● Assunto: o incêndio do palácio.
● Consequências
do ato de Manuel de Sousa
-» partida da família para o palácio de D. João;
-» aumento do terror e da angústia de D. Madalena;
-» criação das condições para o desenlace trágico.
De facto, o incêndio do palácio de Manuel de Sousa:
a) é um acontecimento imprevisto: só na última
cena se consuma, pois Manuel de Sousa não revelara a ninguém os seus intentos;
b) é um acontecimento significativo e dinâmico:
implica o antagonismo entre o patriotismo de Manuel de Sousa e a “tirania” dos
governadores, em nome de um rei estrangeiro; entre o pundonor do cidadão,
senhor e dono de sua casa, e a “afronta” de estes hóspedes indesejados imporem
a sua presença, sem ao menos uma consulta, ou uma atenção com o proprietário;
c) altera gravemente a situação das personagens:
D. Madalena, esposa ilegítima, adúltera e bígama, volta novamente para o
palácio onde tinha sido (não o era ainda?) esposa legítima de D. João de
Portugal (como, aliás, ela temia – cena 8); por seu lado, Manuel de Sousa vai
para o palácio de D. João como um intruso e usurpador de um lugar que não podia
ocupar legitimamente;
d) precipita o desfecho pelo retorno de D.
Madalena ao passado, à casa fatal, onde irão suceder os acontecimentos trágicos
mais importantes e significativos, ou seja, as desgraças profetizadas por
Telmo, vividas na consciência atormentada de D. Madalena, indiciadas pela perda
do retrato de Manuel de Sousa, anúncio fatal da “perda” da personagem retratada,
e ainda o incêndio do palácio, destruidor da “casa”, no duplo sentido de edifício
e de família.
● Simbologia
do incêndio
▪ O incêndio e a
destruição do retrato representam a antecipação da morte de Manuel de Sousa.
▪ Por outro lado, o
mesmo fogo que consome o quadro vai permitir igualmente a purificação da
personagem. De facto, após a morte de Manuel de Sousa para a vida mundana,
dá-se a sua ressurreição espiritual como Frei Luís de Sousa, um dos grandes prosadores
portugueses do século XVII.
● Caracterização
das personagens
▪ Manuel
de Sousa Coutinho:
- guiado pela
razão, toma as suas decisões à luz de um conjunto de valores universais: a
liberdade, a moral, a honra, o patriotismo (ex.: a resposta dada às tentativas
dos governadores, incendiando o seu palácio);
- generoso e nobre
de alma;
- bons instintos
morais, servidos por uma fé cristão vivida;
- sentido de
serviço para com a comunidade a que pertence, no exemplo de resistência ao rei
estrangeiro;
- irónico (“Ilumino
a minha casa…”; “Suas Excelências podem vir, quando quiserem.”): exprime o
desrespeito que sente pelos governadores [a ironia e a metáfora presentes na
primeira expressão contêm um duplo sentido: remetem para a luminosidade que
receberá os governadores, proveniente do incêndio do palácio; por outro lado, a
expressão traduz o patriotismo de Manuel de Sousa, que receberá os governadores
com fogo e destruição. Segundo o manual Entre nós e as palavras, «D.
Manuel afirma que aceita a vinda dos governadores; mas o ato de destruir
demonstra a sua oposição. A ironia verbaliza a revolta da personagem e contrasta
o que os governadores esperavam que D. Manuel fizesse (submeter-se) e o que ele
faz (insurge-se).”];
- sereno na decisão
que toma: note-se, por exemplo, no eufemismo repleto de ironia que usa para se
referir ao incêndio que está a atear à sua própria casa (“Ilumino a minha casa…”);
- Manuel de Sousa é
um herói romântico, porque se deixa levar pelas suas paixões de forma violenta,
impulsiva e até precipitada na defesa dos conceitos de honra e patriotismo.
▪ D.
Madalena:
- aterrorizada com o ato do marido;
- dominada pelo
Destino e pelo fatalismo e impotente contra ambos: a tentativa de salvar o
retrato do marido, parecendo prever o que daí adviria;
- ao ver o palácio
a arder, a sua única preocupação consiste em salvar o retrato, parecendo
adivinhar na sua destruição algo muito grave. De facto, para ela a destruição
do retrato pelo fogo prenuncia a destruição do marido e da própria família;
- o cerco vai-se
fechando à sua volta e os seus contínuos medos e terrores começam a ser justificados:
D. João de Portugal não regressou, mas D. Madalena vai ao encontro do passado.
NOTAS:
|
1.ª) Estas derradeiras cenas do primeiro ato são
bastante rápidas. Aliás, desde a chegada de Manuel de Sousa, o ritmo, até então
algo lento, torna-se rápido e, depois, muito rápido, o que está em sintonia com
o final espetacular do ato e com a peripécia: a intriga adensa-se e afunila.
Esta aceleração do ritmo da ação é traduzida pela pontuação usada: frases muito
pontuadas, pausadas por vírgulas, pontos e vírgulas e reticências, mostrando o
precipitar das ações; os pontos de exclamação marcam o sentimentalismo das
cenas.
2.ª) Manuel de Sousa afirma conceitos e características
do Barroco: nada perdura, tudo muda, a vida é perpétua mudança, tudo é
aparência e sonho.
● Discurso
das personagens
Nesta cena, há um contraste evidente entre o
discurso de D. Madalena e do de Manuel de Sousa.
Assim, ela mostra-se emocionalmente descontrolada,
aterrorizada, e esse estado de espírito é visível no recurso a frases curtas,
interrogativas e exclamativas, nas invocações a Deus e no uso da interjeição
«ai».
Por sua vez, o marido mostra-se tranquilo, pois está
convicto da decisão que tomou. Quando se refere aos governadores, é irónico e
sarcástico.
● Elementos
trágicos das cenas
▪ Hybris de Manuel de Sousa
A hybris de Manuel de Sousa manifesta-se de
duas maneiras:
1.ª) Anteriormente ao início da ação: o amor-paixão
por D. Madalena é, para ele, legítimo, porque a julga «viúva». Todos os
indícios, todos os testemunhos apontavam para a certeza da morte de D. João, ao
fim dos 7 anos já passados desde o desastre de Alcácer Quibir. Na sua boa fé,
julga não haver qualquer impedimento para o matrimónio. No entanto,
inconscientemente:
a) colabora na mentira;
b) profana o sacramento do matrimónio;
c) comete adultério;
d) passa a viver em bigamia;
e) usurpa o lugar que a outro pertence, de direito.
2.ª) Dentro da ação: rebeldia para com as autoridades
de Lisboa:
. Miguel de Moura, «um vilão ruim»;
. o conde de Sabugal e o conde de Santa Cruz «que
deviam olhar por quem são, e que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir
os seus naturais em nome dum rei estrangeiro!»;
. o arcebispo é «o que os outros querem que ele
seja», isto é, uma personagem sem vontade e sem caráter, muito acomodatícia,
facilmente manobrável.
É, portanto, pelos mais nobres ideais que Manuel de
Sousa recusa a hospitalidade aos governadores:
-» patriotismo que não tolera essa «afronta»;
-» resistência ao
rei estrangeiro nas pessoas dos seus representantes;
-» lição aos
fidalgos degenerados, e a «este escravo povo que os sofre, como não tiveram
tiranos há muito tempo nesta terra» (I, 7).
Revela, assim, um sentido heroico da honra,
na ética feudal, paralelo à virtude romana (virtus) e à excelência grega
(aretê).
Por isso:
. recusa receber, no seu palácio de Almada, os
governantes de Lisboa;
. incendeia o palácio;
. desafia as autoridades e o próprio Destino (I, 11);
. entra em conflito aberto e voluntário com as
autoridades (I, 8);
. aceita o risco calculado, até às últimas
consequências: renúncia e perda de bens, generosa entrega da própria vida (I,
11);
. recusa o perdão dos governadores, «se ele quisesse
dizer que o fogo tinha pegado por acaso» (II, 1);
. sofre presumível perseguição, mas prefere estar
escondido, naquele «homizio», como diz Maria, naquela «quinta tão triste d’além
do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com
que perigo» (II, 1).
Manuel de Sousa faz ainda sucessivos desafios ao Destino. De facto, quando afirma «Meu pai morreu desastrosamente
caindo sobre a própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por
minhas mãos? Seja.» (I, 11):
. evoca uma fatalidade que parece existir sobre a sua
estirpe;
. se o pai morreu desastrosamente (à letra, desastre
é a maléfica influência de poderes ocultos e cruéis, manifestados através dos
astros, sobre os destinos humanos), também lhe poderá acontecer algo de
terrível, ao incendiar o próprio palácio por suas mãos. As figuras paralelas do
pai e do filho como que se sobrepõem, unidas em comum desgraça. Com efeito,
Lopo de Sousa Coutinho é atravessado pela própria espada: quem com ferros mata…
Manuel de Sousa, o filho, tem a intuição profética de que as «chamas ateadas
por suas mãos» o poderão destruir, e com ele todos aqueles que o amam e a quem
ama, D. Madalena e Maria: quem brinca com o fogo…
De
resto, não serão essas «chamas ateadas por suas mãos», simbolicamente, as
chamas do amor adúltero (descontada embora a sua boa fé) a uma mulher casada
com outro, que o irão queimar e destruir? Cupido, além de fatal, também é, por
vezes, cruel.
▪ Presságios
/ indícios:
1.º) O incêndio, que destrói o palácio onde as
personagens viviam numa certa acalmia e precipita o desenlace fatal:
* pode ser o
prenúncio de morte para o mundo de Manuel;
* pode significar
que o homem é vítima do seu fogo, da sua paixão, que o conduz inevitavelmente à
destruição;
* pode ainda
significar que é a ação do Homem que cria o destino, determina o seu futuro;
* pode, igualmente,
apontar para um possível renascer das cinzas de Manuel de Sousa (com a tomada do
hábito).
2.º) A destruição do retrato de Manuel de Sousa,
queimado também pelo fogo, e a tentativa infrutífera de D. Madalena o salvar
simbolizam a destruição que também cairá sobre a família brevemente e a impotência
das personagens para travarem o Destino, bem como a morte psicológica da
personagem retratada.
▪ Peripécia:
-» o incêndio do palácio;
-» a mudança para o
palácio de D. João de Portugal.
▪ O páthos de D. Madalena vai-se intensificando progressivamente (clímax), até ao incêndio do palácio (acmê, o ponto culminante) e perda do retrato.
▪ O caráter trágico desta cena e de todo o final do ato é ainda
evidenciado:
a) pelo apelo insistente à fuga;
b) pelas informações das didascálias:
- o deflagrar das chamas;
- os gritos;
- o rebate dos sinos;
- o cair do pano
(pode simbolizar a queda que conduzirá à desagregação da família).
● Marcas
do drama romântico:
. o fundo histórico: a presença dos governadores, o
incêndio do palácio por Manuel de Sousa;
. os valores representados por Manuel de Sousa: a
honra, o patriotismo representativo da identidade nacional, a oposição à
tirania, etc.;
. o culto dos sentimentos fortes: os gritos e os
movimentos agitados e precipitados.