage
terça-feira, 27 de agosto de 2024
Vertentes da poesia de Bocage
Na obra lírica de Bocage, são
manifestas duas
vertentes nucleares. A primeira, luminosa, etérea, em
que o poeta setubalense se extasia na evocação da beleza da(s) sua(s) mulher(es)
amada(s) (Marília, Anália, Anarda...), expressando, em simultâneo, a sua vida
amorosa inconstante e tempestuosa:
“Eu
louco, eu cego, eu mísero, eu perdido
De ti só trago cheia, oh Jónia, a mente;
Do mais e de mim ando esquecido.”
A segunda vertente é depressiva,
dolorosa, nocturna e pessimista; nela, Bocage manifesta todo o seu sofrimento,
face à falta de correspondência amorosa, à indiferença, à traição, à ingratidão
da(s) amada(s).
Estes contrastes são
frequentes na poesia de Bocage, plena de contrários, consequência do seu
temperamento arrebatado e emotivamente descontrolado.
A segunda vertente é dominante na
sua poesia (o sofrimento, a dor, as “trevas”, a angústia), facto que o leva a
desejar a morte, encarada, frequentemente, como solução para esse sofrimento: “...
Refúgio me promete a amiga Morte...”. Afinal, o destino persegue-o desde a
hora do seu nascimento, um destino inexorável e irreversível, contra o qual o
poeta nada pode, e, como se isso não bastasse, o ciúme arruina-o,
acentuando-lhe o estado depressivo e sofredor: “... Em sanguíneo carácter
foi marcado
Pelos Destinos meu primeiro instante”.
segunda-feira, 26 de agosto de 2024
Análise do poema "Já Bocage não sou", de Bocage
Segundo a tradição,
este soneto terá sido composto no momento da agonia final de Bocage. De
qualquer forma, seja ou não verdade esta suposição, não restam grandes dúvidas
acerca da fase da vida em que o poeta escrever o soneto: fim da vida,
aproximação da morte [“À cova escura / Meu estro vai parar desfeito em vento.”;
“(...) a língua quase fria”].
n Assunto:
reconhecimento da ausência de mérito/valor dos seus textos (em prosa e em
verso) e o arrependimento perante a vida inútil que viveu.
n Tema:
arrependimento/autocrítica do sujeito poético relativamente à sua existência.
n
Estrutura interna
▲ 1.ª
parte (vv. 1-4) – Mostrando-se consciente da proximidade da morte, o sujeito
poético apresenta-se desalentado e decepcionado perante si próprio, desejando
que o seu sofrimento e remorso lhe atenuem o castigo de que irá ser vítima. É
como que a síntese das restantes estrofes.
Repare-se
na expressão egotista (uso continuado da 1.ª pessoa), aqui reforçada pela
presença do nome próprio do poeta. Nesta estrofe e, de um modo geral, dentro
das restantes, as formas verbais partem do presente para o passado
e, depois, para o futuro, demarcando assim três momentos: o
arrependimento de agora sucede à ilusão de ontem, e justifica o desejo de uma
morte a pensar na eternidade. O passado e o presente são interpretados e projectados
no futuro: depois da morte, tudo acabará, e do engenho poético (estro)
que o celebrizou nada restará, a não ser pó e vento (vv. 1-2). Neste contexto,
o sujeito poético formula um desejo estruturado com base numa metáfora,
numa hipérbole e num oximoro: “O meu tormento / Leve me torne
sempre a terra dura.” (vv. 3-4), ou seja, o tormento do sujeito poético torna
leve a terra da sepultura, quer dizer, o seu desespero será atenuado após a morte
– ou com a morte – uma vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a
sua existência.
▲ 2.ª
parte (vv. 5-14) – O sujeito poético desenvolve o seu pensamento, revela uma
grande capacidade de auto-análise e autocrítica, acentua o seu arrependimento e
a vontade de remediar (se possível) os maus efeitos produzidos/causados pelos
seus textos.
O
sujeito poético, na 2.ª quadra, apercebe-se de que a sua inspiração poética o
fez cometer erros, de que fez uma vã figura, reconhecendo o uso negativo que
fez da inspiração poética e a falta de racionalidade que lhe custou o desgosto
em que se encontra agora. É isso que traduz a apóstrofe e a exclamação
“Musa!”, ou seja, uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização
dada à imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de
desabafo, à divindade que possibilita tal poesia consiste numa espécie de
pedido de desculpas ou comiseração. É a função morigeradora da morte.
No
1.º terceto surge o arrependimento do sujeito poético e a vontade de poder
alterar o passado. Ou seja, apercebendo-se da nulidade da sua
existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos
seus erros (vv. 9, 12-13), o sujeito poético deseja alterar o rumo dos
acontecimentos futuros, alertando poetas novos (“mocidade”, v. 10) para o
carácter utópico e fantasista que a poesia possui e que eles procuram (“som
fantástico”, v. 11).
Na
derradeira estrofe, o sujeito poético autonomeia-se “Outro Aretino” (Aretino –
1492-1556 – foi um poeta satírico italiano de vida boémia) e sente remorsos por
ter produzido poesias satíricas, imorais. Daí que se dirija aos leitores (“gente
ímpia”, v. 13), a quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da
poesia, ou seja, ele confessa-se perante o público, arrepende-se e, de forma a
ser “absolvido” pelos leitores, pede que destruam os seus textos, que o
esqueçam, pois, já que a morte que se aproxima irá pôr fim aos seus devaneios
poéticos, pretendendo não deixar lembranças negativas naqueles que o conhecem –
deseja que a morte física abranja os seus textos igualmente, e que não perdure
a imagem desencantada e mesmo deplorável daquele que foi “Outro Aretino” (v.
12).
Em
suma, o sujeito poético encontra-se moribundo, prestes a morrer (vv. 1-4) e foi
a partir desta tomada de consciência do momento que atravessava que efectuou a
retrospectiva da sua vida, apercebendo-se da nulidade da sua
existência/actividade poética (vv. 1-2, 5), admitindo e arrependendo-se dos
seus erros (vv. 9, 12-13), desejando alterar o rumo dos acontecimentos futuros,
alertando poetas novas (“mocidade”, v. 10) para o carácter utópico e fantasista
que a poesia possui e que eles procuram (“som fantástico”, v. 11), mas que, quando
é usada de forma imoral (“Outro Aretino fui...”, v. 12), faz sentir remorsos a
quem a ela recorre. É, pois, na fase terminal da sua vida que o sujeito de
enunciação envida esforços no sentido de não deixar rancor nas pessoas,
preferindo o esquecimento, a destruição dos seus versos (v. 14) à recordação
negativa.
n
Estado de espírito do sujeito poético
Neste soneto, o
sujeito de enunciação tece uma autocrítica, sobressaindo a auto-recriminação e
o desconforto sentidos pelo EU lírico relativamente ao desrespeito manifestado
perante outrem (“Eu aos Céus ultrajei!”, v. 3; “A santidade / Manchei!...”, vv.
12-13); a humildade e a consciência de que a sua existência poética teve um efeito
nulo, inútil por obedecer a impulsos irracionais (“... vã figura / Em prosa e
verso fez meu louco intento”, vv. 5-6); o remorso e a tentativa de contribuir
com a sua experiência para modificar comportamentos semelhantes ao seu (vv.
10-11); a resignação, a submissão perante o público, a modéstia ao propor o
esquecimento (v. 14), a anulação da sua pessoa, tal como fora exposto logo no
verso 1: “Já Bocage não sou”.
Outros sentimentos do
sujeito são a desilusão do momento presente, o arrependimento dos seus actos
passados, a falta de segurança e confiança, o desânimo, o desalento e o remorso
por não ter sido mais lúcido, mais racional.
n
Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
O poema é composto por
duas quadras e dois tercetos (soneto), cujo esquema rimático é
ABBA/ABBBA/CDC/DCD, verificando-se rima interpolada e emparelhada nas quadras e
cruzada nos tercetos. Todas as rimas são graves e consoantes; nos versos 5 e 8,
9 e 11 é rica (“figura”/”pura”), nos restantes é pobre (“escura”/”dura”). O transporte
existe nos versos 1-2, 3-4, 5-6, 9-10, 12-13. A métrica é o verso decassílabo.
2.
Nível morfossintáctico
Existe grande
abundância de vocábulos de cariz negativo no poema: cova, escura,
desfeito, ultrajei, tormento, dura, vã, louco,
fria, manchei, ímpia, rasga. Esta abundância
contribui para evidenciar a autoconsciência que o sujeito poético tem de si e
dos trabalhos que produziu, o temor que sente relativamente ao futuro – castigo
divino – e o apelo que dirige aos leitores no sentido de destruírem os seus
textos e, dessa forma, fazer desaparecer os erros/malefícios provocados pelos
seus textos.
A partir da análise
das pessoas verbais e dos pronomes pessoais e determinantes
na 1.ª pessoa gramatical (meu, vv. 2, 3, 6; me, vv. 4, 9, 13; meus,
v. 14), conclui-se que o sujeito poético elaborou uma auto-análise, na medida
em que, além dos pronomes e determinantes já referidos, predomina a 1.ª pessoa
verbal do singular (6 ocorrências) em frases onde se refere a si próprio,
mencionando também aspectos exteriores à sua vida, mas que são parte integrante
da sua personalidade e actividades (6 ocorrências). Quanto aos tempos verbais,
alternam o presente, o passado e o futuro: o sujeito
poético mostra-se consciente quanto à insensatez, irracionalidade e efeitos
prejudiciais causados pelos seus versos (vv. 3, 6-9, 12-13) – passado; assume a
culpa, os seus erros, arrependendo-se (vv. 5, 9) – presente; reconhece o fim do
seu trabalho (v. 2), teme o castigo (v. 4) – futuro. Por outro lado, o uso do imperativo
tem como finalidade alterar o que for possível no futuro: a crença na utopia da
poesia a que deseja pôr fim (v. 10) e a sua imagem negativa que deseja ver
apagada (v. 14), através da destruição dos seus textos.
Tratando-se de um
poema com o qual se pretende fazer uma caracterização, neste caso, a
autocaracterização do sujeito poético, é natural a variedade de adjectivos
que contribuem e reforçam essa caracterização. A sua colocação nas frases pode
tornar o efeito mais objectivo (pospostos) ou mais subjectivo (antepostos). No
texto verifica-se a anteposição dos adjectivos nas afirmações em que o sujeito
poético se refere a si, à sua imagem (v. 5), à sua audácia (v. 6), à sua
tentativa de alertar os outros (v. 10); a posposição dos adjectivos surge
quando o sujeito poético faz referências mais objectivas e a aspectos
exteriores a si, à sua sepultura (vv. 1 e 4), à razão (v. 8), à ilusão
prematura dos novos poetas (v. 11) e aos leitores (v. 14).
No que diz respeito à pontuação,
o predomínio das reticências põe em relevo o carácter hesitante do
sujeito poético, ao constatar a desilusão do momento presente (1.ª estrofe), o
arrependimento dos seus actos (2.ª e 4.ª estrofes), denotando-se no sujeito
poético a falta de segurança e de confiança, características de quem cometeu
actos impróprios, injustos e os assume perante os outros. As exclamações
reforçam a função das reticências, na medida em que transmitem o estado de
espírito negativos do sujeito lírico: desconforto e desânimo em relação a si
próprio, remorso por não ter sido mais lúcido e racional.
A interjeição Oh
(v. 13) contribui para acentuar a emotividade das palavras transmitidas,
salientando-se a pena, o lamento, a desilusão relativamente ao seu passado.
à convulsão interior
do sujeito poético é transmitida ainda com o auxílio de outros procedimentos
formais e estilísticos: a bipartição de alguns versos (1, 3, 12 e 14),
responsável pela criação de uma pausa no seu interior, justificando o encavalgamento
da segunda parte com o verso seguinte; a ênfase final no sentimento de fé numa
vida transcendente, que é expressa com a repetição da forma do verbo crer:
se antes o tomaram como modelo de poeta, devem agora recebê-lo como paradigma
do arrependimento. Note-se ainda como a palavra ímpia(v. 13), acentuada
como grava (impia), rima com fria e corria (vv. 9 e 11),
através do processo de mudança de acento (diástole).
O hipérbato do
verso 1 (“Já Bocage não sou!...”) reforça o desânimo e a desilusão do sujeito
poético ao anular a sua própria pessoa, deixando evidente o que fora em tempos
– note-se a colocação do nome no interior de um segmento.
3.
Nível semântico
O eufemismo e o
hipérbato dos versos 1 e 2 (“À cova escura / Meu estro vai parar
desfeito em vento...”) denotam o carácter moribundo do sujeito poético (“cova
escura”), o qual vai contribuir para o tom confessional do poema. Esta sugestão
de morte aparece noutra sugestão eufemística presente no verso 9: “... a
língua quase fria...”.
A metáfora e o oximoro
dos versos 3 e 4 (“O meu tormento / Leve me torne sempre a terra dura.”)
traduzem um desejo do sujeito lírico, ou seja, que o seu tormento torne leve a
terra da sepultura, que o seu desespero seja atenuado com e após a morte, uma
vez que já padeceu de múltiplos sacrifícios durante a sua existência. A
impossibilidade de concretização deste pedido acentua o seu estado de espírito
de tristeza, mágoa e dor.
A apóstrofe “Musa!”
(v. 7) expressa uma tentativa de estabelecer contacto com aquela divindade que
permite a existência de inspiração poética, em forma de desculpabilização pelo
mau uso que fez daquele dom. Quer dizer, com esta apóstrofe o sujeito poético
dirige-se, neste momento da sua reflexão e auto-análise, à própria poesia de
que se serviu para as suas loucuras e imoralidades, lamentando-se do uso
negativo que fez da sua inspiração poética e reconhecendo a falta de
racionalidade que lhe custou o desgosto em que se encontra agora. O poema trata
de uma reflexão e confissão do sujeito lírico sobre a utilização dada à
imaginação e às palavras poéticas, daí que o apelo feito, em jeito de desabafo,
à divindade que possibilita tal poesia consiste como que num pedido de
desculpas ou comiseração (note-se cumulativamente o emprego da personificação).
A partir da metáfora
do verso 8 (“Se um raio de razão seguisse, pura!”), equipara-se a razão ao Sol
por ser aquilo que pode esclarecer a mente do sujeito lírico e torná-la lúcida
e sensata, tal como o Sol ilumina os dias e o espaço que habitamos.
Na expressão “... a
língua quase fria / Brade em alto pregão à mocidade...” (vv. 9-10), toma-se a
parte do corpo que tem a capacidade de comunicar – “língua” – pelo todo a que
pertence – o sujeito poético – como forma de transmitir a intenção deste em
expressar aos outros a sua experiência – estamos perante uma sinédoque.
Por outro lado, o desespero do sujeito é tão grande que conta, nos momentos que
antecedem a sua morte, poder modificar as atitudes daqueles que ouvem/lêem,
gritando e alertando poetas novos para o carácter utópico e fantasista que a
poesia possui e que eles procuram, mas que, quando é usada de forma imoral, faz
sentir remorsos a quem a ela recorre.
Por meio da apóstrofe
do verso 13 (“... gente ímpia...”) o sujeito poético dirige-se aos leitores, a
quem apelida de ingénuos por acreditarem nas ilusões da poesia. Confessa-se
perante o público, arrepende-se e, de forma a ser “absolvido” pelos leitores,
sugere que destruam os seus textos, que o esqueçam, pois, já que a morte que se
aproxima irá pôr fim aos seus devaneios poéticos, pretende não deixar
lembranças negativas naqueles que o conhecem – deseja que a morte física
abranja também os seus textos e que não perdure a imagem desencantada e
deplorável daquele que foi “Outro Aretino”.
A metáfora dos
versos 12 e 13 (“A santidade / Manchei...”) salienta o efeito negativo ou
pejorativo das palavras/poesia do sujeito poético, contrastando com a pureza e
idoneidade conferida pelo primeiro termo.
n
Características
domingo, 18 de agosto de 2024
Análise do poema "Meu ser evaporei na lida insana", de Bocage
Este
soneto e o texto “Já Bocage não sou” têm um denominador comum: o contrito
arrependimento perante a vida passada. A uma existência intensa e desregradamente
vivida, sucede uma fase de resignação e esperança cristãs. No balanço da
existência, o homem contrito, escravo dos vícios e das paixões que o arrebatam,
mostra consciência do pecado e abertura ao transcendente. Esta composição é,
precisamente, uma das várias onde o sujeito poético expõe um profundo
sentimento de religiosidade e contrição.
n
Tema: o arrependimento do passado por parte do sujeito poético.
n
Estrutura interna
Nos primeiros 6
versos, o sujeito poético descreve a ilusão da vida passada, utilizando para
tal o pretérito perfeito e imperfeito. Através de repetidas
frases exclamativas (vv. 3 e 6), expressa o seu arrependimento, visto
que, durante quase uma vida inteira, acreditou na sedutora demanda do prazer,
dissipando a existência em sucessivas e ruidosas paixões, que apenas lhe
trouxeram uma felicidade ilusória (vv. 5-6), representada na metáfora “inúmeros
sóis”. As ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva do homem que
se deixou aprisionar pelos prazeres.
Alterando a cadência
anterior, a acentuação sáfica introduzida no final da segunda quadra sublinha o
contraste passado/presente. Continuando a evocação do passado, o sujeito
poético retira uma conclusão vital sobre a sua existência: a busca do prazer
foi uma perdição, que conduziu a sua vida para o abismo e para o amargo sentimento
do desengano. A felicidade verdadeira não estava na miragem enganadora em que
acreditava.
▲ 2.ª
parte (vv. 12-14) – Presente (tempo da razão): súplica a Deus – acto de contrição
e arrependimento do sujeito poético:
Já no presente
(conjuntivo optativo: ganhe, saiba) e até com projecção para o futuro
(roube), com a iminência da morte, eufemisticamente referida (v.
12), o sujeito poético formula uma sentida prece. De facto, no segundo terceto,
, na reforçada invocação a Deus, expressa um manifesto e lapidar desejo
de arrependimento: “Saiba morrer o que viver não soube” (v. 14). De notar ainda
o paralelismo antitético dos dois últimos versos, expressos pelas formas
verbais (ganhar/perder e morrer/viver), a salientar o
contraste entre o passado de dissipação e o presente de arrependimento. Mas
esta afirmação contrita do arrependimento perante as faltas passadas é
formulada com uma indesmentível teatralidade, a demonstrar a vocação
dramatúrgica de Bocage.
Esta divisão do texto
remete para dois estados de espírito do sujeito poético: um, referente ao
passado e constituído por sentimentos como o entusiasmo, a paixão, o orgulho; o
outro, o presente, caracterizado pela decepção, tristeza, arrependimento e
esperança de encontrar a paz na morte.
n
Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
O poema é constituído
por duas quadras e dois tercetos, num total de 14 versos (soneto) decassílabos
heróicos e sáficos (vv. 13-14). Os versos sáficos, além de um ritmo
ternário, são normalmente mais melancólicos. O ritmo ternário põe em
destaque três elementos importantes: momento/perderam/anos, morrer/viver/soube.
A rima obedece
ao esquema ABBBA/ABBA/CDC/DCD, sendo portanto interpolada e emparelhada nas
quadras e cruzada nos tercetos. Toda a rima é consoante (“insana”/”humana”),
grave ou feminina (“arrastava”/”sonhava”), rica (“insana”/”humana”) e pobre (“arrastava”/”sonhava”).
O ritmo é
predominantemente binário e sugere a correria louca do sujeito poético em busca
das paixões. As aliterações dos fonemas /s/ e /p/ sugerem, a primeira,
dissipação e, a segunda, o movimento agitado das paixões. A repetição das vogais
abertas /á, é/ sugere a sedução que as paixões exerciam sobre ele. Por
último, nota para o transporte existente nos versos 1-2, 3-4, 5-6 e 7-8.
2.
Nível morfossintático
As
formas verbais, na 1.ª parte, distribuem-se pelo pretérito perfeito,
que exprime o que o sujeito poético fez, e pelo pretérito imperfeito,
que subentende uma reflexão, marca o contraponto entre o que é o sujeito
actualmente e o que já foi. Estas formas verbais ligadas ao passado são
acompanhadas pela primeira pessoa porque estão directamente ligadas aos passos
que ele deu. A forma evaporei pressupõe a proximidade da morte, pois o
que já se evaporou já desapareceu; a forma acreditava sugere afastamento
da realidade. Na 2.ª parte, predomina o presente do conjuntivo em
tom de imperativo marcando uma ideia de futuridade, sugerindo a
formulação de um desejo, como se o sujeito poético quisesse dar uma lição
àqueles que levam uma vida como a dele. Estas formas verbais de presente/futuro
aparecem na terceira pessoa porque exprimem o arrependimento no momento da
reflexão; o sujeito poético evita referir a primeira pessoa por causa do seu
desalento; é uma espécie de aniquilamento do EU para que obtenha a salvação.
Os
nomes (tropel, ruído, prazeres, sócios) e os adjectivos (insana,
cego, mísero, falaz, escrava, sedenta) apontam para um certo desgaste do
sujeito poético, derivado da sua vida de conflitos.
As
interjeições sugerem decepção, enquanto os pronomes pessoais e possessivos
exprimem o tom confessional do poema.
3.
Nível semântico
As exclamações
traduzem a decepção e o desengano do sujeito poético. A apóstrofe do
verso 9 identifica a causa dos seus males: os prazeres, enquanto a do verso 12
exprime o desejo/lição que pretende formular: um desejo de arrependimento e de
morrer com dignidade.
Por outro lado, o
poema assenta em duas antíteses. A primeira assenta no contraste
luz/sombra, sendo que a luz simboliza a vida, neste caso vivida ao sabor das
paixões, enquanto a sombra está ligada à morte, pois, no fim da vida,
reflectindo sobre a mesma, dá-se conta de que essa luz que o seduziu era falsa.
Daí o desejo da morte. A segunda antítese decorre desta primeira: vida/morte, e
atinge a máxima intensidade no verso 14: “Saiba morrer o que viver não soube.”,
onde claramente afirma o desejo de morrer com dignidade, já que em vida,
moralmente, se enganou e desviou do caminho recto.
A repetição “Ah!,
cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava” (v. 3) enfatiza o estado de alma do
sujeito poético, a falsidade e o engano em que vivia, enquanto a metáfora
“inúmeros sóis” (v. 5) representa a felicidade ilusória que as paixões lhe
trouxeram, ou seja, as ilusões foram sóis que ofuscaram a natureza instintiva
do homem que se deixou aprisionar pelos prazeres. A iminência da morte é eufemisticamente
referida no verso 12: “Quando a morte à luz me roube...”.
n
Características
n
Conclusão
Estamos
perante um soneto egocêntrico, centrado em torno do poeta, onde se verifica uma
dicotomia entre passado e presente, que permite evidenciar a temática do
arrependimento, perante o tropel de paixões e o seu orgulho, que parecem ser os
seus maiores pecados e dos quais o poeta pretende redimir-se à beira da morte,
ao desejar uma boa morte. Daí falar-se em tom de contrição e arrependimento. As
suas faltas foram cometidas insanamente, chegando ao ponto de querer
divinizar-se, ao querer ser imortal.
Análise do poema "Ó retrato da Morte! Ó Noite amiga”, de Bocage
n Assunto: evocação
da noite e de uma paisagem horrenda, consolo do sujeito poético.
n
Tema: a obsessão da morte.
n
Estrutura interna
O primeiro verso assume grande importância
dentro da mensagem, pois revela a presença de uma entidade abstracta (“Noite”)
que adquire uma força concreta e humana, tendo papel de destaque dentro das
relações do sujeito (“amiga”) – note-se a personificação – e fazendo a
maiúscula inicial adivinhar o seu protagonismo. Conduz a uma identificação da
noite com a morte – note-se a metáfora – o que deixa antever uma
situação de sofrimento e desespero por parte do sujeito poético, pela invocação
de duas entidades ligadas à escuridão, à solidão, à fuga; sugere o estado de pessimismo,
dramatismo em que o EU se encontra. No desenrolar do poema, conclui-se
ser a noite o momento mais ansiado pelo sujeito lírico, em quem deposita a
esperança de encontrar algum consolo, alguma compreensão – daí o lamento
através da interjeição Oh, que imprime um tom de tristeza, de
lamento, de desabafo ao poema, encontrando-se reiterada no verso 9.
O sujeito, num apelo
que dirige à Noite, sua confidente e amiga, pede-lhe protecção, conforto e
amparo para suportar o seu sofrimento (“Dá-lhes [aos desgostos] pio agasalho no
teu manto”) na sua companhia, pois a noite, pelo sossego e possibilidade de
fuga que permite, é ideal para conviver com alguém que não quer espalhar a sua
dor, mas que quer a paz e a tranquilidade necessárias à introspecção, à
reflexão, ao desabafo (com ninguém).
Esta
relação positiva entre o sujeito poético e a Noite deve-se ao estado de espírito
daquele: desiludido e desesperado. Neste estado, só a Noite constitui o
ambiente que se coaduna com a sua sensibilidade. Porém, a nível humano, o
grande responsável pelo estado de espírito do sujeito lírico é a mulher, que
não lhe corresponde amorosamente.
A Noite assume papel de grande destaque, o
que até a própria maiúscula inicial faz supor. Trata-se da confidente e amiga
do sujeito poético [“Noite amiga”, v. 1; “(...) testemunha do meu pranto”, v.
3; “De meus desgostos secretária antiga”, v. 4; “(...) manda Amor, que a ti
somente os diga”, v. 5], em cuja companhia ele deseja estar (“Por cuja
escuridão suspiro há tanto!”, v. 2). A Noite, por ser a ausência de luz,
representa o medo, o abandono, a solidão; por ser o período oposto ao dia,
simboliza o descanso, o sossego, é o momento dedicado aos sonhos, pesadelos, à
reflexão, à introspecção; sendo ainda sinónimo de trevas, corresponde à
ausência de conhecimento, à ignorância; conotando-a com os sentimentos, vêmo-la
relacionada com sofrimento, dor, angústia, mágoa, bem diferente do entusiasmo,
alegria, conforto, prazer que o dia proporciona.
Assim, conclui-se que
o facto de o sujeito poético ansiar por tal momento se deve à sua vontade de
estar só, isolado e afastado daquela que perturba o seu estado de espírito [“(...)
a cruel que a delirar me obriga”, v. 8], à necessidade de encontrar a
tranquilidade e a acalmia próprias da Noite, propícias à introspecção, à
intenção de pretender reflectir e analisar os seus sentimentos [“(...) meu
pranto”, v. 3; “(...) meus desgostos”, v. 4] e de desejar conviver com
elementos nocturnos (“Fantasmas vagos, mochos piadores”, v. 10) que, pelo seu
aspecto assustador e sombrio, não convivem com elementos diurnos, o que os
torna bons receptores para quem não deseja ver os seus sentimentos divulgados
(v. 3).
n
Estado de espírito do sujeito poético
O sujeito poético
mostra-se abalado, angustiado, desesperado, procurando a companhia de
realidades (“Noite”, fantasmas”, “mochos”) que, tal como ele, vivem ou correspondem
à penumbra, às trevas; que, tal como ele, se refugiam no seu próprio ser, sem
procurarem/desejarem convívio, relação com outros seres. O sujeito poético
procura encontrar maior conforto nestes do que na realidade do dia, da luz, da
vida, que para si é como um pesadelo (“Inimigos como eu da claridade!”, v. 11)
devido a ressentimentos com base no amor que sente/sentiu por uma mulher que o
faz sofrer, sem que sequer sinta culpa [“(...) enquanto / Dorme a cruel que a
delirar me obriga”, v. 8]. A sua angústia ocorre em simultâneo com a
tranquilidade, despreocupação da amada (“delirar” vs. “dorme”). Note-se a
ambiguidade existente no verbo dormir que é sinónimo de sossego
para um e desassossego para outro, surgindo reforçado pela expressão “me
obriga” – não é voluntário, não é pacífico, não é indolor. Note-se, ainda, que
a forma verbal dorme pode referir-se também à própria morte ou ausência
da amada.
Por outro lado, dos
últimos dois versos do poema ressalta um certo narcisismo e masoquismo do
sujeito poético, que manifesta o desejo de se encontrar no meio de fantasmas e
mochos apesar de ter consciência do carácter horrível e mórbido que lhes é
inerente: “Quero a vossa medonha sociedade” (v. 13). Na base deste masoquismo
está o desejo de se flagelar, talvez numa tentativa de exteriorizar a sua
revolta, a sua angústia ou até de acabar com o seu sofrimento (“Quero fartar
meu coração de horrores”, v. 14). O sujeito poético deseja castigar o seu
coração, provavelmente por se ter deixado envolver numa relação que o desiludiu
e arruinou psicologicamente ou que abruptamente foi quebrada.
De referir, por
último, que este estado de espírito do sujeito lírico tem raízes no passado.
Ele anseia há muito por se encontrar na companhia das trevas, tal como explicita
no verso 2: “Por cuja escuridão suspiro há tanto!”,
pois vive um estado de dor, de sofrimento há já algum tempo, como se deduz
pelos versos 4 e 7: “De meus desgostos secretária antiga!”,
“Ouve-os, como costumas, ouve...”.
n Visão da Natureza
– “locus horrendus” ® presença da noite como
retrato da morte e associada a um cenário de horror: escuridão, fantasmas,
mochos piadores, cortesãos da escuridade, horrores.
n
Características
n
Recursos poético-estilísticos
1.
Nível fónico
Trata-se de um poema
composto por duas quadras e dois tercetos, que se denomina soneto. Os
versos são isométricos, sendo todos decassílabos heróicos, excepto os
versos 4, 8 e 14, que são sáficos. O esquema rimático é o
seguinte: ABBA/ABBA/CDC/DCD, havendo rima interpolada e emparelhada nas quadras
e cruzada nos tercetos; consoante (“amiga”/”antiga”), grave (“tanto”/”pranto”),
pobre (“amiga”/”antiga”) e rica (“tanto”/”pranto”). Por outro lado, as palavras
que rimam partilham o seu sentido ou por semelhança ou por oposição. A rima não
é apenas uma questão de ouvido, gera sentidos. Assim, a rima entre “amiga” e “antiga”
serve para salientar a relação existente entre o sujeito poético e a Noite: uma
relação prolongada no tempo. A rima entre “tanto” e “pranto” serve igualmente
para realçar o prolongado sofrimento do sujeito.
Várias são as aliterações:
do fonema /m/ (em todo o poema) a sugerir tristeza e angústia, do fonema /t/,
do fonema /s/ (“... de meus desgostos secretária...”). Outro elemento
importante é a alternância entre vogais abertas e vogais fechadas (ó,
á, e, ô, an, ão) que pode sugerir, por um lado, a vontade de conviver com a
Noite e, por outro, o desespero.
O ritmo do
soneto é dominantemente binário, quer porque alguns versos estão partidos em
dois hemistíquios, quer porque há dois acentos dominantes na maior parte dos versos
(decassílabos heróicos). O predomínio do ritmo binário está de acordo com a
presença de duas “personagens”: o sujeito poético e a Noite. É mais lento nas
quadras e mais rápido nos tercetos, de acordo com a intensidade dos apelos,
menos forte nas primeiras e mais fortes nos segundos.
Por último, realce
para o transporte existente nos versos 7 e 8.
2.
Nível morfossintáctico
Existe
no poema grande quantidade de vocabulário de teor negativo: morte,
Noite, escuridão, pranto, desgostos, cruel, delirar, escuridade, fantasmas,
mochos, piadores, inimigos, clamores, medonha, horrores. Estes vocábulos,
de que fazem parte muitos nomes abstractos, referem-se e reflectem o
estado de espírito do sujeito poético, na medida em que, estando este numa
situação de sofrimento e solidão, recorre a conceitos de cariz negativo que se
aproximam da forma como se sente.
Dentre
os adjectivos, destacam-se amiga (caracterizando a Noite como a
única que pode compreender e consolar os desgostos do sujeito) e cruel,
que se refere à mulher amada, apontando-a como a causadora do estado
sentimental do sujeito poético, porque não lhe corresponde amorosamente, e
servindo de contraste entre a sua tranquilidade a dormir e o seu desespero.
Das funções da
linguagem, predominam a poética (selecção de vocabulário; conotação
de certos vocábulos – secretária, agasalho, manto, cortesãos da escuridade;
originalidade de algumas palavras – escuridade; recursos estilísticos;
rima; métrica; sonoridade de alguns sons), a expressiva (o estado
emocional do sujeito poético expresso através duma linguagem subjectiva e dum
discurso de 1.ª pessoa do singular e de frases de tipo exclamativo) e a apelativa
(o sujeito lírico apela à Noite para que o ampare e aos elementos da Noite,
pedindo-lhes que o deixem fazer parte do seu grupo para com ele exteriorizar a
sua mágoa – estes apelos são feitos através dum discurso apelativo, cujas
formas verbais estão no modo imperativo; o discurso é de 2.ª pessoa, visto que
é direccionado para o destinatário das palavras proferidas).
A nível verbal,
predominam o presente do indicativo e o imperativo. O presente
traduz o estado de espírito (que se arrasta desde “há tanto” e se mantém) e
vontade presentes, assim como as determinações de outrem sobre o sujeito
poético (manda, costumas, dorme, obriga). O imperativo representa o
apelo/pedido desesperado do sujeito no sentido de obter protecção, companhia
junto das realidades nocturnas. O imperativo existe em função do presente do
indicativo, sendo a consequência e a causa, respectivamente; o primeiro
pretende atenuar a dor do segundo, ou seja, o facto de o sujeito se encontrar
deprimido e desesperado faz com que se refugie na noite, para minimizar ou,
pelo menos, não fazer avolumar a sua angústia.
Os pronomes
pessoais de primeira pessoa traduzem o egotismo romântico e os de segunda
referem o destinatário do pretenso diálogo encetado pelo sujeito poético.
A interjeição oh,
repetida três vezes, expressa a dor e o desespero do sujeito que o levam a
apelar à Morte e à Noite.
Sendo um soneto
formalmente clássico, não é de estranhar a presença do hipérbato: “De
meus desgostos secretária antiga!”.
Nos versos 13 e 14
temos a repetição anafórica da forma verbal Quero, que determina
a real intenção do sujeito poético que, num discurso eu/vós, apela para
que o deixem tornar-se um elemento da noite, reforçando-se, assim, o seu
carácter de fraqueza e falta de persistência ao deixar-se vencer pelos
desgostos sofridos. Deste modo, o lado sentimental e emocional do sujeito –
desilusão, mágoa, desgosto, dor, sofrimento, angústia, derrota – influencia o
seu lado racional, conferindo-lhe o pessimismo e dramatismo evidenciados, ou
seja, o coração sobrepõe-se à razão.
3.
Nível semântico
As exclamações
traduzem o estado de alma do sujeito poético, carregado de dor, ansiedade,
desespero, consideração/estima e respeito (v. 4) pela Noite, bem como o apelo
que dirige aos seus elementos (vv. 9-11). As exclamações são reforçadas pelo
uso das interjeições, que conferem um misto de apelo e lamento às
palavras do sujeito poético; das personificações e das apóstrofes
da Morte e a Noite, as destinatárias do discurso do sujeito, a quem este se
dirige e por cuja companhia e compreensão “suspira há tanto”, afinal a solução
para os seus males de amor. Ambas as figuras de estilo são retomadas no verso 9
com idêntico significado. Ao bom estilo clássico, encontramos no verso 5 a personificação
do Amor e, nos tercetos, a dos fantasmas e dos mochos, que se tornam também
destinatários do sujeito poético.
Logo no primeiro verso
do poema encontramos a metáfora da Noite como retrato da Morte. Outras
metáforas encontram-se nos versos 3 (“Calada testemunha de meu pranto...”), 4 (“De
meus desgostos secretária antiga!”), 6 (“... pio agasalho no teu manto...”).
A comparação do
verso 11 (“... como eu...”) aponta os mochos como inimigos da luz, assim como o
sujeito poético no estado em que se encontra.
Na última estrofe,
sobretudo no último verso (“Quero fartar meu coração de horrores”), encontramos
a hipérbole, a traduzir o desejo masoquista do sujeito a fim de aplacar
o seu desespero, desejando uma Natureza que reflicta e sirva de enquadramento
ao seu estado de alma. A estes recursos se acrescenta a enumeração dos
versos 9 e 10 (“... cortesãos da escuridade / Fantasmas vagos, mochos
piadores...”). Por último, realce para a gradação na expressão do estado
de espírito do sujeito poético.
n
O Amor em Bocage
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