Português: 28/03/21

domingo, 28 de março de 2021

"Autobiografia sumária de Adília Lopes", de Adília Lopes

 
Os meus gatos
gostam de brincar
com as minhas baratas
 

            Apesar de o título do poema apontar para uma autobiografia, será que estaremos mesmo perante um texto autobiográfico?

            É certo que o elemento «auto-» está presente no título e que a composição inclui os determinantes possessivos «meus» e «minhas». Além disso, o título inclui ainda o adjetivo «sumária», que aponta para uma brevidade formal, como que reconhecendo que “a prática da autobiografia se consubstancia geralmente na escrita de textos extensos ou de livros, sendo que o título do poema […] é incluído no título do livro em que é publicado: A Pão e Água de Colónia (Seguido de Uma Autobiografia Sumária”. Esta ressalva presente no título do poema parece uma forma de validação da escrita da autobiografia em modo poético: atenção, o que se segue é uma autobiografia, mas é diferente das convencionais, porque é muito curta, como se a autora admitisse a possibilidade de escrever um texto mais longo, mas optasse por um texto breve. Neste sentido, este poema pode ser lido como arte poética, por questionar a singularidade da poesia a propósito da autobiografia.

            Uma leitura metafórica do poema permitiria entender «gatos», em sentido figurado, como criador hábil e astuto e «baratas» como traduzindo um real quotidiano e menor, mas vivo, concreto e resistente, sendo a brincadeira («brincar») o jogo bastante perigoso do fazer poético.

            Porém, o poema pode ser lido também de forma literal. Neste caso, Adília Lopes coloca-nos perante um facto do quotidiano doméstico e menor: a poeta possui gatos e baratas e aqueles gostam de brincar com estas.

            O uso do determinante possessivo tanto para os gatos como para as baratas permite concluir que o sujeito poético não estabelece nenhuma hierarquia entre ambos. Mesmo tendo em conta que os gatos são animais domésticos e participam da convivência diária dos homens, as baratas, ainda que detentoras de uma imagem depreciativa, também assumem um papel importante, pois pertencem igualmente ao sujeito poético. Assim sendo, este não tem uma predileção nem por uns (gatos) nem por outros (baratas).

            Numa crónica publicada na revista “Visão”, Ricardo Araújo Pereira refere um episódio vivido com Adília Lopes, ocorrido durante uma entrevista que fez à poeta. Nela, RAP apresentou uma interpretação metafórica do poema, com a qual se identificava pessoalmente: “[o]s meus gatos, isto é, aquilo que em mim é felino, arguto, crítico […], aquilo que em mim é perspicaz – e até cruel – gosta de brincar com as minhas baratas, ou seja, com aquilo que em mim é repugnante, negro, rasteiro, vil”. Depois de ter explanado esta sua interpretação perante a própria Adília Lopes, esta respondeu-lhe “o seguinte: ‘Pois. Bom, comigo, o que se passa é que tenho gatos. E tenho também baratas, na cozinha. E os gatos gostam de ir lá brincar com elas.’. E depois exemplificou, com as mãos, o gesto que os gatos faziam com as patinhas.”

            A partir da leitura desta crónica, Ana Bela Almeida, num seu estudo, intitulado Adília Lopes, considera que “[a] resposta de Adília Lopes […] parece menos propícia à interpretação simbólica dos animais dos versos do que à aceitação da inevitabilidade do sofrimento, repetido diariamente”, realçando que “[a] brincadeira entre gatos e baratas só pode ser um jogo de vida ou de morte” – uma luta “corpo a corpo”.

            Assim sendo, esta composição poética é uma espécie de execução da arte poética proposta e seguida pelo poeta no próprio poema. A poesia é um jogo, um desafio de “apanhar um peixe / com as mãos”, que pode conciliar contrários e ser, também por isso, muito perigoso: um título longo e um poema curto; um título sério, que nomeia um género literário, e um poema que desafia o seu sentido, fugindo às convenções estabelecidas sobre o assunto e introduzindo até elementos possivelmente repugnantes; um efeito risível (desconcertante e inesperado) e um efeito trágico (pela violência e pela solidão humana que pode sugerir).

            Além disso, os gatos ligam-se afetivamente à experiência literária da autora, dado que Adília Lopes afirma que foi após o desaparecimento da sua gata Faruk que recomeçou a escrever na juventude, sem nunca mais ter parado, e que os gatos estão associados à primeira memória de prazer da leitura, como se lê em Memória: “O primeiro livro de que me lembro de ter gostado muito foi um livro para crianças com ilustrações a cores. Eram uns gatos que entravam numa casa.”

            O poema, pela relação que estabelece entre o título e o terceto, abre-se a múltiplos sentidos relativamente à questão da autobiografia: a história de vida não cabe no poema, por isso não vale a pena tentar uma narrativa cronológica; uma autobiografia é uma história de circunstância do «eu», do seu contexto, e não uma história da vida interior de uma individualidade; a autobiografia é uma sucessão de «incidentes» (“microbiografias”) que se seguem no tempo, aproveitando as palavras da autora; a veracidade factual dos elementos de uma autobiografia não pode nunca ser totalmente garantida.

            O uso do presente do indicativo na apresentação do «episódio» sugere que se trata de algo que se repete, ou seja, a cena ocorre frequentemente. Por outro lado, também nisto o poema desobedece à autobiografia, que se caracteriza pelo recurso ao pretérito perfeito, dado que compreende o relato de acontecimentos passados.

 

Análise de "Se fores boa menina", de Adília Lopes

 
Se fores boa menina
dou-te um periquito azul
eu fui boa menina
e sem querer abri a gaiola
se tivesses sido boa menina
o periquito azul não tinha fugido
mas eu fui boa menina.
 

            A composição poética constrói-se, em parte, a partir da anáfora dos versos 1 a 5 (“Se” / “se”) e da repetição da expressão “boa menina”, que traduzem o contraste entre o ponto de vista do mundo adulto e o do mundo infantil e a incompatibilidade que existe entre ambos.

            Por outro lado, o poema configura uma espécie de diálogo entre o sujeito poético – um adulto – e uma criança, sendo que os versos 1, 2, 5 e 6 contêm as “falas” do primeiro e os 3, 4 e 7, as do segundo.

            A figura adulta oferece uma recompensa a uma criança (e dar em seguida), se ela se comportar bem (“Se fores boa menina”) e agir de acordo com o padrão estabelecido pelas pessoas adultas. De seguida, o sujeito poético dá conta de que a menina recebeu o seu presente: um periquito azul. No entanto, ela deixa-o escapar, pois esqueceu-se da porta da gaiola.

            A partir deste «episódio», mostra o contraste existente entre os pontos de vista adulto e infantil, evidenciando as lógicas diferenciadas que caracterizam os dois mundos. Se, à primeira vista, o adulto exerce o seu papel de educador, já que parece estar preocupado com a formação e educação da menina, alertando-a para as atitudes que adotar e evitar para se tornar uma “boa menina”.

            Por outro lado, podemos ler a fala inicial do adulto como uma forma de chantagem: ele só dará o presente se a menina obedecer às suas ordens/seguir os seus conselhos e se comportar de determinado modo, ideia sugerida pelo uso do conectivo condicional «se» e pela variação de tempos verbais, nomeadamente no modo conjuntivo, no futuro (“se fores”) e pretérito imperfeito (“se tivesse”). O modo conjuntivo sugere a dúvida que o sujeito poético tinha relativamente à conduta da menina, isto porque, antes mesmo de ter dado o pássaro, o adulto já desconfiava dela, visto que, segundo ele, se a menina tivesse sido boa menina, a ave não teria fugido. Assim sendo, a recompensa dada pode ser interpretada como uma espécie de manobra por parte do adulto, já que as suas suposições relativamente à criança se confirmaram: ela não fora mesmo “boa menina”.

            Por oposição, a fala da criança traduz a sua certeza, visto que está convicta de que foi boa menina, ideia traduzida pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito do modo indicativo (“eu fui”). A mudança do modo conjuntivo, presente nas falas do adulto, para o indicativo, característico das da criança, traduz o contraste de pontos de vista e o seu inconformismo. De facto, para ela, o facto de ter deixado, por descuido, a porta da gaiola aberta, não justifica o julgamento do adulto, isto é, não compreende a razão por que não pode ser considerada uma “boa menina”. O ato de abrir, sem querer, a porta da gaiola, não pode servir como único determinante da sua conduta.

            Há, aqui, uma espécie de conflito quanto ao comportamento ético: o esperado pelo adulto e a conduta efetiva dela. As regras impostas pelos adultos devem ser seguidas e cumpridas, o que faz com que o presente que a criança tinha recebido deveria ter sido preservada com todo o cuidado, o que faz com que o pássaro que se encontrava preso numa gaiola é, de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos adultos – e, no fundo, da sociedade em geral, que dita as regras –, um indício de mau comportamento, já que as normas do bom comportamento não foram observadas.

            Todo o poema é percorrido pela ironia, presente, desde logo, na expressão “boa menina”. Para o adulto, a sua conduta configura o oposto: ela é uma “má menina”. Porém, ele não usa o antónimo “má”, o que pode configurar uma forma de maldade por parte daquele, dado que a ideia que a criança tem de “boa menina” se distancia da que está presente na mente do seu interlocutor. Por outro lado, a repetição faz ressaltar as noções de bondade e maldade. Em última análise, o poema questiona quem pode ser realmente mau: o adulto, por causa da forma como recriminou a menina, ou esta por não ter cumprido adequadamente o seu dever?

 

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