Português: 11/01/2022 - 12/01/2022

terça-feira, 29 de novembro de 2022

Análise de "A Carne é triste depois da felação", de C. Drummond de Andrade


             Este poema integra o livro póstumo de Carlos Drummond de Andrade, O amor natural, publicado em 1992, e é caracterizado por um tom claramente melancólico.
            O sujeito poético começa por declarar que “A carne é triste depois da felação”. O nome «carne» materializa a humanidade que há no homem, ou seja, “A carne é triste” corresponde à humanidade, ao homem, à própria existência, que é (são) triste(s). Por seu turno, o nome «carne» é o tecido muscular, o músculo, pelo que podemos entender a «carne» como referindo-se ao pénis, que, por sua vez, constituirá uma metonímia do corpo. Assim sendo, o pénis é triste depois da felação, nome que se refere ao gozo sexual provocado pela sucção.
            Será que antes da felação a carne já era triste? Ou se é apenas “Depois do sessenta-e-nove [que] a carne é triste”? A repetição do adjetivo «triste», caracterizando o pós-felação e o pós-sessenta-e-nove, indicia que o «eu» se sente dececionado e insatisfeito, ideia que parece ser confirmada pelos versos “Não há mais nada / após esse tremor?” O gozo parece conduzir ao vazio, à incompletude e, desse modo, à melancolia. O próprio prazer é posto em questão, por causa da sua natureza aparentemente contraditória (“tão fundo na aparência mas tão raso / na eletricidade do minuto?” e até antonímica: “fundo na aparência” mas “tão raso”.
            A forma do poema parece mimetizar o sexo oral: os dois primeiros versos têm 11 sílabas métricas; os dois seguintes, 10; os dois pares subsequentes são formados por um eneassílabo (9 sílabas métricas) e um decassílabo. A alternância 9-10, 9-10 forma em si mesma um par e, também, aponta para um vai e volta. Assim sendo, este emparelhamento e movimento entre pares de versos (dois hendecassílabos, dois decassílabos e dois eneassílabos) parecem remeter (mimetizar) para o sexo oral, sugestão que é reforçada pelo penúltimo verso: “e gosma”. Note-se como este verso é breve, sugerindo o instante pontual do prazer do orgasmo. O último verso – “escorre lentamente de tua vida” – indicia o momento da ejaculação. Estes dois versos complementam-se: “e gosma” significa “e goza” e de “escorre lentamente de tua vida” parecem pulsar jatos de sémen (inclusive na alternância entre sílabas tónicas e átonas). Convém ainda atentar no predomínio de sons consonânticos oclusivos (/g/, /k/, /t/ e /v/),que se pronunciam fechando-se totalmente o aparelho fonador, sem dar espaço para o ar sair, o que sugere o “emparedamento” do sujeito poético perante a constatação imediatamente posterior ao orgasmo de que “Já se dilui o orgasmo na lembrança”, não havendo “mais nada”. O que resta? A melancolia e a tristeza que sucede à felação.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

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Análise da Cena 8 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Localização da cena na obra
 
            Esta cena é antecedida pela preocupação de D. Madalena quanto à deslocação de Manuel de Sousa e de Maria a Lisboa, esta para visitar a Condessa de Vimioso, e é seguida por novas observações acerca do bem-estar e da segurança de Maria e constatação, por arte da mãe, em pânico, da negatividade de que aquele dia se reveste, na medida em que fora a data em que casara pela primeira vez, a data em que perdera o primeiro marido na batalha de Alcácer Quibir e que vira e amara Manuel de Sousa pela primeira vez.

 
Assunto: o estado de preocupação de D. Madalena, agravado pela referência ao exemplo da Condessa de Vimioso, que Manuel de Sousa refere numa tentativa vã de a tranquilizar.
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte – O medo incontrolado de D. Madalena por ficar sozinha.
 
2.ª parte – A tentativa de apaziguamento de D. Madalena por parte de Manuel de Sousa, referindo outras situações e personagens que, simultaneamente, se aproximam e distanciam do seu caso.
 
 
Caracterização de D. Madalena
 
Fraca:
- porque se deixa abater pelos seus próprios sentimentos – dominada pelos sentimentos característica da heroína romântica;
- porque não luta para ultrapassar a sua insegurança: “Que queres? Não está na minha mão.”;
- porque não se considera detentora de coragem semelhante à da Condessa de Vimioso, que ingressou num convento.
 
Insegura, tensa, inquieta e receosa de ficar só: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Sentimental e emotiva, bem ao gosto romântico.
 
Mãe desvelada: preocupa-se com a saúde débil de Maria.
 
Mostra-se espantada e até indignada com a atitude tomada pela Condessa de Vimioso: espantada, pois os esposos separaram-se sem razão aparente; indignada, já que essa separação não lhe parece razoável.
 
Por outro lado, mostra admiração pela força e pela virtude que a Condessa demonstrou ao abdicar dos bens e amor terrenos, até porque não se vê capaz de tais «perfeições», considerando a atitude dos condes como uma assunção de morte em vida.
 
 
Caracterização de Manuel de Sousa
 
Começa por repreender a esposa por esta continuar a mostrar-se crente em achar-se “só no mundo”, como o demonstra a exclamação «Madalena!».
 
É mais racional e sensato do que a esposa, firme, decidido e objetivo, como o demonstra o facto de tentar afastar os agouros, as crenças e as superstições desta, fazendo-lhe notar o exagero dos mesmos: “Olha se ela faria esses prantos, quando disse o último adeus ao marido…”.
 
Mostra-se dedicado, carinhoso e apaixonado pela esposa, o que se nota nas formas de tratamento utilizadas: “Oh! queria mulher minha”.
 
Mostra-se também preocupada com a fragilidade e a insegurança de D. Madalena ao tentar apaziguá-la e ao deixar seu irmão Jorge fazendo-lhe companhia: “Jorge, não a deixes”.
 
É um homem seguro, pois sente-se protegido por Deus e convicto de que nada lhes acontecerá: “A nossa situação é tão diferente (…) Em todas nos pode ele abençoar”.
 
 
Elementos trágicos da cena
 
O pathos constante de D. Madalena (o sofrimento da personagem que impregna a obra de um cariz trágico e nefasto).
 
Os presságios:
- O receio de D. Madalena de ficar só no mundo.
- Os terrores de D. Madalena.
- O comentário premonitório de Frei Jorge, que antecipa a separação de Madalena e a sua entrega à vida religiosa: “É perfeição verdadeira; é a do Evangelho: «Deixa tudo e segue-me».”
- A história dos condes de Vimioso, referida pela boca de D. Madalena: “Vivos ambos… sem ofensa um do outro, querendo-se, estimando-se… e separar-se cada um para sua cova! Verem-se com a mortalha já vestida e… vivos, sãos… depois de tantos anos de amor… e conveniência… condenarem-se a morrer longe um do outro, sós, sós! E quem sabe se nessa tremenda hora… arrependidos!” Esta referência antecipa a separação de D. Madalena e Manuel de Sousa, que serão obrigados a seguir o exemplo de D. Joana e do marido, estabelecendo-se um paralelo entre os dois casais. De facto, a semelhança entre os dois casos é evidente: tanto D. Madalena como Manuel de Sousa optaram pelo afastamento da vida mundana, decidiram professar, tal como sucedeu à condessa (que entrou no Convento do Sacramento em 1607) e a seu esposo (que professou pouco depois em S. Domingos de Benfica). A reclusão conventual parece ser a alternativa, na época, para os responsáveis por atos de menor dignidade ou nobreza – a constatação do adultério de D. Madalena e a ilegitimidade de Maria e Manuel de Sousa naquela família.
 

Características trágicas da cena

A importância conferida a aspetos religiosos.
 
A importância atribuída ao amor, centro dos problemas que afetam as personagens.
 
A interioridade e os conflitos individuais patentes em D. Madalena, quer nos seus monólogos, quer nos seus diálogos.
 
A linguagem utilizada, que pretende ser um espelho fiel da emotividade, do estado psicológico das personagens.
 
A espontaneidade da oralidade: as pausas, as frases suspensas e as repetições.

 
Linguagem
 
Gradação: “Tenho este medo, este horror de ficar só…”.
 
Repetição do determinante demonstrativo «este».
 
Hipérbole: “… de vir a achar-me só no mundo…”.
 
Reticências nas falas de D. Madalena.
 
O vocábulo «cuidados» possui um duplo significado:
- por um lado, traduz a preocupação de D. Madalena quanto à saúde débil de Maria;
- por outro lado, refere-se aos temores, receios, que a atormentam a partir de uma passagem da sua vida que a inquieta.
 
Trocadilho: “Eu não tenho já cuidados” – na verdade, D. Madalena só sente / tem “cuidados”, preocupações, medos. A ironia aqui presente reforça o seu estado de extrema inquietação, que a faz quase chegar a um estado de demência ficando consternada, perturbada com a existência e a razão de tais cuidados.
 
Comparação: “… parece que vou eu agora embarcar num galeão para a Índia…” – sugere a grande angústia de D. Madalena.
 
Ironia trágica das palavras de D. Madalena e Manuel de Sousa quando se referem aos condes de Vimioso: “E que temos nós com isso? A nossa situação é tão diferente.” O casal comenta a entrada dos condes de Vimioso para o convento como sendo um sacrifício de que eles mesmos não seriam capazes: “… não sou capaz de chegar a essas perfeições”; “E que temos nós com isso?” A ironia reside no desconhecimento de estarem tão próximos de uma situação que julgam muito diferente da sua.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Análise da Cena 7 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
O discurso de D. Madalena demonstra a sua preocupação e ansiedade: repetições, cortes nas frases, exclamações, mudança de tom de voz [“(Baixo a Doroteia)”; [“(Fala baixo da Doroteia que lhe responde baixo também: depois diz alto.)”], recomendações a todos que acompanham a filha.
 
Manuel de Sousa Coutinho e Maria consideram a hipótese de já não ir a Lisboa, tal é o choro de D. Madalena, que se despede dramaticamente do marido (“Adeus, esposo do meu coração!”) e, além dos muitos conselhos que dá (“Maria, minha filha, toma sentido no ar, não te resfries. E o sol… não saias de baixo do toldo do bergantim. Telmo, não te tires de ao pé dela.”), revista tudo o que a filha leva, para que não lhe falte nada.
 
Tendo em conta que a viagem é curta (de Almada a Lisboa e regresso) e breve (regressarão naquele mesmo dia), como se justifica todo o dramatismo de D. Madalena? Ela pressente que esta partida, esta despedida, não é momentânea, de horas, mas para sempre. As cenas seguintes comprovam que tem razão, já que, quando se reencontrar com o marido e com a filha, o seu casamento e a sua família presentes não são mais viáveis, pois está confirmado que D. João de Portugal está vivo através do seu regresso na pele do Romeiro. Assim sendo, esta é a última vez que se veem enquanto elementos da mesma família. Por exemplo, D. Madalena e Maria só tornarão a ver-se no momento em que a primeira se prepara para ingressar no convento.
 
D. Madalena, nesta cena, mostra-se muito carinhosa com Maria e zelosa e preocupada com o seu bem-estar, envidando todos os esforços para que nada lhe aconteça ou falte. Maria, por sua vez, procura acalmar a mãe, mas, na realidade, sente-se profundamente abalada com a tristeza e o sofrimento que D. Madalena deixa transparecer.
 

Análise da Cena 6 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Esta é uma cena rápida, girando em torno de Maria, após a sua saída de cena para se preparar para a viagem a Lisboa.
 
Manuel argumenta em defesa da filha, afirmando que a ida lhe fará bem, pois ela necessita de se distrair, de sair de casa, mudar de espaço. Só assim se evitará que esteja sempre a pensar nos mesmos assuntos.
 
D. Madalena declara que quer que Telmo acompanhe Maria: “Telmo que vá com ela; não o quero cá.” Por que razão deseja ela tal coisa? D. Madalena não quer ficar sozinha com o velho aio de D. João de Portugal, pois teme que se repita o diálogo da cena II do Ato I  e que a atormente com os seus presságios, nomeadamente com as dúvidas em torno do regresso de D. Sebastião e D. João. Assim sendo, deseja que ele esteja longe, sobretudo naquele dia tão marcante para ela. Perante o marido, justifica-se dizendo que Telmo e Maria necessitam um do outro e que ele, estando velho, a põe a cismar: “… e entra-me com cismas que…”. Tal como sucede ao longo da peça, D. Madalena receia a presença de Telmo.
 
Nas falas de D. Madalena, assumem grande relevância as reticências, que indiciam a falta de argumentos de D. Madalena para explicar o desejo de que Telmo não fique em Almada. De facto, as reticências mostram que a personagem interrompe as suas frases, como se procurasse um argumento minimamente convincente. O seu discurso é o de quem fala movido pela emoção e não pela razão, por razões convincentes.
 

Crónica de D. João I: prólogo e Cap. XI


quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Análise da Cena 5 do Ato II de Frei Luís de Sousa


  Importância da cena no contexto da peça
 
            Esta cena repõe aparentemente a ordem e a tranquilidade na família. Como o marido já não precisa de se esconder, D. Madalena sente-se “curada” e Frei Jorge incentiva-os a usufruir da felicidade como uma dádiva divina.
            Contudo, a alusão a sexta-feira, um dia muito temido por D. Madalena, e a ausência do marido, da filha e do próprio Telmo indiciam a vulnerabilidade da personagem, que ficará confirmada com a chegada do Romeiro. O confronto, cara a cara, entre D. Madalena e o primeiro marido prepara-se.
 
 
Estado de espírito de D. Madalena

D. Madalena surge em cena restabelecida e bem-disposta, afirmando estar bem (“Estou boa já, não tenho nada…”), mas essa boa disposição é passageira, e logo parece regressar à profunda tristeza em que vive [“(Vai recair na sua tristeza).”], procurando, após as palavras de Frei Jorge, mostrar-se alegre [“(fazendo por se alegrar)”].
 
No entanto, ao saber que o marido tem de ir a Lisboa, fica inquieta e apreensiva (“A Lisboa… hoje!”). A referência àquele dia (sexta-feira), ao qual atribui uma conotação muito negativa e considera aziago, deixa-a abatida e aterrorizada[“Sexta-feira! (aterrada). Ai que é sexta-feira!”]. Após as palavras de Manuel de Sousa, parece entrar num estado de resignação [“(caindo em si) – Tens razão.”; “(fazendo por se resignar)”].
 
As razões apresentadas por D. Madalena para a filha (e, no fundo, também o marido) não ir a Lisboa são todas de cariz sentimental e exageradas. De facto, não apresenta qualquer argumento racional ou sólido; apenas se lamenta de ficar só, abandonada por todos, entregue aos seus terrores:

- o terror de ser sexta-feira (“Logo hoje este advérbio de tempo será repetido 24 vezes até ao final do ato, constituindo uma espécie de refrão -voz coral que previne o espectador da data em que irão justificar-se os constantes terrores de D. Madalena);

- o terror de ficar só, sobretudo neste dia;

- a sensação de desamparo;

- a aflição por nunca se ter separado da família (cena 7);

- as inúmeras recomendações e os inúmeros cuidados, sobretudo com Maria, revelam o seu amor maternal;

- as expansões amorosas em relação a Manuel mostram a sua paixão (ficamos mesmo com a impressão de que o amor dela é muito mais profundo, talvez por Manuel se deixar guiar mais pela razão do que pelo sentimento).

 
A preocupação, a inquietação, a apreensão e a ansiedade de D. Madalena crescem quando o marido lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia
 
 
Retrato das restantes personagens
 
Manuel de Sousa sente-se apreensivo com o estado psíquico da esposa, que, embora procure disfarçar, está cada vez mais insegura, receosa e vulnerável.

Por outro lado, perante o crescimento da preocupação e da ansiedade de D. Madalena quando lhe diz que tem de ir a Lisboa nesse dia (“A Lisboa… hoje!”), pois aquele dia é aziago e muito receado por ela, enquanto homem racional, Manuel de Sousa apresenta-lhe argumentos racionais que justificam a viagem (e a da filha por arrasto). Assim, (1) explica-lhe que, por uma questão de gratidão, deverá deslocar-se à capital para acompanhar o regresso do arcebispo a Almada. Além disso, (2) acrescenta que estará de volta a casa ao anoitecer e que, posteriormente, não sairá de junto dela durante o tempo que desejar.

Além disso, mais uma vez fica patente o contraste que caracteriza o casal: Madalena é uma mulher sentimental/emotiva, perseguida pelos agouros e ligada ao passado, do qual não se liberta, com problemas de consciência, enquanto Manuel é um homem decidido e racional, íntegro e sem problemas de consciência que o atormentem.

 
Maria fica entusiasmada com a perspetiva de ir a Lisboa, mas fica desiludida e triste quando lhe dizem que não poderá ir para não deixar a mãe sozinha. A alegria e o entusiasmo regressam quando tudo se compõe de forma a permitir a sua viagem, no entanto, acaba por reconhecer, num aparte, que não consegue deixar de pensar e de se preocupar, daí que a sua cabeça nunca será «fria», isto é, racional. Tal só sucederá quando estiver «oca», ou seja, sem vida.
 
Frei Jorge é aquela figura sempre pronta para pacificar os espíritos atormentados, por isso oferece-se para fazer companhia à cunhada durante a ausência, de modo que Maria possa acompanhar o pai a Lisboa e visitar Sóror Joana.
 
 
Presságios
 
O advérbio de tempo «hoje» é repetido treze vezes nesta cena, constituindo um símbolo da desgraça, um mau augúrio. A sua repetição indicia que algo muito importante vai suceder nesse dia.
 
A referência à “santa freirinha” (Sóror Joana), “que tanto deixou para deixar o mundo e se ir enterrar num claustro.” antecipa o destino de D. Madalena.
 
A sexta-feira é um dia aziago, de mau agoiro.
 

terça-feira, 22 de novembro de 2022

A ação de Hamlet


             Hamlet retrata a indecisão e a incapacidade do protagonista escolher a forma adequada para vingar a morte do pai, pondo em jogo o contraste entre o destino e o livre arbítrio, entre agir de forma decidida ou deixar a natureza seguir o seu curso. Além disso, questiona se a ação do ser humano, no seu tempo de vida, têm algum impacto e fazem diferença. Assim que toma conhecimento que o tio matou o seu pai, o príncipe sente-se obrigado a tomar uma atitude, mas hesita acerca da sua situação e até sobre os seus próprios sentimentos, por isso não é capaz de decidir o que vai fazer. Deste modo, o conflito que faz mover a peça é de caráter interno: Hamlet luta contra a sua própria dúvida e incertezas em busca de algo que lhe dê força suficiente para agir. Os acontecimentos da peça são efeitos colaterais desse conflito interno. Por exemplo, as tentativas de Hamlet de reunir evidências da culpa de Cláudio alertam-no para as suspeitas do sobrinho e, à medida que a luta interna do protagonista se vai intensificando, ele vai agindo de forma impulsiva por frustração. Tudo isto culmina no homicídio de Polónia por engano, que mostra que este conflito nunca será resolvido, pois o protagonista não consegue, em última análise, decidir aquilo em que acreditar ou que ação desenvolver. Esta ausência de resolução torna o final da peça bastante horrível: quase todas as personagens estão mortas, mas nada de essencial foi resolvida.

            Por outro lado, a obra mostra-nos que Hamlet é percorrido por três crises: a sua não está debaixo de ataque, a sua família está a esfarelar-se e ele sente profundamente infeliz. O fantasma do antigo rei da Dinamarca faz a sua aparição nas ameias do castelo, e os soldados que o veem acreditam que constitui um presságio negativo para o reino. Eles discutem os preparativos para resistir à ameaça do príncipe norueguês Fortinbras. A cena seguinte aprofunda a sensação de que a Dinamarca vive uma crise política, enquanto Cláudio prepara uma estratégia diplomática para esbater a ameaça que Fortinbras constitui. Além disso, a família de Hamlet está também em crise: o pai está morto e a mãe casou-se com alguém que o príncipe desaprova. E o próprio Hamlet vive a sua própria crise.

            Estas três crises – no reino, na família de Hamlet e no espírito deste – estabelecem as bases para o incidente que está na génese da peça: a exigência do fantasma de que o filho vingue a morte de seu pai. Hamlet aceita imediatamente que é seu dever vingar a morte do pai, vingança essa que poderia ajudar a resolver as três crises da peça. Se matasse Cláudio, Hamlet poderia, com este gesto, remover um rei fraco e imoral, arrancara sua mãe do que ele acredita ser um mau casamento e tornar-se rei da Dinamarca. No entanto, desde cedo fica claro que a vingança de Hamlet será prejudicada pela sua luta interna.

            Durante o segundo ato, Hamlet retarda a sua vingança fingindo estar louco. De facto, Ofélia mostra que o protagonista se comporta como se estivesse louco de amor por ela. Porém, é só no final deste ato que ficamos a saber a razão da procrastinação de Hamlet: ele não consegue decifrar quais são os seus verdadeiros sentimentos sobre o dever de vingança. Inicialmente, afirma que não se sente tão zangado e vingativo quanto pensa que deveria. Depois, mostra-se preocupado que o fantasma não seja realmente um fantasma, mas um demónio que o tenta enganar. Por tudo isto, decide que necessita de mais evidências do crime e da culpabilidade de Cláudio.

            À medida que a ação se aproxima do clímax, o conflito interior de Hamlet aprofunda-se, até começar a mostrar sinais de estar realmente a enlouquecer. Ao mesmo tempo, Cláudio começa a suspeitar de Hamlet, o que cria uma expressão sobre si mesmo para agir. Hamlet, no início do ato III, debate-se entre mantar ou não matar Cláudio(“Ser ou não ser, eis a questão”). Momentos depois, dispara insultos misóginos contra Ofélia. Ele mostra-se aborrecido com o papel das mulheres no casamento e no parto, o que remete para o desgosto que sentiu com a sua mãe e o seu segundo casamento. Este pronunciamento misógino pode significar que o desejo de Hamlet matar Cláudio pode ser alimentado pelo seu ressentimento pela necessidade de vingar a morte do pai e pelo tio lhe ter tirado a mãe. Cláudio ouve o discurso de Hamlet e suspeita que a loucura do sobrinho constitui um perigo, por isso decide mandá-lo para Inglaterra. Assim, o jovem príncipe fica sem tempo e espaço para executar a vingança.

            O clímax da peça é atingido quando Hamlet encena uma peça para mexer com a consciência do tio e obter evidências claras da culpa de Cláudio. Nesta fase, contudo, Hamlet parece ter realmente enlouquecido. Finda a representação, o príncipe tem mais uma oportunidade de liquidar o tio, mas decide não agir, desta vez por causa do risco de Cláudio ir para o céu se morrer enquanto reza. Posteriormente, acusa gertrudes de estar envolvida na morte de seu pai, mas age de forma tão errática que a mãe pensa que o filho é simplesmente louco. Agindo impulsiva ou loucamente, Hamlet confunde Polónio com Cláudio e mata-o.

            O desenlace da peça centra-se nas consequências da morte de Polónio. Hamlet é enviado para Inglaterra, Ofélia enlouquece e Laertes regressa de França para vingar a morte de seu pai. Quando o protagonista volta a Elsinore, aparenta já não estar preocupado com a vingança, que praticamente não volta a referir após esta fase da peça. Porém, o seu conflito interior ainda não terminou. Agora Hamlet contempla a morte, mas é incapaz de chegar a qualquer conclusão sobre o significado ou propósito da morte. Mostra-se, todavia, menos melindrado em matar pessoas inocentes e descreve a Horácio como assinou as sentenças de morte de Rosencrantz e Guildenstern para salvar a sua própria vida. Por seu turno, Cláudio e Laertes planeiam matar Hamlet, mas o plano não resulta e as consequências são terríveis: Gertrudes é envenenada por engano, Laertes e Hamlet são ambos envenenados pela lâmina da espada e, quando morre, o príncipe finalmente mata Cláudio. A vingança não encerra o conflito interior de Hamlet, pois ainda tem muito a dizer, pedindo a Horácio que divulgue a sua história. Fortinbras, no final da peça, concorda com o pedido, o que significa que a vida do jovem terminou, mas a luta para determinar a verdade sobre si e sobre a sua vida não.

"Havia" ou "haviam"; "houve" ou "houveram"?



O verbo «haver», enquanto verbo principal, é sinónimo do verbo «existir». Por isso, pode ser substituído pela forma verbal correspondente:

- O Eusébio disse que havia muitos computadores estragados.

- O Eusébio disse que existiam muitos computadores estragados.

 
Quando o verbo «haver» é o verbo principal da frase, é defetivo impessoal (isto é, não tem sujeito) e apenas se conjuga na terceira pessoa do singular (em qualquer tempo ou modo), independentemente de o complemento direto estar no singular ou no plural.

- No estádio, havia muitos espectadores com a careca ao sol.

- No estádio, havia muita gente com a careca ao sol.

- O professor afirmou que há muitos alunos que não estudam.

- Se houvesse mais competência no governo, não estaríamos a atravessar uma crise tão aguda.

 
A mesma regra aplica-se também quando o verbo «haver», enquanto verbo principal, está acompanhado por verbos auxiliares.
 
Estes verbos auxiliares flexionam-se também apenas na 3.ª pessoa do singular, mantendo-se o verbo principal («haver») no particípio ou no infinitivo.

- Na minha escola, tem havido muitas atividades.

- Algum dia deixará de haver fome e guerra entre os homens.

 
Quando o verbo «haver» é usado como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas, concordando com o sujeito:

- Quando o filme começou, os alunos já haviam acalmado. [Note-se que os verbos auxiliares dos tempos compostos são «haver» e «ter», pelo que a frase podia também ser Quando o filme começou, os alunos já tinham acalmado.].

- Quando a campainha tocou, o professor já tinha terminado a aula.

- Os vícios humanos hão de levar à sua extinção.

 
O verbo «haver», quando é auxiliar, acompanha o verbo principal no particípio passado ou no infinitivo.

- As minhas ex-namoradas ainda hão de descobrir que namorei com todas ao mesmo tempo.

 
 
Conclusão
 
É a subclasse do verbo «haver» que determina se se conjuga apenas na 3.ª pessoa do singular ou em todas as pessoas.
 
Assim, quando ocorre como verbo auxiliar, conjuga-se em todas as pessoas.
 
Porém, quando ocorre como verbo principal, como sinónimo de «existir», apenas se usa na 3.ª pessoa do singular.
 
            Resumindo, vamos deixar de ouvir dizer ou ler «Houveram muitos acidentes no verão passado.» e bacoradas semelhantes?

Análise da Cena 4 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Frei Jorge abre a cena saudando efusivamente Maria: “Ora alvíssaras, minha dona sobrinha!” Esta expressão era usada quando alguém pretendia obter uma recompensa (“alvíssaras”) por trazer boas notícias. Neste caso, Frei Jorge usa-a metaforicamente, para anunciar à sobrinha que lhe traz uma boa notícia: os governadores perdoaram a seu pai o facto de ter incendiado o palácio.
 
Frei Jorge, de facto, traz a notícia do perdão dos governadores a Manuel de Sousa, pelo que este não terá mais de continuar escondido, dado que não corre o risco de retaliação. Poderá, assim, retomar a sua vida normal e movimentar-se livremente.
 
Frei Jorge aconselha o irmão a que o acompanhe a Lisboa, porque deseja que Manuel faça parte da comitiva que trará o arcebispo para Almada, como forma de lhe agradecer a intervenção no caso, persuadindo os demais governadores a perdoarem-lhe a afronta. Note-se como repetem a expressão «os outros», referindo-se aos que governam em nome do rei castelhano, mostrando que não os querem nomear. No fundo, é uma forma de mostrar desprezo por eles.
 
Manuel de Sousa concorda e anuncia que também tem necessidade de se deslocar a Lisboa para falar com a abadessa do convento das freiras no Sacramento. Maria decide acompanhá-lo para visitar a tia Joana de Castro, por quem nutre grande admiração. Tudo se prepara, pois, para que Madalena fique só, desprotegida e vulnerável, angustiada pelos seus terrores, para enfrentar a chegada do Romeiro. A atmosfera trágica adensa-se.
 
A referência à tia Joana de Castro constitui um presságio de desgraça (vide cena 8, Ato II), dado que, juntamente com o seu marido (D. Luís de Portugal, Conde de Vimioso), optou pela vida religiosa. De facto, este casara com D. Joana de Castro e Mendonça, depois de ter sido resgatado do cativeiro de África. O casal teve filhos. Subitamente, porém, foram tocados pelo tédio do mundo e da vida, e entrou cada um no seu convento.
 
Outra informação trazida por Frei Jorge diz respeito ao fim do surto de peste em Lisboa. Na realidade, ela começara em finais de agosto de 1599. Porém, só terminou de forma definitiva em fevereiro de 1602. Sabe-se hoje que Manuel de Sousa ajudou a debelar o mal, como guarda-mor da saúde, e por isso foi recompensado pelo rei castelhano, a quem servia com lealdade.
 

domingo, 20 de novembro de 2022

Caracterização de Domingos


             À semelhança do que sucede com o Delfim, Domingos surge rodeado de vários epítetos: Domingos, criado, ironicamente escudeiro, mestiço, etc., sempre em função das características profissionais ou físicas.
            Esta personagem surge muito próxima do patrão, no entanto consuma o adultério com a esposa daquele, de quem também parece estar dependente. É verdade que procurou o Padre Novo dois dias antes da consumação do ato para fugir dali. Tratar-se-ia de uma tentativa desesperada para evitar qualquer desgraça?
            Domingos tem várias razões para odiar o patrão: tem de tratar dos cães, por quem não parece ter grande afeto; por outro lado, a sua própria deformação física constitui razão suficiente para tornar amargo um homem «mestiço», que não se pode identificar por completo quer com a etnia branca quer com a negra. Apesar de tudo isso, não detesta Tomás Manuel, antes mantém com ele uma relação quase filial e de fidelidade, baseada no medo, demonstrando, assim, não possuir qualquer consciência de classe.
            Domingos é “maneta e mestiço… a assopear palavrões, cortado pelo sol e a balançar o braço decepado (…) diante das feras (…) tornou-se frio (…) falou-lhes em tom comedido (…) com força e tão curto (…) movimentos precisos e eficazes da mão. Mão arguta (…) mão controlada.”, é uma figura que domina as situações, ou pelo menos há frieza, domínio, argúcia e controlo que chegam para dominar completamente as feras. É possível que Domingos tenha atingido o seu limite e não esteja mais disposto a ser humilhado. Também se poderá levantar a hipótese de a personagem ter sido usada como um objeto por ambos os membros do casal.
            Por último, tendo em conta a época em que a obra foi escrita – ditadura salazarista e período colonial –, Domingos representa o africano que foi escravizado e usado durante séculos, até ao dia em que ganhou consciência da sua condição e do seu direito à autonomia.

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