Português: 03/07/23

segunda-feira, 3 de julho de 2023

Análise do poema "A Terra do Nunca", de Nuno Júdice


Análise do poema "Adormecida", de Castro Alves


                 “Adormecida” é um poema de 1868 de Castro Alves, publicado na obra “Espumas Flutuantes”, datada de 1870. Trata-se de uma composição constituída por sete quadras em versos decassílabos e com rima cruzada nos versos 2 e 4 de cada estrofe, sendo o primeiro e o terceiro brancos ou soltos.

                Este é considerado um dos poemas mais bem conseguidos da poesia romântica de Castro Alves, que descreve a mulher amada pelo sujeito poético adormecida, como é indiciado pelo título do texto. De facto, estamos na presença de uma descrição romântica da cena de uma mulher a dormir. Por outro lado, o título recorda-nos o conto tradicional “A bela adormecida”: quando completasse quinze anos, espetaria o dedo no fuso de uma roca e dormiria durante cem anos, até um príncipe a desencantar com um beijo. O despertar, em ambos os textos, constitui uma metáfora da passagem da adolescência para a idade adulta, para  amaturidade.

                O poema parte de uma epígrafe retirada de Musset, um poeta romântico francês, que se refere aos cabelos, à sensualidade e à cruz, símbolo da religião. Aqui, junta dois elementos: a sensualidade e a religiosidade, que será o assunto do texto. A epígrafe não é sinal de imitação, mas estabelece a ponte para o sonho e para a evasão, associando-se ao título por remeter também para a circunstância de uma jovem adormecida: “Ses longs cheveux épars la couvrent tout entière / La croix de son collier repose dans sa main, / Comme pour témoigner qu’elle a fait sa prière. / Et qu’elle va la faire em s’eveiliant demain.”

                A descrição é feita a partir da memória, pois trata-se de uma recordação do sujeito lírico: “Uma noite eu me lembro…”. Ele recorda a imagem da mulher a dormir numa rede, uma cena prenhe de serenidade, doçura e sensualidade: ela está encostada “molemente”, de roupão “quase aberto”, cabelos soltos e pé descalço. De facto, na primeira quadra, é construída a imagem da mulher amada, associando-a à sensualidade e à languidez suave, ideias sugeridas, por exemplo, pelo advérbio de modo «molemente», pelos adjetivos (“aberto”, “solto”, “descalço”). Por sua vez, as reticências abrem as portas ao onírico e deixam algo em suspense, à imaginação, enquanto elementos como a noite, a rede, o roupão, o cabelo ou o tapete contribuem para a construção do ambiente íntimo da figura feminina, sugerindo claramente a intimidade e a proximidade do «eu» e da amada.

                A segunda quadra centra-se na janela aberta, por onde entra um cheiro agreste, proveniente das silvas da campina, e através da qual se pode ver uma noite “plácida e divina” e “um pedaço de horizonte”. O «eu» evoca o cheiro agreste das silvas e, de seguida, o jasmineiro, cujos galhos entravam pela janela e tocavam na mulher, que dormia sensualmente. Ocorre aqui uma divinização ou espiritualização do momento, quando o «eu» refere que a noite era plácida e divina e, na quarta, se alude a um «quadro celeste», que é desenvolvido nas estrofes seguintes. Enquanto isso, a brisa suave invadia o compartimento, fazendo com que o jasmineiro, que estava em flor, balançasse e tocasse a mulher. Esse instante em que a flor a tocava e ela, ao senti-la, a procurava suavemente, causava sensações eróticas no sujeito poético.

                As duas estrofes seguintes apresentam um “quadro celeste”, doce e sensual: o jasmineiro, personificado, é apresentado num movimento cujos galhos, obviamente também personificados (“galhos encurvados / indiscretos entravam pela sala… / Iam na face trémula beijá-la”), quais braços humanos, balançam, ora se aproximando, ora se afastando da mulher adormecida, constituindo cada aproximação da face feminina uma tentativa de a beijar. O jasmineiro, um ser inanimado, é, de facto, personificado, isto é, são-lhe atribuídas características dos seres animados, de modo a poder executar as ações que o «eu» não pode ou não consegue. Assim, a planta passa a desejar a mulher, sendo que esta o manipula por meio da sedução, ou seja, permanecendo dormindo, sedutora, na rede.

                O que se segue é uma espécie de jogo de sedução, em que o jasmineiro e a mulher brincam como “duas cândidas crianças”: quando a flor da planta beija a figura feminina, esta, mesmo que em sonhos, estremece e, quando tenta devolver o beijo, aquela foge com o balanço do jasmineiro. O sujeito poético coloca-se na posição de observador e contempla esta cena. Por outro lado, ao colocar a natureza e a mulher em contacto físico – e logo através de algo tão profundamente íntimo como um beijo – prossegue a construção da cena de sensualidade. O recurso a formas verbais no pretérito imperfeito (“estremecia”, “serenava”, “beijava”) e a insistência nas reticências criam um clima de erotismo comedido através da interação e troca contínua de carícias entre a mulher e a flor. O jasmineiro age como um amante que, sorrateiramente, acaricia a figura feminina, beija a sua face e depois se afasta quando ela tenta devolver o beijo. Atente-se ainda no facto de a flor, para a biologia, ser o órgão reprodutor das plantas, pelo que se pode entender como metáfora do órgão sexual feminino, constituindo o seu desfloramento a perda da virgindade.

                É curioso observar dois movimentos contrários. Num primeiro momento, o jasmineiro, através dos seus galhos, seduz a mulher, beijando-a (o que deleita o sujeito lírico: “quadro celeste”), contudo, posteriormente ocorre uma inversão de papéis quando ela tenta beijar a planta, que, no entanto, foge. Ou seja, ela não só aceita a sedução, como também a retribui, porém é recusada.

                Por que razão é escolhido o jasmineiro e não uma outra planta ou árvore para contracenar com a mulher? O jasmineiro é um arbusto pequeno, ereto ou trepador com caules longos, o que permite encará-lo como metáfora do órgão sexual masculino. Por outro lado, essa planta também possui propriedades afrodisíacas, o que reforça a ideia da sedução presente no texto.

                A quinta estrofe infantiliza a mulher e coloca-a num plano virginal, ao associá-la a uma criança, enquanto a brisa, que agitava as folhas verdes, fazia ondular os seus cabelos negros entrançados. Vocábulos como «doce», «brincavam», «cândidas» e «crianças» conferem à cena ingenuidade, infantilizando a figura feminina e valorizando a virgindade, característica de sociedades antigas e mais conservadoras.

                A sexta retoma o tom erótico que percorre o poema, ao recuperar o jogo de sedução entre a flor e a figura feminina e o contacto físico entre ambas: “E o ramo ora chegava ora afastava-se.” Sempre que a mulher, despeitada pela «recusa» do «eu», parece que se vai zangar, o jasmineiro derrama-lhe uma “chuva de pétalas no seio”. O adjetivo «despeitada», além de idealizar os seios nus, exprime também a noção de ressentimento. Note-se que ela não é alheia ao clima de sensualidade, antes parece participar, pois, durante a espécie de dança entre ambos, estremece a cada carícia que a planta lhe faz e tenta retribuir os beijos que ele lhe dá. A chuva de pétalas no seio reforça todo o ambiente erótico: trata-se de algo íntimo, delicado, que pode ser interpretado como uma chuva de beijos no peito da mulher adormecida ou, de acordo com uma leitura intensamente erotizada do poema, como a metáfora da ejaculação masculina.

                O verso “e o ramo ora chegava, ora afastava-se” pode ser interpretado de forma mais profunda que não a mera imagem da boca do amado que ora se afasta ora se aproxima para beijar a amada: funciona como metáfora do ato sexual, isto é, indicia o movimento de vaivém do órgão sexual masculino (o jasmineiro) no interior do corpo feminino, sugerindo a consumação daquele ato. A antítese “chegava” / “afastava”, as reticências e a reiteração de «ora» remetem para o ato e a sua duração. Contudo, no final, ficamos a saber que a jobem permanece virgem, o que significa que a relação sexual nunca aconteceu. Neste contexto, a chuva de pétalas podem interpretar-se também como a metáfora do sémen e da ejaculação.

                A última estrofe enaltece o caráter virginal da mulher amada e estabelece a relação de identificação entre a mulher e a natureza. Nos dois versos iniciais, o sujeito lírico clarifica o seu estatuto de observador da cena (“Eu, fitando esta cena”) e, nos dois últimos, começa por caracterizar o jasmineiro de “virgem das campinas”, para, no derradeiro, se dirigir à amada, apelidando-a de virgem e a definir como a flor da sua vida. Assim, ao denominar a natureza e a mulher por meio do mesmo vocabulário, promove a identificação entre ambas. Na verdade, podemos concluir que o «eu», ao observar o jogo de sedução entre o jasmineiro e a jovem, o vento que lhe agita os cabelos, os beijos da flor e o subsequente retraimento, na realidade, desejava ser ele mesmo a  acariciá-la, beijá-la e repeli-la. Note-se também que a imagem final que ressalta passa pela negação da sedução negativa e pela exaltação da pureza e virgindade da mulher: ela permanece virgem, apesar de toda a sedução de que é objeto e da ação do jasmineiro / da flor. Atente-se na expressividade do adjetivo «lânguida», que caracteriza a noite, o qual significa “doçura”, “sensualidade”, “voluptuosidade”, mas também “abatimento”, “fraqueza emocional ou física”.

                Ao longo do poema, existe uma oposição entre as ideias de sedução/sensualidade (o roupão aberto, a carícia, os beijos, a chuva de pétalas no seio, o estremecimento da mulher, o cabelo solto, o adormecimento, etc.) e de pureza, sugerida pela adjetivação (“cândidas”, “celeste”, “divina”, “doce”), pela associação a uma criança ou por nomes como “virgem” ou “sonhos”.

                Neste poema, já não temos a natureza em todo o seu esplendor, mas sim uma cena de interior, em que aquela está presente apenas em parte: aquilo que entra pela janela. É uma natureza muito expressiva e essencialmente romântica. No Romantismo, a natureza começa por ser cenário; depois é mais que isso: participa na ação e pode identificar-se com a mulher – “Brincavam duas cândidas crianças” (natureza + mulher).

                Apesar de ser um poema romântico, há elementos específicos do Brasil, como a «rede», elemento específico dos costumes brasileiros, símbolo da sensualidade e que aparece ligada à mulher. Esta é identificada com a natureza, mas também com a criança. A descrição surge de uma atitude de contemplação do «eu» poético: é retórica e principalmente expressiva e tem como características fundamentais a sensualidade. Essa identificação acentua-se nos dois últimos versos do poema, ao ser classificada como «virgem» a flor e a «virgem» como flor.

                Além dos traços românticos anteriormente apurados, há que atentar também ao quadro simultaneamente de volúpia e naturalidade da mulher adormecida, para o qual contribuem o detalhe do espaço físico, o realce dado ao perfume do ambiente, o estado da mulher, a janela aberta e a exaltação da natureza.

Lua enorme


 

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