Português: Cesário Verde
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sábado, 21 de outubro de 2023

Apresentação do poema "O Sentimento dum Ocidental"

 
Objetivo da escrita do poema: homenagear e Camões a propósito da celebração do tricentenário do seu falecimento.
 
Contexto / Motivação para a escrita do poema: necessidade de denunciar a decadência histórica vivida por Portugal e pelos portugueses – “À exaltação formal a que oficialmente se aderiu [em resultado das celebrações em torno do tricentenário do falecimento de Camões], Cesário Verde contrapõe a denúncia da triste realidade em que o país se encontrava.” (Lino Silva, in Encontro Leituras em Português).
 
Data de publicação: 10 de junho de 1880.
 
Atitude do poeta: demarcação do ambiente festivo e do tom elogioso dominantes apresentação de uma visão de um Portugal decadente e em crise.
 
Em 1887, um ano após a morte do poeta, os seus poemas são publicados sob o título O Livro de Cesário Verde, por ação do seu amigo Silva Pinto, no entanto Cesário teria em mente o título Cânticos do Realismo, cuja primeira menção surgiu em 1873, que foi efetivamente adotado a partir de 2006 para designar a sua obra na edição de Teresa Sobral Cunha. Assim, adota-se como título para o livro do poeta Cânticos do Realismo e O Livro de Cesário Verde o seu subtítulo.
 
Os poemas que Cesário Verde foi publicado ao longo da sua curta vida foram sendo publicados em jornais e revistas de Lisboa e do Porto, mas não em livro. Foi apenas após a sua morte que, em 1887, Silva Pinto, amigo do poeta e crítico literário, reuniu em volume os poemas publicados de forma dispersa e os que estavam inéditos.
 
O meio literário português, nomeadamente a lisboeta, não compreende o alcance e a novidade da poesia de Cesário Verde, o que se traduz também no facto de vários jornais e revistas recusarem publicar poemas seus.
 
O poema “O Sentimento dum Ocidental” foi publicado pela primeira vez em 1880, no suplemento “Portugal a Camões” do jornal do Porto Jornal de Viagens, por ocasião das celebrações em torno de Camões, tendo sido recebido com enorme silêncio.
 
O último poema de Cesário Verde foi publicado em 1884 e intitula-se “Nós”, refletindo os sinais do agravamento do seu estado de saúde.
 
Inicia ainda a escrita do poema “Provincianas”, que deixa, porém, incompleto. O poema procurava evocar o poeta épico através da expressão das mudanças ocorridas na cidade de Lisboa, desde a época do vate português. Como já foi referido, Cesário demarcou-se do ambiente festivo e do tom elogioso dominantes e apresentou a visão de um Portugal em crise, que contrasta com a imagem gloriosa e grandiosa presente na epopeia camoniana.
 

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Fases poéticas de Cesário Verde


 
1.ª fase (1873 - 74): a "Crise Romanesca" ‑ o idealismo romântico temperado pelas tendências literárias e estéticas da época.

    Nesta fase, verifica-se a idealização romântica da mulher, que o poeta coloca num plano superior, como objeto de adoração, inacessível ao sujeito, que se limita a formular vagos desejos impossíveis (ex.: Responso). Estão presentes elementos como os cabelos louros, o luto, a tristeza, um grande sofrimento, o ambiente macabro do cemitério, o noturno, os castelos, os palácios e mosteiros silenciosos e abandonados, as «florestas tenebrosas», as «Velhas almas» errantes, o «locus horrendus» romântico em que se projeta um estado de alma, recordando alguns sonetos de Bocage.
    Noutros poemas (Esplêndida, Deslumbramentos), Cesário descreve a mulher fatal, artificial, citadina, que humilha, esmaga e fascina o sujeito poético, transportando consigo a artificialidade e a violência da vida da cidade, que pode levar à alienação e à perda da identidade do cidadão. A mulher é portadora da morte, não uma morte ambicionada, antes receada. A mulher é uma «vamp», produto do luxo, da moda, da despesa inútil e ostentatória. Ela é o agressor e dominador que é necessário vencer.


 
2.ª fase (1875 - 76): "Naturais" ‑ o antirromantismo e o naturalismo.

    Nesta fase, no poema Humilhações, surge o contraste entre o sujeito, «ignorado e só», e a mulher superior, distante e altiva que o atrai, sendo a distância entre homem e mulher sobretudo económica e social. Ela é uma burguesa rica que o atrai e fascina e ele é de baixa condição social; entre os dois instala-se, portanto, uma relação de opressão/humilhação, que impede qualquer hipótese de aproximação. Resta ao sujeito lírico a vingança, concretizada com o recurso ao retrato da velhinha «suja», «fanhosa, infecta, rota, má», que o poeta contrapõe como sucedâneo irreversível da mulher altiva e opressora.
    Cesário, por outro lado, em Contrariedades, critica a sociedade alienada e desumana através da denúncia de atitudes que ferem a sensibilidade do eu: o abandono a que são votados os doentes (ex.: a engomadeira tuberculosa) e os poetas (ex.: os jornais recusaram publicar os seus versos).

 
 
3.ª fase (1877 - 86): a maturidade ‑ "O real e a análise"  -  o campo e a cidade.

    Em Num Bairro Moderno, Cristalizações e O Sentimento dum Ocidental, Cesário é o pintor de Lisboa, que nos descreve quadros e tipos citadinos, sem deixar de exprimir as atitudes subjetivas provocadas pela vida exterior.
    O poeta é um burguês que se move na cidade e tudo encontra «alegremente exato», até que a tomada de consciência da dureza da vida dos trabalhadores o surpreende e fere, facto que o leva a denunciar a injustiça de que são vítimas.
    Nesta fase, desenvolve Cesário a dicotomia campo/cidade, sucedendo frequentemente a invasão simbólica da cidade pelo campo (ex.: a vendedeira). A cidade é simbolizada, por exemplo, pela atriz, pelos significados de luxo, artificialismo, teatralidade, mundanismo.
    Em O Sentimento dum Ocidental, nota-se uma revolta do sujeito perante as desigualdades sociais da sua época e um desencanto para com a cidade (vista como prisão, de que o sujeito procura fugir), onde há dor em busca de «amplos horizontes» ‑ o campo, espaço de liberdade.
    No poema Nós, Cesário retoma o elogio da vida campestre; a cidade surge identificada como «lívido flagelo, a moléstia horrenda», e oposta à salubridade do campo, à salvação da família. É provável que esta repulsa pela cidade e o entusiasmo pelo campo resultem da doença que desde cedo apoquentou Cesário, e da esperança de encontrar alívio na vida rústica, natural.


 
  
    Já segundo Joel Serrão, a produção poética de Cesário distribui-se por quatro fases:

 
1.ª fase (1873-74) – A Crise Romanesca: o idealismo romântico temperado pela ironia: o campo como “metáfora antinómica” da cidade.

 
    É a fase de iniciação literária de Cesário, caracterizada pela influência de João Penha, sendo marcado por um idealismo romântico (temas do amor e da mulher) que é atenuado pela ironia dos versos finais, e pelo rigor formal do Parnasianismo. São exemplos desta fase os poemas “A Forca” (1873), “Num tripudio de corte rigoroso” (1873), “Ó áridas Messalinas” (1873), “Cinismos” (1874), “Responso” (1874), “Esplêndida” (1874), “Setentrional” (1874), “Arrojos” (1874), “Vaidosa” (1874).

 
 
2.ª fase (1875-76) – O Naturalismo e a influência de Baudelaire.

 
    Cesário é agora influenciado pelo poeta francês Baudelaire, mostrando-se interessado pelo quotidiano citadino (os contrastes desse quotidiano são o seu alvo preferencial), do qual nos oferece belos quadros, bem ao jeito impressionista, repletos de plasticidade.
    Vários são os poemas em que isto sucede: “Deslumbramentos” (1875), “Frígida” (1875),”A Débil” (1875), “Contrariedades” (1876), “Humilhações” (1876).

 
 
3.ª fase (1877-80) – A maturidade poética – “o real e a análise”: o aprofundamento da oposição cidade/campo, sendo este ainda um “contraste idealizado” daquela.

 
    Esta é, provavelmente, a fase mais importante da sua produção poética, contemplando um conjunto de poemas que constituem uma busca febril das cores, das luzes, das sombras, dos ruídos, dos odores, das dores e dos fantasmas que pulsam na cidade de Lisboa.
    Exemplificam esta fase poemas como “Num Bairro Moderno” (1877), “Cristalizações” (1878), “Em Petiz” (1878), “O Sentimento dum Ocidental” (1889).

 
 
4.ª fase (1881-86) – O pictórico e a visão impressionista da realidade. A amplificação do contraste cidade/campo, tornando-se este uma alternativa àquela.

 
    A vida citadina aborrece-o e provoca-lhe mal-estar e o campo (o gosto das “coisas primitivas, sinceras, e a (…) boa paz regular”) substitui a cidade. A sua condição de agricultor proporciona-lhe não só a descoberta de novos temas e motivos de uma visão impressionista da realidade, mas também a evasão possível da cidade turbulenta. Ao “desejo de sofrer” e ao clima sombrio de “O Sentimento dum Ocidental” sucedem a claridade fecunda, o vigor, e a pureza dos ares do campo, que parecem antecipar uma ânsia de preservar a débil saúde do poeta.
    Exemplos deste derradeiro período são os textos “De Tarde” (?), “De Verão” (?), “Nós” (1884), “Provincianas” (derradeiro poema, incompleto).

terça-feira, 24 de setembro de 2019

"O sentimento dum ocidental"

         “O Sentimento dum Ocidental” é a investigação final e definitiva de Cesário Verde sobre a cidade. Tal como “Noite Fechada”, o poema regista as percepções e as impressões de um observador caminhando nas ruas nocturnas da cidade, com a diferença de que o narrador do presente texto passeia sozinho.
         Estamos, assim, na presença de um extenso poema composto por 44 quadras, distribuídas por 4 secções de 11 quadras (Avé-Marias, Noite Fechada, Ao Gás, Horas Mortas), cujo tema é o desespero e protesto de um português atormentado, face à cidade de Lisboa, percorrida desde o anoitecer às "horas mortas". Este é o sentimento que a civilização provoca, e ao mesmo tempo é um produto dela e um protesto contra ela.
         O seu passeio não é apenas um movimento no espaço das ruas da cidade; é também um processo no tempo, uma viagem para dentro da noite durante a qual o narrador penetra e confronta o mundo simbólico de sombras reais que é a cidade nocturna. Noite e cidade, como em “Noite Fechada”, são equivalentes simbólicos.
         A cidade é Lisboa; o “sentimento” do título é o do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela.
         A progressão da noite, desde o crepúsculo e o acender das luzes até à completa escuridão das “horas mortas”, é acompanhada, num complexo contraponto, por um correspondente aprofundamento dos sentimentos e percepções do caminhante solitário nas ruas da cidade. O melancólico “desejo absurdo de sofrer” despertado pelo anoitecer é justaposto com uma nostálgica evocação visionária do passado; a mórbida exacerbação da angústia ao acender das luzes é justaposta com as alucinações febris de um presente fantasmagórico; a intensificada amargura provocada pela crescente escuridão é justaposta com a presença espectral dos seres reais que se movem na cidade; finalmente na escuridão total das horas mortas, a evocação ansiosa de um futuro gerado pela própria noite, como a sua necessária negação num novo dia, é justaposta com a culminante visão desesperada da dor humana como um sinistro mal de fel em busca dos seus amplos horizontes bloqueados.
         Em termos formais, o poema é constituído por quadras com versos decassílabos e alexandrinos (12 sílabas – conferem maior teor descritivo e analítico à narração). A estrutura estrófica é fragmentada, igual à percepção do real. A estrutura métrica é composta de frases independentes ou coordenadas que ajudam à descrição duma cidade que o deprime e nauseia; para exprimir este sentimento, temos o uso de frases exclamativas, traduzindo espanto, surpresa, prazer, revolta. Notemos também o uso da rima interpolada e a abundância da aliteração.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Análise do poema "Num bairro moderno"

. Tema: a oposição campo / cidade – dramatização de uma invasão simbólica da cidade pelo campo, representada por uma vendedeira e sua giga de frutas e legumes.


. Assunto: o percurso do sujeito poético, a caminho do emprego às dez horas de uma quente manhã de agosto, pelas largas ruas macadamizadas de um bairro moderno da cidade, e ao longo do qual faz contrastar o conforto dos habitantes do bairro com o esforço de uma vendedeira ambulante, uma jovem camponesa pobre. Os frutos e legumes que vende são o pretexto para uma transfiguração do real, transmutando os legumes e frutos num ser humano.

            Perante este cenário, é fácil concluir que o poema apresenta uma linha narrativa: o sujeito poético caminha, pelas ruas macadamizadas de um bairro da cidade, para o seu emprego, às dez horas de uma manhã quente de agosto. Em determinado momento vê uma camponesa pobre, uma vendedeira ambulante a colocar o cabaz pesado de frutos e legumes nas escadas de uma casa luxuosa. Esta é a cena que inspira nela a “visão de artista”, que é o principal foco do poema. O sujeito poético vai observando, com bastante pormenor, o que o rodeia, contrastando a frescura da vida confortável das casas “apalaçadas” com o calor daquela rua. Segue-se a caracterização da vendedeira e transformação dos elementos da sua giga num “corpo orgânico”.


. Estrutura interna


            Porém, este luxo da vida confortável na sombra fresca das ilhas privativas de verdura, que são as casas apalaçadas, contrasta com a crua hostilidade da luz e do calor na larga rua desabrigada: “E fere a vista, com brancuras quentes, / A larga rua macadamizada.” (vv. 4-5)
            O sujeito poético desempenha um papel activo na medida em que, enquanto caminha, vai observando o que o rodeia com uma particularidade de detalhes que constituem o seu próprio comentário selectivo. As casas grandiosas têm fontes e jardins; os seus interiores, vislumbrados através das janelas quando se abrem as persianas, revelam a folhagem pintada dos papéis de parede – o jardim capturado e enclausurado como um tema decorativo – e o reluzir reconfortante das porcelanas frias. Mas além de reportar o que vê e o surpreende nas ruas durante os passeios pelos bairros da cidade, ele integra-se nas várias cenas que anota na sua poesia. Daí, vemo-lo às “Dez horas da manhã”, a descer, “Sem muita pressa, para o [seu] emprego”, e a observar agudamente o meio ambiente. O “eu” projecta-se, assim, como quem vai todos os dias para o seu emprego, tal como qualquer lisboeta o faz, na rotina e monotonia típicas do ambiente citadino e burguês de qualquer capital em qualquer época. Perante esta vida monótona, o sujeito poético reage negativamente – fala das “tonturas duma apoplexia” que já se lhe tornaram quase habituais.
            Os ataques de tonturas levam o sujeito poético a ironizar enquanto caminha sobre a “vida fácil” representada pelas casas “apalaçadas” que abundam nas ruas largas e modernas que distam do seu emprego (est. 1-3). A sua observação contém particularidades que são o seu próprio comentário selectivo (estr. 2). O luxo contrasta com a hostilidade da luz e do calor (est. 1, vv. 4-5) que retém a sua visão na presença da vendedeira de hortaliça (est. 4-5), enquanto a restante cidade prossegue na sua rotina quotidiana (est. 8); o sujeito poético fica, porém, imerso na visão que o leva a recompor gradualmente um “novo corpo orgânico” com os produtos do cabaz da vendedeira (est. 9-12).


. 2.ª parte (estr. 4-6) – Entrada da vendedeira, simbolizando a invasão da cidade pelo campo.

            No ambiente hostil onde caminha, a atenção do sujeito poético é atraída pela presença da vendedeira de hortaliça numa escada de mármore.
            A rapariga é socialmente inferior ao sujeito lírico. No entanto, tem mais em comum com as ilhas de verdura do bairro moderno do que ele: pertence ao mundo natural da vegetação que, na forma do jardim ou da sua representação no forro das paredes, circunda e invade a casa apalaçada, da mesma maneira que ela invadiu a cidade com o seu “retalho de horta aglomerada”.


. Descrição da vendedeira:
“rota, pequenina, azafamada”tripla adjectivação, diminutivo;
“esguedelhada” – desleixada – , feia”dupla adjectivação, sensação visual;
– pobre, pelas vestes, que são apresentadas mesmo antes da camponesa em si mesma;
“ressoam-lhe os tamancos”sensação auditiva;
“o algodão azul da meia”sensação visual, metonímia;
“os seus bracinhos brancos”sensação visual, diminutivo carinhoso;
– demonstra ser activa, diligente, trabalhadora (estr. 13, vv. 1-5);
– mostra-se robusta [“Nós levantámos todo aquele peso / (...) Com um enorme esforço muscular.” – estr. 14, vv. 3-5; “E como as grossas pernas dum gigante...”, “... abóboras carneiras.”, estr. 20], em paralelo com o seu aspecto frágil: “magra, enfezadita” (estr. 19, v. 4)

            Esta descrição vinca bem o contraste entre a vitalidade dos produtos do campo transportados pela vendedeira e a sua fragilidade.
            Por outro lado, sugere a imagem de uma criatura pobre e privada de tudo, com uma vida que é uma verdadeira luta, pis embora “azafamada", continua “rota” e “esguedelhada”, de uma pobreza que se reflecte também nas meias que se abrem quando ela se curva. Não obstante, ela é alegre e “prazenteira”; a sua boa disposição reflecte-se nos tamancos que ressoam, no algodão azul das meias, na chita estampada e nas ramagens da sua saia, e dá-lhe uma projecção ao mesmo tempo “pitoresca e audaz”, como alguém que desabafa a sua própria penúria, com o “peito erguido, os pulsos nas ilhargas” (mostrando-se decidida), e “duma desgraça alegre” (paradoxo) que incita o sujeito poético.


. Relações:


            A tensão que existe entre o criado desdenhosamente impaciente e a hortaliceira tem uma projecção simbólica nos últimos três versos da estrofe, cujo efeito é a intensificação da atitude negativa do sujeito perante o criado: por transferência metonímica, a moeda «lívida, oxidada» representa a cara cor de cadáver («lívido», significando cor de chumbo, entre o negro e o azul, ou a cor cadavérica) do criado, o «bater» da imagem representa a atitude hostil deste perante a rapariga, enquanto as «faces» dos «alperces», sobre os quais a moeda cai, simbolizam, pela sua frescura saudável, as faces da própria rapariga. A bofetada verbal que se lhe dá transforma-se, assim, numa bofetada simbolicamente física.
            A pobreza desta vendedeira é um sintoma de injustiça social, tal como a riqueza contrastante das casas apalaçadas.


. Recursos expressivos:
sinestesia: "xadrez marmóreo" (sobreposição de sensações visuais e tácteis);
– nas estrofes 5 e 6 há um grande rigor de observação (“apesar do sol, examinei-a”), obtido através da importância conferida às sensações auditivas ("ressoam os tamancos") e às sensações visuais ("o algodão azul da meia", "os seus bracinhos brancos”, "um cobre lívido, oxidado”);
– na estrofe 6 nota-se a grande capacidade de síntese de Cesário Verde e do seu génio em conseguir caracterizar todo um universo social e psicológico através da fala do criado ("Se te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais...”), de gestos burgueses de arrogância presentes na expressividade do(a):
® superlativo analítico "muito descansado”;
® forma verbal "atira”;
® personificação "cobre lívido”;
® cariz pejorativo e desprezível presente no adjectivo oxidado – autênticos traços naturalistas da poesia de Cesário;
– a adjectivação utilizada para a vendedeira caracteriza-a como inferior, desprezível;
verbos: "notei", "examinei"    observação do sujeito poético.


. 3.ª parte – Transfiguração da realidade  –  marca surrealista 


. Marcas do real     – "E eu recompunha"
– a azáfama matinal de uma rua citadina (estr. 7-8):
. sensações olfactivas: "Bóiam aromas";
. sensações visuais: "fumos de cozinha", "claros de farinha";
. sensações auditivas: "uma ou outra campainha toca".


   


NOTAS:

            1.ª) O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela frágil mensageira do campo é uma mulher gigantesca com grandes seios maternais ("seios injectados”) e opulentas “carnes tentadoras”; uma Deusa-Mãe arquetipal, uma personificação da Natureza.

            2.ª) Este exuberante corpo vegetal é a antítese do corpo da vendedeira que o transporta: caracterizada inicialmente como “rota, pequenina, azafamada”, a rapariga é também “esguedelhada, feia” (estrofe 5), “magra, enfezadita” (estrofe 19), “descolorida nas maçãs do rosto, / E sem quadris na saia de ramagens” (estrofe 16).

            3.ª) A transfiguração do real (que foi desencadeada pelo “cobre lívido, oxidado” caindo sobre as “faces duns alperces” – estr. 6, vv. 4-5), essa fuga para o fantástico não significa um abandono do real, mas sim atribui uma visão mais ampla dos seus aspectos essenciais, conseguida através da transformação de sensações em imagens. Deste modo, dos frutos e legumes nasce a imagem das várias partes de um gigantesco corpo natural, simbólico do campo: prevalecem os substantivos, a adjectivação sugestiva [“túmido”, “fragrante”, est. 11, v. 3; “(...) vívida, escarlate”, est. 12, v. 3; “(...) hirtos, rubros”, est. 12, v. 5], o verbo expressivo em Bóiam aromas, fumos de cozinha” (est. 8, v. 1); existem enumerações (est. 10-11), elipses (est. 9, vv. 5; est. 10, vv. 4-5), comparações (“túmido”, “fragrante, / Como de alguém que tudo aquilo jante, / Surge um melão, que me lembrou um ventre”, est. 12, vv. 3-5; “E como um feto”, est. 12, v. 1); hipálage (“E às portas, uma ou outra campainha / Toca, frenética, de vez em quando”, est. 8, vv. 4-5); e metáforas [“(...) verdes folhos”, est. 10, v. 2; “São tranças dum cabelo (...)”, est. 10, v. 3; “E os nabos – ossos nus”, est. 10, v. 4; “E os cachos de uvas – os rosários dos olhos”, est. 10, v. 5].
            Em suma, esta metamorfose da realidade é bastante simbólica. A giga é “um retalho de horta”, daí que transpire força, vigor, saúde, vida, poder de transformação, por oposição à cidade, representada pelo sujeito poético e, de certa forma, pela hortaliceira, conotada com dor, sofrimento e, no limite, morte. Esta oposição campo / cidade, vida / morte é um dos binómios estruturadores da poesia de Cesário e está ligada ao mito de Anteu. Anteu foi um gigante, filho de Neptuno e da Terra. Na luta contra Hércules, Anteu recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e conseguiu desta forma eliminá-lo. Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera energias físicas ou psicológicas. No caso deste poema, o mito de Anteu está presente no sentido de que só o contacto com o real, mas sobretudo com o campo, com a terra, confere ao homem força e vitalidade.

            4.ª) Serão a reacção física negativa e a tensão psicológica que o sujeito patenteia na 1.ª parte apenas o resultado da monotonia da sua vida? Ou serão ao mesmo tempo o resultado de um esforço constante de sublimar problemas pessoais? Nesta ordem de ideias, o que lhe desperta o interesse não é a paisagem, em geral, mas, especificamente, as casas, os lares, que, por sua vez, representam tudo aquilo que lhe é negado pela sua inadaptação sexual. Enquanto o «eu» vai observando e anotando, apresenta-se-lhe repentinamente, de costas, a figura de uma pequena hortaliceira, e logo, numa imagem brilhante e visual, o sujeito foca nela um aspecto erótico, ou pelo menos, sugestivo, no «algodão azul da meia» que se abre quando ela se curva. Neste momento começa-se a sentir a tensão que noutros poemas se manifesta perante a figura feminina quando, «Subitamente, através da sua visão de artista», todos os controles, as barreiras censoriais erguidas contra os impulsos da líbido no processo de sublimação, se rompem, e segue-se-lhe depois o quadro mais sensual de toda a obra de verdiana, como seu o «eu» estivesse protegido e desculpado agora pela sua «visão de artista». É neste momento que a sexualidade inerente, insatisfeita e problemática do «eu», em termos da sua ambivalência, atinge o seu clímax.

            5.ª) Por outro lado, é aqui que o sujeito poético se apresenta na pele de um artista, de um poeta, no gesto demiúrgico de transformar esses alperces, humilhados pelo valor de troca e pela classe que o determina (representada no criado de uma casa apalaçada), num motivo de metaforização poética de recriação vital  -  de uma sobre-vida. Trata-se aqui de um projecto de sobre-vivência não só do sujeito, que passa a ter uma visão de artista e se autocontempla no acto de transmutar os simples vegetais, com a ajuda da luz do sol, num corpo recriado, mas também de sobre-vivência da própria natureza vegetal, reagindo contra a funesta redução do seu uso ao valor de troca, entendido como mortal: o cobre é qualificado de oxidado e além disso Cesário substituiu a qualificação da versão primitiva, «ignóbil», por «lívido». Deslocou o enfoque do conflito humano e sentimental para um nível mais profundo, onde a lógica económica se cruza com uma lógica fantasmática dominada pela pulsão de morte. Para revalorizar a natureza  -  os frutos e os legumes  -  o sujeito torna-se e mostra-se poeta, capaz de a recriar num corpo carnal, e põe a nu o procedimento metafórico com a sua capacidade fecundadora e produtiva. A metáfora transforma-se assim num equivalente da fertilidade da natureza.
            Convém ainda notar que não é um corpo qualquer que a «visão de artista» recompõe, mas pedaços de um organismo feminino, agigantados e plurais, numa série que caminha do mais epidérmico para o mais visceral, para os órgãos da digestão, da procriação e para os centros de vida: «ventre», «feto», «sangue» e «corações pulsando». Se a natureza comestível se transforma em natureza carnal e fértil, o contrário também sucede. A metáfora é também pretexto para uma oralização dos estilhaços do corpo feminino, tornando-o deglutível e nutritivo como as hortaliças e como elas revigorante, pois que é do «gigo» que o sujeito recebe «emanações sadias».

            6.ª) Uma vez que o sujeito poético recompõe, isto é, compõe de novo “um novo corpo orgânico” com os frutos e legumes vistos em termos metafóricos (“... descobria / Uma cabeça numa melancia...”), a sua actividade implica a existência anterior de um modelo ou arquétipo, de uma «ideia» no sentido platónico, que houvesse sido decomposto em frutos e legumes. Esse modelo é, portanto, a própria Natureza. Mas como o corpo que é recomposto é um corpo “novo”, fica também implícito que a Natureza, no processo da sua decomposição, tinha perdido a sua forma ou totalidade original. A visão de artista ganha, assim, uma dimensão mais ampla e mais profunda: é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.


. 4.ª parte (est. 13 - fim) – Interrupção da visão pelo pedido da vendedeira ao sujeito poético que a ajude, seguida da observação:

. da vendedeira:
- a palidez e a fragilidade:
. metáfora / sensação visual: "descolorida nas maçãs do rosto"(1) ;
. metáfora e hipérbole: "e sem quadris na saia de ramagem"(1) → associado à “rama dos papéis pintados” (v. 9) nas paredes da casa apalaçada, este verso torna-se numa comparação entre a vendedeira rural que invade a cidade com o campo e a casa citadina que aprisiona o campo na cidade;
. adjectivação expressiva: "pitoresca e audaz"; "magra, enfezadita"; "ver-dura rústica, abundante"; "repolhudas, largas"; "pobre caminhante"; "duas frugais abóboras carneiras";
. antítese e construção estrófica final, onde o verso mediano carrega com todo o peso dos 2 + 2 versos marginais, referindo-se aquele à «pobre caminhante» e os outros quatro, que o encaixam e esmagam, às «grossas pernas dum gigante» e à «verdura rústica, abundante» das abóboras:
"Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas largas." → contraste entre a fragilidade da vendedeira e a "robustez" dos produtos que transporta;
. comparação: "E como as grossas pernas dum gigante (...) / Duas frugrais abóboras carneiras", realçando as grandes dimensões e o peso das abóboras em contraste com a fragilidade da vendedeira;
. sensação auditiva: o pregão da vendedeira;
. oxímoro/paradoxo: "desgraça alegre";

. do conteúdo da giga:
- adjectivação expressiva: "repolhudas, largas"; "emanações sadias"; "duas frugais abóboras carneiras";
- sensações olfactivas: os aromas provenientes da giga;

. da realidade exterior:
- metáforas: "O sol dourava o céu";
“Seus raios de laranja destilada”;
- sensações auditivas: "E ao longe rodam umas carruagens"; "Oiço um canário";
- imagem: "... parece que joeira / Ou que borrifa estrelas"; "... e a poeira / Que eleva nuvens altas a incensá-lo";
- exclamação: "que infantil chilreada";
- adjectivação expressiva: "infantil chilreada".

            O aspecto da colaboração aprazível que se salienta na expressão «sem desprezo» reforça-se pelo uso da 1.ª pessoa do plural do verbo junto com o pronome correspondente, que estabelece um cunho de intimidade relativamente à relação que assim se institui entre o sujeito e «ela». A hortaliceira depois agradece-lhe e ´é como se o «eu» se purificasse e purgasse do fastio que sente em relação ao meio urbano por ter tido este contacto com uma presença feminina bem diferente da maioria das mulheres que se nos afiguram na poesia de Cesário em geral. Mas, se bem que o contacto se realize e o sujeito consiga vencer momentaneamente a distância social entre ele e ela, é um contacto passageiro cujo aspecto transitório se salienta pelo substantivo «despedida», com a sua conotação de partida, que, por sua vez, se realça em função do pronome demonstrativo do terceiro grau («naquela despedida»). A separação já implícita concretiza-se pelos verbos motores que se lhe seguem quando os dois seguem em direcções opostas, num acto mútuo de afastamento que transpõe para o lado espacial o que já se verificou no temporal: «E enquanto sigo para o lado oposto, / [...] / A pobre afasta-se [...].» A relação «eu-ela» marca-se com o afastamento, um afastamento implícito e "psicológico", em função da divergência de classe social, e um afastamento explícito e físico, em função da dinâmica do desencontro.

            Como foi dito anteriormente, a “visão de artista” do sujeito poético é um projecto “visionário” de reconquista de um paraíso perdido.
            É nestes termos que a atitude dele perante a pobreza da rapariga pode tomar a forma aparentemente contraditória acentuada pelo uso do verbo incitar na sequência do oximoro “desgraça alegre”. A rapariga, como a transportadora da energia vital que falta ao sujeito poético – aprisionado na rotina diária da sua vida citadina contra a qual reage com frequentes tonturas ou da qual procura fugir em fantasias visionárias – , é ela própria transfigurada porque transfiguradora. Até a sua miséria pessoal é secundária à riqueza funcional da sua identificação com o mundo natural que representa. Com efeito, é directamente dela que o sujeito poético recupera a força simbolizada por esse mundo. Ela pede-lhe, “prazenteira”, que a ajude a levantar o pesado cabaz e ele acede, “sem desprezo”; a frase com que ela lhe agradece tem nele o efeito mágico de uma bênção:
“«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!»
E recebi, naquela despedida,
As forças, a alegria, a plenitude,
Que brotam dum excesso de virtude
Ou duma digestão desconhecida.”
            O efeito cómico dos últimos versos é característico do uso de ironia como um mecanismo de correcção sentimental na poesia de Cesário: a virtude é o seu próprio prémio, mas uma boa digestão ajuda. Mário Sacramento refere que este comentário irónico se relaciona com as “tonturas” a que o sujeito poético se refere no início do poema: «Tal “digestão desconhecida” só ironiza se tivermos presentes os prenúncios de apoplexia que o narrador nos havia confiado sessenta versos atrás Não obstante a auto-ironia, o contacto do sujeito poético com a vendedeira, que, no plano simbólico, é a transportadora da Deméter construída pela sua “visão de artista”, tem sobre ele um efeito regenerador: sente-se com força, alegria, plenitude.
            A metamorfose dos frutos e dos legumes tem, portanto, um equivalente psicológico na transformação subjectiva que ocorre no sujeito lírico. O processo dessa transformação gradual é marcado pelas sucessivas modificações da sua atitude em relação ao Sol. Inicialmente um sol real e hostil, cuja intensidade interfere com a visão literal das coisas – “E eu, apesar do sol, examinei-a” (est. 5) – , torna-se ele próprio, no acto da visão artística, num “intenso colorista”, num artista também, e num aliado do sujeito lírico: “Se eu transformasse os simples vegetais,
À luz do Sol, o intenso colorista...” (est. 7).
            E logo que o artista acaba de “dourar” a realidade no seu acto de imaginação criadora, assim também “o Sol dourava o céu” (est. 13). A maiúscula, indicativa da personificação do sol, que não fora usada na primeira referência ao sol real, também o não vai ser quando aparece pela última vez, de novo o sol real, mas agora como um efeito metonímico do gosto e da cor da própria fruta (est. 18).
            A atenção do sujeito poético volta a incidir sobre os pormenores do seu ambiente imediato. Na quadra anterior tinha observado as nuvens altas de poeira a “incensar” uma criança que regando uma trepadeira, numa “janela azul”, “parece que joeira ou que borrifa estrelas”. Agora ouve a “infantil chilreada” de um canário, sente a lida das ménages entre as geloseias” e vê o Sol de novo integrado no contexto dos outros objectos da realidade restaurada. Mas a vendedeira – “magra, enfezadita” – só é parcialmente restaurada à realidade das suas circunstâncias objectivas, pois continua ainda associada às qualidades de “força, alegria, plenitude” transpostas para ela da Natureza.
            A visão final do sujeito lírico, no entanto, não é a rapariga magra e enfezadita mas as enormes pernas de um gigante emergindo, sem tronco, da “verdura rústica” do cabaz que ela leva à cabeça:
“E pitoresca e audaz, na sua chita,
O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,
Duma desgraça alegre que me incita,
Ela apregoa, magra, enfezadita,
As suas couves repolhudas, largas.”
            Esta nova metamorfose do conteúdo do cabaz, a visão das pernas do colosso triunfante carregando sobre “a pobre caminhante”, funciona como um comentário ambíguo e complexo da primeira metamorfose. A mudança do estado psicológico do narrador estivera intimamente ligada à obliteração visionária da percepção objectiva da vendedeira e dos seus produtos; esta última visão reintegra a percepção compadecida da rapariga, finalmente entendida como uma “pobre caminhante” esmagada pela imensidade do peso que transporta.
            Esta complexa atitude em relação à vendedeira de “Num Bairro Moderno” marca um ponto de viragem no tratamento do contraste campo-cidade na poesia de Cesário. Na prévia polarização de sentimentos e de atitudes nesta antinomia, «campo» tinha representado um conjunto de recordações, de percepções e de projectos que funcionavam como uma metáfora de uma ordem oposta à realidade constritora da cidade. Era portanto definido em termos negativos: o significado de «campo» só era deduzível por contraste com o seu pólo oposto, a cidade confinadora. Era uma essência sem existência real.
            A metáfora amplificada que é “Num Bairro Moderno” funde a observação e o símbolo: o contraste entre os pólos semânticos, representados pela cidade e pelo campo adquire neste poema uma nova dimensão que prevê a investigação e a análise do campo nos seus próprios termos, independentemente da ideia ou conjunto de ideias sobre a cidade que haviam determinado a definição do campo como seu equivalente antinómico.
            O ponto nodal da evolução semântica da metáfora “campo” é a consciência social despertada pela cidade, e expressa na atitude compadecida e revoltada dos narradores de “Desastre” e de “Contrariedades” perante a pobreza e a opressão que nela observaram. É significativo que a desgraça do ajudante de pedreiro de “Desastre” não tenha sido temperada por qualquer elemento de “alegria” que pudesse inspirar o narrador a uma visão transfiguradora e que a miséria da engomadeira de “Contrariedades” não tenha sido considerada nem “pitoresca” nem “audaz”. O único incitamento trazido por essas duas vítimas da exploração citadina foi ao protesto contra a ordem social denunciada pelas suas situações.
            A pobreza da vendedeira de “Num Bairro Moderno”, descrita objectivamente pelo narrador antes de ser neutralizada pela sua visão transfiguradora da Natureza, é um sintoma tão claro da injustiça social como a riqueza contrastante das casas apalaçadas.
            Este contraste, dramatizado no sobranceiro e alienado desdém de um criado de uma dessas casas pela rapariga (“Do patamar responde-lhe um criado: / «Se te convém, despacha; não converses. / Eu não dou mais.» E muito descansado, / Atira um cobre lívido, oxidado, / Que vem bater nas faces duns alperces.”) e no contraste implícito entre a imagem das carruagens rodando ao longe e a imagem da “pobre caminhante” curvada sob o seu pesado fardo, revela a posição anómala do narrador, que nem pertence ao campo como a vendedeira, nem tem o poder para se apropriar de um pedaço de campo para seu uso privativo na cidade, como os donos das casas apalaçadas.
            O bairro moderno e a visão inspirada pela presença da camponesa nas suas ruas representam duas maneiras de resolver a anomalia: o narrador pode tentar triunfar na cidade, nos termos da cidade, e assim alcançar a vida fácil e confortável das casas apalaçadas; ou pode transfigurar a cidade, num acto de imaginação artística. Mas é no seu contacto humano com a vendedeira que recebe as forças, a alegria e a plenitude que lhe faltavam. A ajuda que oferece “sem desprezo”, em contraste dramático com o desprezo do criado alienado, sendo uma recusa das hierarquias sociais em que ele próprio, a caminho do emprego, está relutantemente integrado, é o prelúdio da sua compadecida visão final da “pobre caminhante”.
            Assim, a base de uma possível resolução dinâmica do inevitável impasse gerado pelo conflito entre uma consciência social compadecida pela miséria de que não partilha e um mundo onde essa miséria parece ser a fundação necessária da riqueza, começa a ser criada neste poema não já pela simples polarização do sentimento nos significantes antinómicos “campo” e “cidade” – ou os seus equivalentes temporais “passado” e “presente” – mas pela dramatização, na situação de uma «persona» poética, de um processo entre os dois pólos. Com efeito, ao colocar a fuga visionária do narrador na área semântica de caracterização social definida pelo todo do poema, Cesário está a significar valores opostos aos da sua própria classe privilegiada, sugerindo uma reformulação socialmente amplificada do anterior contraste entre campo e cidade.



. A dicotomia cidade/campo e o mito de Anteu

            Quanto à dicotomia cidade/campo, esta fica bem explícita ao encararmos a vendedeira como a metonímia do próprio campo, invadindo assim com o seu pregão, a sua força, a sua vitalidade, o bairro citadino, apático, adormecido; chega mesmo a sensibilizar o sujeito poético que corresponde ao seu chamamento para a ajudar a prosseguir a sua tarefa (“Eu acerquei-me dela, sem desprezo”, est. 14, v. 1). A invasão da cidade pelo campo é ainda mais flagrante quando a própria giga da vendedeira – outra metonímia quando se lhe coloca o epíteto de “(...) retalho de horta aglomerada” (est. 4, v. 4) – toma vida na visão do poeta (est. 9-12) ao ponto de, no final, tomar a vendedeira como fazendo parte dessa super-realidade (ela é a causa e o efeito), uma vez que a comparação das “grossas pernas” com as “abóboras carneiras” nos transporta novamente para tal transfiguração (est. 20).
            O mito de Anteu (um gigante e portentoso lutador, era invencível desde que estivesse em contacto com a terra; aliás, nas lutas a sua energia era redobrada quando era atirado ao chão devido a esse contacto com o solo) perpassa no simbolismo dado a esta figura feminina e os produtos transfigurados – repare-se como é do próprio chão que o sujeito poético ajuda a vendedeira a recolocar a giga na cabeça (“Nós levantámos todo aquele peso / Que do chão de pedra resistia preso, / Com um enorme esforço muscular.”, est. 14, vv. 3-5) e deste acto lhe advêm “As forças, a alegria, a plenitude” (est. 15, v. 3), tal como Anteu se manteve indomável enquanto não tirou os pés da terra, já que desta emanava toda a sua força, o seu poderio. Por extensão a esta ideia, todos os produtos luxuriantes da giga são produtos da terra e, por tal, pujantes, robustos, vitalizadores – repare-se na antítese aquando da descrição da vendedeira (“Ela apregoa, magra, enfezadita, / As suas couves repolhudas, largas.”, est. 19, vv. 4-5) ou, ainda, na comparação com os membros inferiores – aqueles que inerentemente à terra estão ligados: “(...) grossas pernas dum gigante”, “(...) Duas frugais abóboras carneiras.” (est. 20, vv. 1, 5).


. Marcas do Surrealismo: a transfiguração surrealista dos frutos e legumes num "corpo humano", uma transfiguração que foi tornada possível, esteticamente, pelo poder de uma «visão de artista».


. Marcas do Impressionismo:
. a presença da cor;
. a presença da luz;
. as formas;
. o uso da sinestesia;
. o uso da hipálage;
. a acumulação de pormenores;
. a impressão inicial que o objecto provoca no sujeito;
. as sensações;
. a noção de movimento [“Sobem padeiros (...)”].


. Marcas do estilo poético de Cesário:
-» emprego de um vocabulário pragmático, preciso, concreto e corrente (“Se ela se curva esguedelhada, feia...”);
-» utilização inusitada do adjectivo (“Atira um cobre lívido, oxidado”);
-» emprego da sinestesia (“Brancuras quentes”);
-» recurso a sensações:
- visuais: “matizam”;
- tácteis: “fere”;
- olfactivas: “Bóiam aromas, fumos de cozinha”;
“A hortelã que cheira”;
- auditivas: “Toca frenética...”;
- gustativas: “Como dalguém que tudo aquilo jante”.


. Síntese

. Duas realidades presentes no poema:
* a objectiva, construída através da descrição do bairro e das personagens que nele se movimentam (estrofes 1-6, 13-19);
* a subjectiva, patente na fuga imaginativa leva a cabo pela visão pessoal do sujeito que vagueia, deambula pelo bairro (estrofes 7-12 e 20).

. O poema explicita o carácter deambulatório (o sujeito descreve o que vê à medida que passeia pelo bairro), cinético e visual da poesia de Cesário:
* a focagem do plano geral (o bairro);
* a passagem para o plano particular (o episódio da hortaliceira).

. Características narrativas do poema:

. Tempo:   “dez horas da manhã” (1);
                   “ao calor de Agosto” (16).

. Espaço:   “larga rua macadamizada” enquadrada por casas apalaçadas com quartos estucados, paredes de papéis pintados, mesas com porcelanas, jardins com nascentes Þ bairro burguês (1, 2).

. Personagens:
- sujeito poético: frágil, doente, “Com as tonturas de uma apoplexia”;
- hortaliceira: mulher do povo, esguedelhada, magra, feia, doente, enfezadita (5, 16, 19).
     A mulher do povo, apresentada de uma forma realista, não sujeita a uma metamorfose poética, constitui uma inovação da poesia de Cesário. Esta mulher pobre, feia, “sem quadris”, esmagada pelo peso do cabaz, simboliza também as preocupações sociais presentes na poesia de Cesário, aspectos «revolucionários» para a época.

. Ação: o deambular do sujeito poético pelo bairro:
- o encontro com a hortaliceira e a fuga imaginativa a partir da giga (esta fuga imaginativa é uma micronarrativa encaixada na narrativa de 1.º grau);
- o retomar do passeio e a visão final.


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