Português: Cantiga de Escárnio e Maldizer
Mostrar mensagens com a etiqueta Cantiga de Escárnio e Maldizer. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Cantiga de Escárnio e Maldizer. Mostrar todas as mensagens

sábado, 21 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Afons’ Afonses, batiçar queredes", de Afonso Sanches

    Só uma estrofe desta cantiga de Afonso Sanches nos chegou, a qual satiriza um indivíduo chamado Afonso Afonses, a propósito do batismo de um seu criado. Tudo indica, no entanto, que o poema se basearia num equívoco sobre quem é que nunca teria sido batizado – e que seria o próprio Afonso Afonses, pelo que se depreende do verso 6.
    Concretamente no que diz respeito a essa figura, não sabemos exatamente quem é este Afonso Afonses, o qual deseja batizar um criado (“Afons’ Afonses, batiçar queredes / vosso criad’”), porém não tem padre para presidir à cerimónia (“e cura nom havedes / que chamem clérig’”). Nestes versos, encontramos um jogo com a palavra «cura» no duplo sentido de “curar, tratar de” e “ter um padre”. Os últimos versos, nomeadamente o derradeiro, permite questionar quem é que, efetivamente, nunca tinha sido batizado, indiciando que se tratava do próprio Afonso Afonses: “como haverdes, / Afonso Afonses, nunca batiçado?”.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, oí dizer", de Afonso Anes de Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso Anes de Cotom, é constituída por quatro sétimas, num total de 28 versos de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema rimático ABBACCA, e octossílabos. Nela, encontramos outra sátira dirigida a uma abadessa não identificada.
    Assim, o sujeito poético apresenta-se como recém-casado e órfão [“ogano [há pouco tempo] casei” – v. 5; “nem padre nem madre nom hei.” – v. 13) e dirige-se à abadessa, solicitando-lhe que lhe ensine as técnicas do amor / sexo, pois tinha ouvido dizer que ela era muito conhecedora dessa arte: “Abadessa, oí dizer / que érades mui sabedor / de tod’o bem; e, por amor / de Deus, querede-vos doer / de mim, que ogano casei, / que bem vos juro que nom sei / mais que um asno de foder.” Na última, tanta é a experiência e o conhecimento da abadessa na matéria que o trovador alvitra que as mulheres inexperientes poderiam também recorrer às aulas da religiosa: “e per ensinar a molher / coitada, que a vós veer, / senhor, que nom souber ambrar” (vv. 26 a 28). A expressão “de tod’o bem” indicia o vasto conhecimento da abadessa acerca das práticas sexuais.
    A segunda estrofe repete o conteúdo da primeira: o sujeito lírico ouvir falar acerca das habilidades e da experiência da mulher (“Ca me fazem en sabedor / de vós que havedes bom sem / de foder e de tod’o bem”), por isso faz-lhe um pedido intrigante: “ensinade-me mais, senhor, / como foda, ca o nom sei” (vv. 11-12). Estas palavras parecem insinuar que o trovador já teria tido algum tipo de experiência sexual com a abadessa. Além disso, coloca-se numa posição de inferioridade, pois argumenta que não teve pai nem mãe que o ensinassem, daí a sua falta de conhecimento. Note-se o recurso à expressão “fic’i pastor”, conferindo um tom dramático e, simultaneamente, irónico ao verso, ao afirmar que “fica por aí como um garoto inexperiente”.
    Na terceira cobla, o sujeito poético faz uma proposta à mulher: se aprender com ela o “mester [a arte] de foder” (o calão cru é um traço da linguagem da cantiga), toda a vez que fizer sexo, lembrar-se-á da abadessa e rezará um Pai Nosso por ela: “cada que per foder direi / Pater Noster e enmentarei / a alma [e rezarei pela alma] de quem m’ensinou.” Atente-se na presença da oração subordinada adverbial condicional, que introduz a condição fundamental: as lições da abadessa. Dito de outra forma, o «eu» pede-lhe que lhe ensine o que há de fazer à recente esposa, pois é muito experiente nas artes do sexo, por oposição à sua inexperiência na matéria (antítese experiência / inexperiência). De cada vez que o fizer, ele rezará um Pai Nosso pela abadessa e, desse modo, poderá ganhar “o reino de Deus”, como afirma, sarcasticamente, na derradeira cobla: “E per si podedes gaar, / mia senhor, o reino de Deus, / per ensinar os pobres seus” – vv. 22 a 24).
    O tom de escárnio acentua-se quando afirma que não são os jejuns que a farão ganhar o reino dos céus, mas, sim, a boa ação de “ensinar os pobres seus” (v. 24). Observe-se o uso irónico do determinante indefinido «outro» na expressão “outro jajuar”, que se refere indiretamente ao jejum sexual, isto é, ela ganhará o reino dos céus mais por ensinar-lhe a arte do sexo do que pelo jejum (ou abstinência) sexual. O trovador vai mais longe quando sugere que as próprias mulheres inexperientes deveriam procurar a abadessa e beneficiar dos seus ensinamentos, conhecimento e experiência.
    Em suma, o trovador satiriza a abadessa, que deveria obedecer ao voto de celibato, por, pelo contrário, ser experiente na arte do sexo (certamente por o praticar insistentemente), de tal como que seria capaz não só de ensinar, mas de ganhar a recompensa espiritual máxima (o reino de Deus) pela qualidade dos seus ensinamentos. A religiosa, em tese, não deveria ser versada na arte do sexo, todavia, a realidade da época era bem diferente. É verdade que a vida no interior dos mosteiros, conventos e beatérios nem sempre respeitava os princípios cristãos, as regras da Ordem ou os votos formulados quando os religiosos professavam. Quer a literatura, que as fontes históricas veiculam diversos exemplos de monjas que não levaram uma vida indecorosa, que mantiveram relações sexuais com homens, incluindo clérigos, ou chegaram a ser mães. Foi o caso, por exemplo, da abadessa do monastério burgalês de Las Huelgas nos finais do século XIII, cujo filho, Dom Juan Nunez, foi mestre da Ordem de Calatrava.
    Religiosos, fossem homens ou mulheres, faziam sexo, embora não se saibam as proporções que o comportamento sexual assumiu entre os membros do clero. Seja como for, foi em número suficiente para levar à existência de sátiras como a presente, o que não significa que a cantiga visasse uma abadessa específica.
    Relativamente ao sujeito poético, ao longo da cantiga encontramos expressões que caracterizam, ironicamente, a sua inabilidade no ofício do amor / sexo: “ogano casei” (v. 5); “asno de foder” (v. 7); “fiqu’i pastor” (v. 14).
    Por outro lado, a cantiga evidencia a mistura entre o sagrado e o profano. O primeiro é marcado pela referência a orações (“Pater Noster” – v. 20), ao culto (“reino de Deus” -v. 23; “amor de Deus” – vv. 4-5),ao rito (“jajuar” – v. 25), enquanto o segundo é traduzido pelo ato sexual (“foder” – vv. 7, 10, 17 e 19; “ambrar” – v. 28).
    Além disso, a cantiga representa a ação sexual como acesso ao domínio de um conteúdo, de uma prática, de um método, sendo esse conhecimento atingido através de outrem, no caso, de uma abadessa. Logo, mapeiam-se, no domínio-alvo (ação sexual), saberes relativos ao domínio-fonte (conhecimento), de tal modo que são mapeados, especificamente, saberes sobre o que se aprende empiricamente, descartando os conhecimentos, por exemplo, que se adquirem através dos livros, daí que ocorra, igualmente, nesta cantiga, uma metonímia do tipo parte pelo todo, bem como outra todo pela parte (“mui sabedor de tod’o bem”).

Análise da cantiga "Vós, que por Pero Tinhoso preguntades, se queredes", de Pero Viviães

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Pero Viviães, é constituída por três sextilhas (um terceto mais um refrão de três versos), de rima emparelhada (AAARRR) e versos de 15 sílabas métricas (segundo a perspetiva de Rodrigues Lapa; no entanto, a disposição dos cancioneiros é de versos de 7 sílabas métricas).
    De forma genérica, podemos considerar que o sujeito poético se dirige a um TU plural (“Vós”) que deseja saber o paradeiro de Pero Tinhoso. No que diz respeito ao tema, estamos na presença do retrato de um homossexual que é portador de doenças venéreas.
    Assim sendo, podemos desde já ter presente que o alvo d sátira é um indivíduo de nome Pero Tinhoso, sobre o qual não se dispõe de dados que o permitam identificar. Deste modo, “Tinhoso” poderá constituir uma alcunha, embora tenhamos de ter em cinta que o termo aparece duas vezes nos Nobiliários, uma delas em Fernão Pires Tinhoso, tio de Lopo Galo, vassalo dos Briteiros, aparecendo igualmente um Lopo Tinhoso na documentação do mosteiro galego de Toxos Outos, em Santiago de Compostela. Enquanto adjetivo, o vocábulo designa alguém que tem tinha, que é repelente ou nojento, ao passo que, como nome, se refere àquele que sofre de tinha. Assim, se considerarmos que se trata de uma alcunha, é evidente que estamos na presença de um jogo de palavras destinado a satirizar a homossexualidade da pessoa e as doenças venéreas contraídas por essa prática sexual (indiscriminada?). Dito de outra forma, apalavra carrega um tom pejorativo, remetendo para alguém doente, debilitado ou desprezível.
    Passando a uma análise mais pormenorizada da cantiga, o sujeito poético dirige-se, repetimos, a uma terceira pessoa (plural) que o teria questionado querendo saber notícias de Pero Tinhoso. No entanto, o «eu» desconhece «novas», contudo oferece três sinais que mais ninguém conhece, através dos quais se pode (re)conhecê-lo: “traz o toutiço [topo, cabeça] nu”, tem “câncer no pisso” (pénis) e “alvaraz [tumor] no cuu”. Através do recurso ao calão, o sujeito poético ataca a aparência física do alvo da sátira: (uma possível) calvície, cancro do órgão genital e uma úlcera ou ferida no ânus, certamente resultado da prática da homossexualidade. Assim, por meio do calão, da ironia e do sarcasmo, o alvo é satirizado de forma cruel e vulgar.
    Os três primeiros versos de todas as estrofes constituem um «continuum» e são seguidos por um refrão que denuncia as características pelas quais aqueles que procuram por Pero Tinhoso podem encontra-lo: ele possui uma série de doenças venéreas, certamente causadas por práticas homossexuais, do tipo passivo, e que o expõem à vergonha.
    O verso inicial da segunda estrofe liga-se à primeira, confirmando o tal «continuum», através nomeadamente do advérbio de tempo «Já», da forma verbal no pretérito perfeito «preguntastes» e da expressão «noutro dia», que dá a noção de continuidade no discurso: ele já tinha sido questionado nessa altura (vaga e imprecisa, pois não se especifica exatamente a data em que ocorreu) acerca de Pero Tinhoso, porém, nesse momento, não sabia as informações perdidas (“e entom non’as sabia” – v. 8), ao contrário do que sucede agora: “mais por estes três sinaes quem quer o conhosceria”. E repete-se o refrão.
    A última estrofe abre com uma anáfora (com o verso inicial da primeira: “Vós” / “Vós”). O recurso à perifrástica “andades preguntando” indicia que o «vós» tem insistido nas questões sobre Pedro Tinhoso, querendo saber novas dele, insistência essa que sugere que há algo nele peculiar, que desperta interesse, curiosidade. De novo, o sujeito poético elenca três sinais (ou características) que o identificam. No entanto, esses sinais não são imediatamente óbvios, pois exigem ser procurados minuciosamente, como o denuncia o gerúndio «catando». E compreende-se esta ironia, pois as doenças venéreas no pénis e no ânus não são visíveis de imediato; é necessário que a pessoa fique nua e seja olhada com atenção para serem percebidos. Além disso, a forma verbal implica uma observação detalhada, cuidada e paciente, bem como uma busca persistente. Por exemplo, a doença no ânus não é visível a olho nu, necessita até do toque físico para ser desvendada. Por último, o sufixo -ando indica uma ação prolongada, o que confirma que a descoberta dos tais sinais não é imediata, ocorre ao longo de um processo de observação.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Ai Justiça, mal fazedes, que nom", de João Airas de Santiago

    Esta cantiga, da autoria de João Airas de Santiago, é constituída por três sétimas e uma finda de dois versos (dístico), com rima interpolada e emparelhada, segundo o esquema rimático ABBACCA, em versos decassílabos.
    O trovador expressa a sua queixa perante a Justiça, que não quer aplicar a sentença que estabelece o Livro de León a uma dama galega chamada Mor da Cana, eventualmente irmã do trovador Paio da Cana, que lhe queria bem, mas, assim que o teve em seu poder, o matou de amores sem razão: “Ai Justiça, mal fazes, que nom / queredes ora dereito filhar / de Mor da Cana, porque foi matar / Joan’ Airas, ca fez mui sem razom” (vv. 1-4). As leis antigas de Leão estabeleciam que o assassino era enterrado por baixo da sua vítima, daí que o trovador, em nome do “Livro de Leon”, exija que coloquem debaixo de si Dona Mor da Cana, visto que esta o matara de amores. O caráter malicioso da cantiga fica estabelecido a partir daqui: “mais se dereito queredes fazer, [se a Justiça quiser agir corretamente] / ela sô ele devedes a meter [deveis metê-la debaixo dele] / ca o manda o Livro de Leon”.” [pois o manda o Livro de Leon]. De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, este texto será, provavelmente, o Fuero de León, a mais antiga compilação de leis da Península Ibérica, promulgado em 1017 pelo rei de Leão, Afonso V. Todavia, segundo Eugénio López-Aydillo, dado que a referida pena não se encontra nessa compilação, mas apenas no chamado Fuero de Cuenca, poderemos estar perante um lapso do trovador. Acrescente-se, no entanto, que D. Carolina Michäelis de Vasconcelos refere que, do foral da Lourinhã, consta a pena de enterrar o assassino debaixo do cadáver.
    Deste modo, tendo em conta a primeira estrofe, podemos já afirmar que esta cantiga constitui uma paródia ou amor cortês, nomeadamente ao tópico da morte de amor. Por outro lado, estamos perante o recurso à despersonalização, justificada pela alegada morte do trovador, de quem só uma terceira pessoa poderia assim falar, ou seja, a despersonalização consiste no facto de o poeta falar de si próprio através da voz de um terceiro. Além disso, temos de ter em conta que este recurso está no centro de diversas cantigas de amigo, nas quais diversas vezes a voz feminina que se ouve no texto é, de facto, u mero recurso para a expressão de sentimentos pessoais e até dados biográficos do próprio trovador.
    A segunda estrofe reforça a ideia de que a mulher foi matar o sujeito poético precisamente quando ele mais lhe queria: “e quando lh’el queria mui melhor, / foi-o ela logo matar ali” (vv. 10-11). Por isso, roga que seja observada justiça, aplicando à figura feminina a antiga pena de a sepultar, enquanto “assassina”, debaixo dele, “pois tam gram torto fez” – “metede-a já sô el ua vez, / ca o manda o dereito assi”.
    A terceira estrofe reforça, ainda mais, a mensagem das duas anteriores: quando o trovador acreditava que “houvesse de Mor da Cana bem”, foi “assassinado” por ela, exatamente no momento em que se tornou seu vassalo e a começou a servir: “foi-o ela logo matar por en, / tanto que el em seu poder entrou”. É a sátira clara ao amor cortês, aos tópicos da vassalagem amorosa e da morte de amor. Nos versos finais desta cobla, reitera, novamente, o pedido para que seja feita justiça, “sepultando-a” por baixo dele, fazendo-a, assim, padecer: “metam-na sô el, e padecerá / a que oi a mui gram torto matou”.
    A finda que encerra a composição poética prossegue o tom humorístico e malicioso introduzido a partir do verso 6: quem os vir deitados (“E quen’os ambos vir jazer”), abençoará o “juiz” que “julgou” o caso e determinou a sentença: “Beeito seja aquel que o julgou!” (v. 23). Note-se que este derradeiro verso poderá constituir uma referência equívoca a D. Beito, o símbolo do marido enganado, que é visado em três cantigas de João Airas de Santiago.

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Orraca López vi doente um dia", de Afonso Anes do Cotom

    Nesta cantiga, a velhice é concetualizada como doença. O trovador começa por dizer que viu Orraca López doente e, logo de seguida, a própria revela a sua doença: a velhice.
    Ao vê-la doente, o trovador pergunta se ela guareceria (se curaria) e a mulher responde em tom de brincadeira (jograria) que é velha e cuida (pensa) em se cuidar. Como resposta, ele diz que ela pensa grande folia (loucura), pois disso (da velhice) mais vê ele as velhas morrerem.
    Note-se que, na época, os conhecimentos de medicina eram muito limitados. Por exemplo, nos locais afastados das cidades, as doenças eram tratadas por curandeiros e ervas medicinais. Nos meios urbanos, muitos médicos eram judeus, ao passo que, no ambiente rural, persistiam aquelas figuras a quem era atribuída uma competência tradicional e das quais se dizia possuírem duas especiais: velhas, que usavam ervas, e parteiras, que tinham ganho experiência com a prática. Assim, é evidente que a prática da medicina era escassa, sendo algumas doenças encaradas como um castigo divino, o que era agravado pela ocorrência de doenças até então desconhecidas e de pestes que dizimavam a população. Em muitas cidades, os doentes eram colocados em lugares afastados das restantes pessoas para evitar contágios e mais mortes. A lepra é, ao longo dos séculos, um bom exemplo desta prática. Nos Congrés d’Arras, dois trovadores leprosos descrevem o momento em que se despediram dos amigos antes de partirem para a leprosaria.
    Até ao final da Idade Média, a velhice está associada a uma imagem negativa. A mulher velha, só e pobre, situa-se no ponto mais baixo da escala social e é frequentemente equiparada às forças do Mal.
    Esta cantiga assenta no jogo pergunta-resposta, para lhe imprimir vivacidade, assenta na contradição da deixa, da própria figura feminina, “sõo velha e cuid’a guarecer”.
    Note-se que a velhice, no caso dos homens, assume outros contornos, sendo associada à sabedoria e à experiência, à conservação da memória dos ancestrais, obtendo valor social como conselheiros das gerações mais novas. Por seu turno, a mulher velha, se prudente e virtuosa, poderia servir de exemplo às outras, além de ensinar e corrigir as mais jovens. Por outro lado, muitas velhas consideradas anciãs viviam uma vida pecaminosa, isto é, gostavam de tagarelar, escondiam o corpo deformado e amolecido pela idade / velhice com roupas e cosméticos, buscavam com enganos os prazeres da carne a que deveriam ter renunciado há muito. A esta figura da velha arrebicada e pintada, sobrepõe-se a da mulher alcoviteira que se insinua nas casas alheias como mensageira insidiosa, junto das mulheres, das lisonjas dos amantes, e da “vetula” feiticeira que engana por dinheiro, através de adivinhações e sortilégios, mulheres simples que a consultavam.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A vós, Dona abadessa", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Fernando Esquio, mais uma vez em linguagem crua, tem como alvo uma abadessa, a quem o trovador alegadamente lhe envia um conjunto de “objetos de consolação” (“caralhos franceses”), ricamente adornados. A composição poética toma maliciosamente a forma de um bilhete cortês que acompanha a oferta, com o nome do “servidor” logo no segundo verso. Ou seja, o poema aborda o tema da masturbação feminina.
    O trovador dirige-se à abadessa através de uma apóstrofe (“A vós, Dona abadessa”), para lhe declarar que lhe vai enviar um presente (“de mim, Dom Fernand’ Esquio, / estas doas vos envio” – vv. 2-3), porque sabe que o merece: “quatro caralhos franceses” para ela e dois para a prioresa. O que é posto aqui em questão é a condição celibatária, isto é, a falta de atividade sexual, dos religiosos. O trovador acha-se no direito de oferecer um consolo (o que designaríamos hoje por vibrador) à abadessa, para que esta experimente, ainda que indiretamente, o membro viril de um homem. Desta forma, denuncia-se que as religiosas, por não poderem possuir parceiros sexuais, tinham a possibilidade de se satisfazer sexualmente com consolos (“caralhos franceses”).
    Ironicamente, o trovador chama-se amiga, mas é por causa dessa relação de amizade que não olha a despesas (“nom quer’ a custa catar”) para lhe oferecer o mais depressa possível (“ca nom tenho al tam aginha”, quer dizer, não tenho nada rápido) “quatro caralhos de mesa” (aparentemente, os consolos adornavam os tocadores das damas). Dito de outra forma, o presente foi caro, mas o trovador não quer fazer conta dele (v. 9), pois a religiosa (a abadessa) é sua amiga. De seguida, o «eu» poético, no que diz respeito à procedência, assegura que os obteve através de uma burguesa (“que me deu ua burguesa”), e enviar-lhos-á em saquinhos próprios, cada um contendo dois.
    O presente agradará à abadessa (“Mui bem vos semelharam”), pois possuem traços especiais: têm cordões (“ca sequer levam cordões”), são descomunalmente grandes (“quatro caralhos asnaes”) e possuem um manípulo que facilita o seu manuseio (“enmanguados em coraes / com que calhedes a mam.”). Assim sendo, o trovador destaca quatro aspetos dos consolos: a origem, a qualidade, o tamanho e a praticidade.
    Em primeiro lugar, ele deixa bem claro que os caralhos são franceses (origem), o que implica que haveria outros tipos de caralhos no mercado além daqueles. Dito isto, tendo em conta que as práticas sexuais femininas eram fortemente reguladas pela Igreja, como poderiam as mulheres aceder a brinquedos sexuais? Parece evidente que a esmagadora maioria não teria acesso aos mesmos, desde logo porque não seria fácil encontra-los. Seja como for, a cantiga parece fornecer uma solução para a questão, quando refere a figura de uma burguesa (a qual teria fornecido os consolos), o que quererá dizer que eles seriam encontrados num ambiente urbano. Por outro lado, a referência à burguesa e ao seu papel de «fornecedora» dos objetos significará que se trata de um assunto exclusivamente feminino, tratado entre mulheres.
    Em segundo lugar, temos a qualidade do produto. O «eu» poético descreve os “caralhos franceses” e dá conta que são ornados de coral (v. 20), o que aponta para o facto de haver o cuidado de os enfeitar e embelezar, desde logo porque, além da função sexual que cumpriam, eram igualmente um artefacto de mesa (“quatro caralhos de mesa” – v. 12), adornos. Claramente, estamos na presença de uma ironia.
    Em terceiro lugar, é abordada a questão do tamanho, que, de acordo com o verso 19 (“asnaes”), evidencia a qualidade do produto. Por outro lado, esta referência ao tamanho descomunal indicia que havia variedade de tamanhos à escolha. Na cantiga, o trovador, porque é amigo dela, faz questão de enviar à abadessa os melhores / maiores possíveis, para lhe provar o sentimento que nutre pela mulher e porque esta merece.
    Em quarto e último lugar, a praticidade é sugerida pelo facto de os “caralhos” possuírem um manípulo que facilitava o seu manuseio. Ou seja, os instrumentos eram de grandes dimensões e fáceis de manusear, pelo que certamente proporcionariam prazer a quem os usasse.
    A cantiga dá testemunho da existência de brinquedos eróticos na Península Ibérica medieval, de origens variadas, aspetos, tamanhos e materiais. O acesso, quase de certeza, seria bastante restrito, e itens mais paramentados – como os referenciados à abadessa – deveriam ter um custo elevado. Note-se que, de acordo com o verso 15 (“Muito bem vos semelharam”, ou seja, me lembram de vós), não seria a primeira vez que a abadessa possuiria esse tipo de objeto.
    Por outro lado, se havia outros tipos de instrumentos e com outras imagens, estes talvez fossem mais acessíveis a outras mulheres interessadas. Seja como for, esta cantiga alude, por um lado, a uma temática diferente no contexto da poesia trovadoresca – a masturbação feminina – e, por outro, traduz práticas dissidentes das regulamentadas pela Igreja. O sexo – ou, como é o caso desta composição poética, a sua simulação – podia consumar-se de modo diverso do regulamentado e permitido pela união matrimonial. Se uma abadessa conseguia ter acesso a um instrumento de prazer como este, o que impedia que uma mulher casasa também o pudesse?

Análise da cantiga "Ansur Moniz, mui’houve gram pesar", de Afonso X

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Afonso X, constituída por três sétimas de rima emparelhada e interpolada, segundo o esquema ABBACCB, satiriza Ansur Moniz, numa chufa em que, ironicamente, defende este cavaleiro que tinha tido problemas com os seus porteiros. O indivíduo é apresentado como um fidalgo rural de pouco importância que aspirava a ser um grande senhor, uma personagem desconhecida, talvez a mesma que aparece em duas cantigas de Vasco Peres Pardal, daí a queixa por os porteiros o terem incluído no grudo dos escudeiros, de baixa condição social.
    No verso inicial, o sujeito poético expressa o seu grande pesar (obviamente irónico) por os porteiros (o porteiro era uma figura importante nas cortes medievais – reais e senhoriais –, visto que era a si que competia fazer a triagem dos visitantes e indicar-lhes o lugar) terem colocado Ansur Moniz, de forma vil ou como um vilão (“vilanamente” – advérbio de modo), entre os escudeiros. O advérbio enfatiza o modo desonroso como o alvo da sátira foi tratado. Ansur Moniz é uma personagem desconhecida que, de acordo com o texto, possuía pretensões de grande senhor (tratar-se-á talvez do mesmo que surge em duas cantigas de Vasco Pardal), havendo que interpretar a queixa por os porteiros o incluírem no grupo dos escudeiros, de baixa categoria social. Em sinal de discordância, o «eu» lírico censura-os (atente-se na fórmula exclamativa de jura “Per boa fé”), condenando o tratamento dedicado a Ansur Moniz, pois este provém “dos de Vilan’Ansur de Ferreiros”. Note-se que este topónimo se refere a um lugar situado na província de Burgos: Villasur de Herreros. Por outro lado, o trovador faz nestes versos um jogo com o nome do fidalgo (vilão Ansur), bem como com o topónimo, algo em torno de “vilão ao sul de Ferreiros”. Neste sentido, podemos interpretar a fala do sujeito poético, ao referir-se às origens de Moniz, como significando que ele provém de uma linhagem mais humilde.
    Na segunda estrofe, o trovador continua a detalhar a ascendência de Ansur Moniz, referindo que também descende dos “d’Escobar” e de Campos, mas não dos de Cizneiros. Estes três topónimos pertencerão, provavelmente, ao mesmo território, isto é, Escobar referir-se-ia a Escobar de Campos, concelho da atual província de Leão, ao passo que Cizneiros será Cisneros, um concelho localizado no centro-sul da província de Palência; finalmente, Campos fará referência ao anteriormente citado Escobar de Campos ou, também, Terra de Campos, uma extensa comarca que se estende pelas províncias espanholas de Leão, Zamora, Valladolid e Palência. Ou seja, Ansur Moniz descende da família de Vilanansur, Escobar e Campos, <apelidos brasonados importantes, menos que os de Cisneros, que contrastam com a humilde procedência de lavradores e carvoeiros, profissões baixas na escala social. De facto, o alvo da sátira parece proceder de lavradores e carvoeiros. O facto de estes dois vocábulos surgirem maiusculados parece sugerir que se trataria também de eventuais formas onomásticas, o que vai contra a lógica discursiva da cantiga.
    Outro ramo da família é os “d’Estepar”, um município da província de Burgos, na mesma comarca que Vilanansur de Ferreiros, em Castela-Leão, bem como “d’Azeved”, provavelmente a atual Acebedo, em Leão, não obstante haver estudiosos que a associem a uma povoação localizada perto de Caminha. É possível ainda que haja aqui um equívoco com o azevém, uma planta para forragens. É aí que estão sepultados os seus pais (“u jaz su padr’e sa madr’outro tal”) e repousarão, no futuro, ele próprio e os seus filhos (“e jará el e todos seus herdeiros.”).
    Ao longo da sua vida, Ansur Moniz tomou iniciativas destinadas a melhorar a sua posição, indiciando a sua preocupação e a sua demanda de prosperidade e reconhecimento, tendo ganhado mais do que os seus antepassados (“er foi el gaanhar / [mui] mais ca os seus avoos primeiros”), superando o estatuto desses seus familiares em termos de posses e riqueza. Os versos 17 e seguintes são de muito difícil leitura. Aparentemente, Ansur Moniz comprou foices, terra e trabalhadores e ainda a povoação de Vilar de Paos para o seu sustento (provavelmente, tratar-se-á da antiga Villar de Palos – atualmente, Villadepalos – , povoação do concelho de Carracedelo, também em Leão, que surge citada num censo populacional do século XVI). Outra leitura desses versos sugere que Ansar Moniz teria comprado foice, estrume, cabreiros e Vilar de Rates (campo com buracos de toupeira), para o seu sustento. No entanto, perante a inexistência de um topónimo igual ou similar a Vilar de Paes (ou Vilar de Raes) devemos supor a existência de um erro de transmissão. Prosseguindo a leitura inicial, as aquisições da propriedade “pera seu corp’” significam que o fez para seu uso e benefício pessoais, pois não está no seu feitio ser e viver pobre. De acordo com outra interpretação, a expressão “e diz ca nom lh’em cal” significa “que não se importa”, o que, neste caso, quererá dizer que Ansur Moniz diz que não se importa de viver pobre. Nos dois últimos versos, encontramos a conclusão: a quem falha consigo mesmo falham-lhe os companheiros, ou seja, quem não se cuida deixa de ter amigos.
    De acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, a ironia desta cantiga reside na utilização de nomes comuns e socialmente marcados na enumeração da sua linhagem e propriedades. Na esteira da Farsa dos Almocreves, de Gil Vicente, ou do Lazarilho de Tormes, estamos perante um daqueles casos de um fidalgo pobre que de tudo é capaz, incluindo passar fome, para salvar as aparências.

sábado, 14 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Abadessa, Nostro Senhor", de Gonçalo Anes do Vinhal

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), constituída por quatro sétimas e uma finda (estrofe final que remata uma cantiga, formada por um, dois ou três, raramente quatro), satiriza uma abadessa, em forma de agradecimento pela forma generosa como foi acolhido no mosteiro (a todos os níveis, incluindo o sexual).
    De facto, o trovador dirige-se ao seu interlocutor – uma abadessa desconhecida – para lhe agradecer por o ter recebido no mosteiro e pelo bom tratamento que lhe dedicou, incluindo o sexual: “Abadessa, Nostro Senhor / vos gradesca, se lhi prouguer, / porque vos nembrastes de mi”. Pelos versos transcritos, percebe-se que ele deseja que Deus agradeça à mulher por esta o ter acolhido quando chegou ao mosteiro em busca de um abrigo: “u cheguei a vosso logar, / que tam bem mandastes pensar / i do vosso comendador!”. O último verso da primeira estrofe identifica o sujeito poético como “comendador”. Relativamente à sua identidade, o Projeto Littera apresenta três leituras possíveis: esse comendador seria o próprio trovador (o “herdeiro” desse mosteiro) e a mudança de sujeito, no final de cada estrofe, constituiria uma maneira irónica de afirmar que o tratamento a que tinha direito teria deixado a desejar; a segunda hipótese apontaria para o comendador ser outra pessoa, que recebe todos os favores, enquanto o viajante cansado fica à porta (qual Castelhano, no Auto da Índia, esperando, nos quintais da Ama, que esta lhe abra a porta e o receba, enquanto ela se diverte, dentro de casa, com o outro amante, o Lemos), ou seja, neste caso, a cantiga seria uma queixa deita pelo trovador por não ter sido tão bem tratado como o comendador; a terceira possibilidade apontaria para uma usurpação dos legítimos direitos do trovador em matéria de comendas (situação semelhante à denunciada por um outro trovador, João Soares Coelho, numa cantiga que dirige a Airas Peres Vuitorom: “Dom Vuitorom, o que vos a vós deu”).
    Partindo do pressuposto de que o comendador é o próprio trovador, a abadessa teria oferecido um serviço completo a um visitante, que estava morto de cansaço, e foi tão bem recebido que lhe perguntavam se seria capaz de retribuir o gesto que tanto lhe agradou: “e todos me perguntaram / se vos saberei eu servir / quam bem o soubestes guarnir / de quant’el havia sabor.”
    Por isso, na terceira estrofe, o «eu» lírico deseja que Deus a recompense, por se ter lembrado dele, por o ter tratado tão bem. Se algo falhou relativamente ao acolhimento, não foi por falta de espaço da abadessa: “o comendador i chegou / e se el bem nom albergou, / nom foi por vosso coraçom” (vv. 19 a 21). Isto permite supor que o tratamento ao qual ele se refere seria também de cariz sexual, pela ênfase dado no final de cada estrofe. Nos versos 17 e 18, por exemplo, o trovador refere que ela se lembrou dele da maneira que era conveniente (“por que vos nembrastes de mim, / u m’era mui mester assaz”) e que, como conclui nos versos seguintes se alguma falha ocorreu, não foi por falta de esforço da parte da abadessa.
    Na quarta estrofe, reitera o agradecimento por o ter recebido no mosteiro: “Deus vos dê por en galardom / por mui, que eu nom poderei, / porque vos nembrastes de mim, / quand’a vosso logar cheguei;”. De seguida, o trovador declara que, quando o comendador chegou ao mosteiro, foi tão bem suprido de amor e prazer que não seria possível fazer melhor: “ca já d’amor e de prazer / nom podestes vós mais fazer / ao comendador entom”.
    Na finda, constituída por três versos, o «eu» poético exprime o desejo de que a abadessa seja recompensada cem vezes mais, pois serviu ao comendador tudo o que havia no mosteiro: “Cento dobr’hajades por en / por mi, que lhi nom minguou rem / de quant’havia na maison.” (o termo “maison” é um galicismo que significa “casa”, em geral religiosa).
    Ao contrário de diversas outras cantigas de escárnio e maldizer, nesta não existe vocabulário obsceno, sendo as ideias transmitidas de forma subtil, maliciosa. Por outro lado, é evidente uma mistura entre religiosidade e sexualidade, por exemplo, quando agradece ou quando deseja que Deus recompense a abadessa: “Nosso Senhor / vos gradesca”; “Hajades por en galardom / de Deus”; “Deus vos dê por em galardom / por mim”. A insistência exagerada na ideia da retribuição divina e na impossibilidade de o próprio comendador retribuir a abadessa contribui para a formação do tom de malícia.
    Nota, por último, para a presença da palavra perduda (verso de uma estrofe que não rima com nenhum outro, mas que pode ou não rimar com os versos correspondentes das estrofes seguintes), concretamente no terceiro verso de cada estrofe, incluindo a finda: “porque vos nembrastes de mi” (v. 3); “mais nembrastes-vos bem de mim” (v. 10); “porque vos nembrastes de mim” (v. 17); “porque vos nembrastes de mim” (v. 2); “de quant’havia na maison” (v. 31).
    Esta cantiga satiriza os religiosos que têm comportamentos inadequados ou mesmo luxuriosos. O foco são os agradecimentos de um comendador em razão dos cuidados que recebeu durante a sua estada num mosteiro. A expressão, repetida ao longo do poema, “nembrastes-vos bem de mi” enfatiza, em cada estrofe, os “bons cuidados” que a abadessa lhe dedicou. Ela acolheu-o no convento, quando ele aí chegou, depois de uma longa viagem, muito cansado e necessitado de cuidados que poderão contemplar também o próprio corpo da mulher.
    A já referida subtileza que caracteriza esta composição poética é exemplificada, por exemplo, pela expressão que podemos encontrar no verso 5 da primeira estrofe: “cheguei a vosso logar”. Ora, a interpretação da mesma pode resultar dúbia, pois pode ser entendida como referenciando o final de um trajeto, como também pode ser lida com o sentido de “aproximar-se” (com valor erótico). Outro exemplo encontra-se no termo “maison”, um provençalismo que, além do significado já apontado, remete para uma casa de dimensões consideráveis, e que concretiza o “logar” referido noutras estrofes, mas que pode ser lido de forma literal ou metafórico, enquanto alusão à vagina. Assim, ficamos na dúvida se o comendador agradece à abadessa o facto de o ter “recebido” e tratado prazeirosamente na sua própria “maison” metafórica, ou se os vocábulos “logar” e “maison” se referem apenas e só ao mosteiro real onde a religiosa o recebeu e agasalhou com tudo o que havia naquela habitação, incluindo os favores sexuais dela mesma ou de outra mulher que lá morasse também.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "A um corretor que vi", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, escrita por Estêvão da Guarda, é constituída por três sétimas, com rima emparelhada, segundo o esquema AAABBCC, e satiriza o caso de um casal em apuros por dificuldades económicas, que o obrigam a vender ao desbarato as suas roupas com peles, mesmo se já muito usadas.
    A cantiga estrutura-se a partir de um diálogo jocoso entre o trovador e o corretor, isto é, o intermediário, responsável pela venda das roupas. É fácil imaginar o cenário: o sujeito poético, certo dia, viu o corretor a vender roupa que ele tinha visto, revestida então de “penas veiras”, isto é, feita com pele matizada. O corretor é, pois, um simples intermediário na venda.
    Quem dá início ao diálogo é o trovador, que identifica a pessoa a quem pertencem as roupas: a esposa de alguém com estatuto, como se pode depreender do tratamento por “Dom” (“– Da molher som de Dom Foam.”), que, apesar do título, deverá estar a viver uma situação financeira bastante difícil. A expressão “Dom Foam” era uma fórmula usada habitualmente para esconder uma identidade concreta.
    O corretor responde ao trovador, confirmando que são essa figura e a esposa quem estão a vender tudo quanto possuem: “– Vendem quant’ham, / el e aquesta sa molher”. Essa confirmação reforça a ideia da decadência e da extrema necessidade que atingem o casal: a situação é tão difícil que teve que recorrer à venda dos próprios bens, incluindo a roupa, para sobreviver. Os dois versos que separam o sexto verso do refrão funcionam como forma de introduzir a explicação para a venda da roupa: “ham-no mester, ham-no mester!”, isto é, têm necessidade, o que confirma que tudo se deve a dificuldades económicas. Além disso, a repetição presente no refrão indicia a urgência do casal.
    Os dois versos iniciais da segunda estrofe confirmam que as roupas que estão a ser vendidas são de mulher. Ironicamente, refere que esta ficará quase despida, o que significa que está a vender quase todo o vestuário, em virtude da necessidade extrema. A mulher fica quase nua ao olhar público por vender a roupa, enquanto essa mesma venda deixa igualmente a nu a depauperada situação financeira do casal. A btítulo de curiosidade, convém ter presente o significado da expressão “ver grós”, a qual, segundo Gema Valin (in “La indumentaria en la lírica Gallego-Portuguesa: algunas consideraciones sobre el uso y el significado de las penas veiras”), constituiria uma outra designação para as “penas veiras”, a partir do francês “vair gros”, cuja técnica “consistia en combinar el gris del lomo y el blanco del vientre de la ardilla formando um damero, y cuandolos cuadrados eran de mayor tamaño se le daba el nombre de gros vair”. Seja qual for a interpretação, esta passagem da cantiga indicia que os “panos” são de baixa qualidade de tão usadas.
    O trovador insiste na questão: por que razão a mulher deseja vender as vestes por vontade própria, se tal atitude a deixa quase nua? A resposta do intermediário é imediata: ele tem a certeza de que (“– Sei eu, de pra,”) o casal o faz por necessidade financeira, de acordo com o refrão. Mas como pode o corretor ter tanta certeza, passe a redundância, acerca da razão da venda? Foi a própria mulher quem lho disse: “– Sei eu, de pram, / per ela, quanto vos disser:”. A citação indireta funciona como uma espécie de argumento de autoridade que assegura a veracidade do que é dito.
    A sátira acerca da penúria em que vive o casal intensifica-se na terceira estrofe. O trovador afirma que é difícil acreditar que “eles” – o casal –, por falta de recursos financeiros, vendam a roupa da mulher por um valor extremamente baixo. Ora, esta atitude reflete o desespero e a extrema necessidade do par, ficando assim exposta a gravidade da sua situação de pobreza, que os leva a sacrificar a própria dignidade.
    Mais uma vez, o interlocutor do sujeito poético faz luz sobre os acontecimentos e explica, de novo, que é a necessidade extrema (“Per com’ estam”) que os faz descer àquele ponto: eles necessitam de vender aqueles “panos”, mesmo que por um valor muito baixo, porque nada mais lhes resta.

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achou-s’um bispo que eu sei um dia", de Airas Nunes

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, sem refrão), da autoria de Airas Nunes, é constituída por quatro sétimas, sendo que a última está bastante danificada, cujos fragmentos são transcritos apenas pelo Cancioneiro da Biblioteca Nacional.
    A composição poética consiste num diálogo entre duas personagens do alto clero, um bispo e o seu arcebispo, este último eleito mas ainda não confirmado. O episódio datará talvez de 1286/1289 e relacionar-se-á com a nomeação papal de Rodrigo González como arcebispo de Santiago de Compostela, uma nomeação que foi muito contestada pelo claro local, que não via com bons olhos a ânsia moralizadora e reformista do novo arcebispo. Note-se que o trovador – Airas Nunes – era ele próprio clérigo. Sucede que o bispo passou pelo Eleito e não deu por ele, o que fez com que este se zangasse. Há críticos que sugerem a hipótese de o “eleito” de que fala a cantiga talvez não seja exatamente um bispo, mas, sim, o Papa. Um simples bispo eleito não trataria mal um bispo mais antigo e já sagrado. Além disso, o “eleito” mora num lugar onde todos os bispos têm obrigação de o conhecer e de lhe falar. Isto só sucederia na Cúria Romana. Neste caso, a ironia tem origem na ignorância do bispo que vai a Roma e não sabe quem é o Papa, exceto se se tratar de um bispo eleito há pouco e cheio de prosápia, todo zangado por um bispo simplório não dar pela sua nova dignidade. É uma leitura possível, mas pouco provável.
    A primeira estrofe dá conta que que um bispo que o trovador conhece (“Achou-s’um bispo que eu sei”) encontrou o arcebispo eleito e não lhe falou (“cõn’o eleit’e sol nom lhe falou”), o que causou o espanto deste último, pelo que se dirigiu à outra figura e a questionou acerca da sua postura (“- Que bispo sodes, se Deus vos perdom, / que passastes ora per mim e nom / me falastes e fostes vossa via?”). A expressão “sol nom lhe falou” evidencia o silêncio do bispo ao passar pelo “eleito” e o não reconhecimento deste, o que indicia que era estranho ou incomum que uma figura eclesiástica se cruzasse com uma autoridade da Igreja e não a reconhecesse e saudasse. A forma verbal “maravilhou” traduz o efeito causado pelo comportamento do bispo no arcebispo: surpresa. A expressão inicial “um bispo que eu sei” dá nota de que o trovador conhece a sua identidade, porém não a revela. A interrogação retórica “Que bispo sodes” traduz o espanto do arcebispo com a atitude do outro religioso e, em simultâneo, pode entender-se como uma provocação, questionando essa postura e insinuando que a mesma é inadequada. A expressão “se Deus vos perdom” é irónica, pois apresenta a ausência de saudação como um “pecado” muito grave, tão grave que apenas poderá ser colmatado por um perdão divino, que não é certo.
    A gravidade que se espera de questões religiosas não é propriamente a desta situação. Por último, a expressão “fostes vossa via” (= seguistes o vosso caminho) sugere a indiferença do bispo, enfatizando o facto de este ter ignorado o “eleito”, uma figura que se considera bastante importante.
    A segunda estrofe contém a resposta do bispo, que alega não conhecer o interlocutor (e invoca o testemunho divino em seu favor: “se Deus me valha”), pois nunca tinha falado com ele nem alguma vez o tinha visto, pelo que não o poderia (re)conhecer. Por estes motivos, alerta-o para o facto de, se a situação voltar a ocorrer, isto é, os dois se cruzarem de novo e não o conhecer nem lhe falar, não se admirar nem considerar que tal sucederá por “vilania”, ou seja, por falta de respeito. Esta fala do bispo torna claro que ele fingiu não reconhecer o arcebispo, pois, se naquela ocasião, tinha justificação para a ausência de saudação, o mesmo não sucederá no futuro, já que a desculpa de nunca ter visto nem falado com o arcebispo deixou, a partir daquele momento, de se verificar, pois estão a falar um com o outro. Por outro lado, a alegação de que não o conhecia pessoalmente não é aceitável, já que, mesmo que tal fosse verdade, não poderia deixar de reconhecer a figura de um arcebispo.
    Este, porém, não aceita a justificação do bispo. Desde logo, afirma que “todos aqui m’ham de conhecer”, ou seja, reforça o seu estatuto e a sua importância, bem como a alta estima em que se tem, que eram tais que todas as pessoas o conheciam (hipérbole). Depois, acrescenta que o bispo o ignorou intencionalmente, fingiu não o reconhecer (“e o que o assi nom quer fazer / nom é bispo nem val ua mealha”), daí atacá-lo pessoalmente, questionando o valor do bispo enquanto pessoa, bem como a sua legitimidade enquanto tal. O uso do nome “mealha” (moeda de pouco valor) simboliza o desprezo que o “eleito” tem pelo seu interlocutor. A expressão “quem me sõo eu” evidencia o alto valor e a importância que o arcebispo se atribui, sugerindo que considera a sua posição e o seu estatuto tão elevados e óbvios que o bispo o deveria ter reconhecido de imediato, sem qualquer hesitação. Daí provém o seu espanto, a sua indignação e o orgulho ferido. Nova hipérbole (“nem dades por mi valor d’ua palha”) intensifica a sensação de desrespeito e desprezo que a atitude do bispo gerou no “eleito”.
    A quarta e última estrofe apresenta seis versos estropiados, salvando-se o terceiro, o único que está completo. Do escasso texto que chegou até nós, fica a sensação de que o bispo reforça a sua justificação / argumentação e a sua verdadeira intenção, ao clarificar que não quer o mal, mas também o bem, do arcebispo. Ora, esta afirmação indicia a total indiferença do bispo pelo seu superior hierárquico, bem como o desprezo pela sua opinião e indignação, que contrasta com o valor e a importância, bem como o desejo de reconhecimento, que o arcebispo atribui a si próprio.
    Em suma, esta cantiga critica, na pessoa do arcebispo, os membros do alto clero que se deixam deslumbrar pela vaidade, pelo orgulho, pelo deslumbramento e egocentrismo, resultantes da eleição para cargos dentro da hierarquia religiosa. De facto, o arcebispo, recentemente eleito, fica indignado e julga-se ultrajado na sua dignidade pelo simples facto de não ter sido reconhecido por um bispo.

sábado, 7 de dezembro de 2024

Análise da cantiga "Achei Sanch’Eanes encavalgada", de Afonso X

    A presenta cantiga de escárnio e maldizer de refrão, constituída por três sextilhas (4 versos + 2 do refrão), da autoria de Afonso X, rei de Castela e poeta, satiriza Sancha Anes, uma dona “velha fududancua” [o vocábulo remete para uma atividade sexual contranatura] com aparência de “mostea” [carregada de palha], mas não necessariamente uma soldadeira nem uma prostituta.
    A cantiga, na opinião de Graça Videira Lopes, constitui “uma cena da vida da nobreza rural: num contrarretrato da senhor das cantigas de amor, uma matrona atravessa as ruas de uma aldeia”. De facto, o sujeito poético encontra, um dia, Sancha Anes cavalgando e, ao vê-la, conclui que e a mulher mais feia do mundo (“ca nunca vi dona peior talhada”: a hipérbole enfatiza a feiura desta mulher), quase jurando que era uma carrada de palha: “vi-a cavalgar per ua aldeia / e quize jurar que era mostea” (vv. 5 e 6 – refrão). Montada a cavalo, gorda e enroupada, assemelhava-se a um enorme fardo de palha.
    A comparação que inicia a segunda estrofe (“Vi-a cavalgar com um seu escudeiro, / e non ia melhor um cavaleiro”), bem como a descrição presente no verso “mui bem vistida em cima da mua”, aparentemente contraditório na cantiga, já que elogiosos num primeiro momento, na realidade acirra o ridículo da cena, oiis são irónicas: Sancha cavalgaria como um homem, montada sem feminilidade, e estaria excessivamente vestida, o que ampliaria a sua forma redonda e cheia, ou seja, um saco / um fardo de palha. O retrato que dela é apresentado até aqui é o de alguém fisicamente feio e moralmente guloso e sodomita, para cuja construção contribuem expressões coimo “dona peior talhada”, “tan gran mostea”, “en cima da mua” e “velha fududancua”, que, no fundo, a retratam como uma mulher velha e balofa. Em contraponto, a composição poética dá-nos igualmente traços positivos, como “cavalgar per ua aldeia”, “com un seu escudeiro” e “mui bem vistida”, que indiciam uma montada, um escudeiro e roupa de qualidade.
    Atente-se no facto de outros autores apresentarem uma versão diferente dos dois versos iniciais da segunda estrofe: “Vi-a cavalgar, muach’e sendeiro, / e nom ia milhor um cavaleiro”, em vez de “mua e sendeiro”. O termo depreciativo “muacha” é usado por D. Dinis numa sua cantiga. Por outro lado, a expressão “caval’ e sendeiro”, enquanto indicadora de subida de estatuto (cavalo para montar, acompanhado de uma besta de carga), aparece numa cantiga satírica de Martim Soares. Assim sendo, a paródia resultará neste passo exatamente dessa imagem típica do cavaleiro (no caso, substituindo o cavalo pela mula).
    Além da hipérbole e da ironia já referidas, a comparação com uma “mostea” é bem significativa. De facto, esta sugere que Sancha Anes é uma mulher de formas avantajadas (“peior talhada”, “mostea”), é um saco de palha. Se juntarmos a sua imagem de uma figura velha, gorda e desengonçada, desfilando pela aldeia montada a cavalo, ficaremos com a noção de quão ridícula é a cena. No fundo, estamos perante uma caricatura grotesca da personagem, ridicularizando o seu aspeto físico e a sua compostura (PAREDES, Juan. “Introducctión”. Roma. 2010). O trovador zomba da feiura de Sancha Anes, afirma que nunca viu uma mulher tão mal feita (“ca nunca vi dona peior talhada”), jura que é um saco de palha (“quize jurar que era mostea”) e insulta-a, apelidando-a “fududancua”, um vocábulo obsceno. A sátira à feiura física concretiza-se através da descrição da ridícula cena do seu passeio a cavalo pela aldeia, descrição essa que serve para evidenciar a sua conduta devassa e imoral, já que pratica a sodomia (“fududancua”), que gerava grande repulsa na Idade Média. Deste modo, podemos concluir que a sátira ao seu aspeto físico serve, na verdade, para denunciar a sai feiura moral. Note-se que a prática da sodomia na época era penalizada legalmente em várias legislações medievais.
    Por outro lado, esta cantiga configura o antidiscurso burguês, nomeadamente por causa do uso do nome “dona”, característico das cantigas de amor, bem como da adjetivação disfórica “peior talhada”. Corral-Diaz, a este propósito, defende que as conotações semânticas do nome “dona” são essencialmente de tipo social, designando uma dama aristocrática ou, noutros casos, uma mulher casada. Dito isto, nas cantigas de escárnio e maldizer, o termo é usado ironicamente, como é comprovado pelo tratamento cortês que era dirigido a soldadeiras ou quando se satirizava o tipo das abadessas. No caso de Ana Sanches, nada se sabe sobre ela, pelo que não há como determinar se era uma soldadeira ou uma simples matrona, mas é possível presumir que era uma mulher de elevada posição social pelos motivos já aduzidos: possuía uma montada, um escudeiro e roupas ricas.
    A mulher é representada, hiperbolicamente, como feia, velha e gorda, metaforicamente associada a um elemento inumano: a “mostea”, um fardo de palha. Tendo em conta a roupa extravagante que vestia e que permitia que se destacasse, o efeito cómico provocado pela visão da senhora passeando a cavalo com o seu excesso de roupas e as suas formas avantajadas é óbvio de roupas e as formas avantajadas que ele até se benze (“santiguei-m’).
    As duas palavras mais importantes da cantiga são, portanto, “fudaduncua”, cujo uso constitui uma antonomásia de cariz ofensivo, e “mostea”, nome que pode significar ”carrada de palha”, configurando uma metáfora que sugere as formas volumosas de Sanch Anes, mas também uma doninha, um animal mamífero das família dos furões, que, segundo certas crenças medievais, era caracterizada por atos anti-natura, como, por exemplo, conceber através da boca e parir pelas orelhas.
    Um outro vocábulo significativo é o adjetivo “encavalgada”, uma metáfora que representaria a realização do coito. Assim sendo, Eukene Lanz interpreta a cena do passeio a cavalo como uma metáfora de uma presumível relação sexual de Ana Sanches com outra mulher. Porquê com uma mulher? Para a estudiosa, a explicação reside na duplicidade do significado de “mostea” como carrada de palha ou como dominha de corpo pequeno e alongado, que poderia meter-se em qualquer buraco, incluindo o órgão sexual feminino, além da possível aceção da palavra “mua” (v. 14) como barregã, concubina ou amante. Atentemos nas palavras da própria Lanz: «Sancha, descrita fisicamente tanto como uma mulher grande, ou, ao contrário, pequena e enérgica, como uma doninha, aparece cavalgando sobre alguém que, no final, é uma mula, ou seja, outra mulher. O sentido de união contra a natureza vem reforçado pela exclamação “Ai, velha fududancua”, que poderíamos traduzir livremente para “Ai velha sodomita!”. Não se deve tomar ao pé da letra essa denúncia. Sancha Anes, longe de representar a parte passiva, é, sem dúvida, a parte ativa que cavalga sua mula e parece fazê-lo como uma doninha, introduzindo-se na toca”. Assim sendo, a alusão ao facto de a mulher cavalgar sem a feminilidade esperada (“e nom ia milhor um cavaleiro”) confirmaria a homossexualidade feminina, vincada pelo estereótipo da mulher masculinizada.
    Em suma, Sancha Anes é uma mulher que se distancia duplamente do arquétipo de beleza feminina do género lírico (cantigas de amigo e de amor), descumpre os preceitos da doutrina cristã por não ser casta e usufruir da sua sexualidade sem o objetivo de procriar, fora do matrimónio, bem como, se considerarmos como válida a hipótese sodomita, desafiar a natureza, relacionando-se intimamente com uma mulher.
    Outras interpretações sugerem uma relação da mulher com o escudeiro que a acompanhava, bem como que o cerne da sátira se centraliza no palheiro, local do encontro licencioso, de onde ela saiu coberta de palha, confundindo-se com ela (sinédoque).

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A molher d’ Alvar Rodriguiz tomou", de Estêvão da Guarda

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria, da autoria de Estêvão da Guarda, é constituída por duas sétimas de rima interpolada e emparelhada (ABBABBA) e tem como figura visada a mulher de Álvaro Rodrigues por ter sido abandonada pelo marido e, por isso, se recusa a “chegar-se a ele”, que é o equivalente a dizer que a sátira visa efetivamente o segundo e não a esposa. Deste modo, pode concluir-se que o tema da composição é o lamento da mulher pela ausência do marido, o que nos recorda o queixume da donzela da cantiga de amigo relativamente ao seu amado exatamente pelo mesmo motivo.
    Efetivamente, a mulher de Álvaro Rodrigues queixou-se (“tomou tal queixume” – o advérbio de intensidade e grau intensifica o queixume, sugerindo que é especialmente forte, fora do comum) por o marido ter partido para longe (“sel foi daquém”) e a ter abandonado. Como consequência, desde que ele regressou, ela “nunca s’a el chegou”, isto é, nunca mais se aproximou dele, nunca mais teve qualquer gesto de afeto, nunca mais permitiu o contacto físico entre ambos, o que seria mais do que comum no seio de um casal, para mais tendo em conta que estiveram separados durante algum tempo. Esta recusa constitui, portanto, o castigo reservado pela mulher para o marido por este a ter abandonado. Independentemente das circunstâncias, nem a bem nem a mal, ela não se aproxima dele. É uma outra forma de abandono que a esposa pratica, em resposta ao abandono de que foi vítima, e pretende continuar: “nem quer chegar”.
    Convém esclarecer que não existem dados que permitam identificar este Álvaro Rodrigues. De acordo com a cronologia, poderia tratar-se de Álvaro Rodrigues Redondo, referido pelo Nobiliário do Conde D. Pedro enquanto criado de D. Álvaro Gonçalves Pereira, prior dos Hospitalários e do Crato. Esta figura era filha de uma dona do Crato e neto (ou mesmo filho), por via bastarda, do trovador Rodrigo Anes Redondo. Antes de assumir a chefia da Ordem, Álvaro Rodrigues Pereira esteve em Rodes, tendo participado na guerra contra os Turcos, juntamente com os homens de armas e cavaleiros que levara de Portugal, de acordo com os textos de Fernão Lopes. De acordo com estes dados, se se confirmasse que este Álvaro Rodrigues seria efetivamente a figura da cantiga, estariam enquadradas as alusões à sua partida para “Além-Mar” que surgem nalgumas cantigas a ele dirigidas. O Conde D. Pedro refere-se-lhe numa cantiga como sendo monteiro-mor.
    Os três versos iniciais da primeira estrofe esclarecem que a mulher só retomará o contacto, o relacionamento, se ele lhe assegurar (“jurando-lhe ante que, a bõa fé”) não voltará a deixá-la como deixou. Deste modo, é possível concluir que a esposa não sente confiança no marido, que só voltará a aproximar-se se estiver certa das intenções dele, o que parece indiciar, por um lado, que valoriza a estabilidade, a sinceridade e a honestidade e, por outro, que Álvaro Rodrigues não observou essas características até então, nomeadamente aquando da sua partida.
    A repetição do verbo «leixar» («deixar») é muito significativa, antecedida do advérbio de negação «não» e seguida do termo comparativo «como». Começando pelo advérbio, este enfatiza a ideia da recusa absoluta, passe o pleonasmo, e da firmeza da mulher ao declarar que não tolerará nova situação de abandono nos termos em que se processou a anterior. Por outro lado, a reiteração de formas do verbo «leixar» estabelece um contraste entre o passado (em que foi abandonada e, por isso, sofreu a dor da solidão) e o presente, apontando também para o futuro, em que recusa a repetição da situação e exige um compromisso ao marido de que tal não se repetirá. O comparativo «como» enfatiza o modo como Álvaro Rodrigues a deixou, provavelmente insensível, insincero, desrespeitoso, circunstância que não tolerará que se repita: ela não permitirá que ele a abandone novamente da mesma forma que o fez anteriormente.
    Esta cantiga parece evidenciar uma nova atitude por parte da mulher da época, visto que a personagem da composição evidencia uma firmeza e uma liberdade que eram pouco comuns na época, na qual o género feminino estava quase sempre sujeito à vontade dos maridos. Além disso, a sua atitude demonstra um caráter forte, determinado, colocando-a numa posição de poder relativamente ao marido, o que configura uma inversão de papéis. Por outro lado, o texto mostra que aprendeu com o passado e que não permitirá que a situação se repita, a de um abandono abrupto e insensível.
    Na segunda estrofe, o sujeito poético designa Álvaro Rodrigues como «cativo», nome que, por um lado, sugere o facto de ele ser prisioneiro / estar subjugado à vontade e determinação da mulher (que recusa a sua aproximação e só a tolerará se o marido preencher uma condição) e, por outro, o qualifica como pessoa infeliz, desgraçada, não só pela recusa da mulher, mas também por não a conseguir demover da sua resolução (“nõn’a pode desta seita partir”), nem recorrendo a meios violentos: ameaças (“nem per meaças”) ou agressões físicas (“nem pela ferir”). Quer isto dizer que o visado pode recorrer à ameaça ou à intimidação, mas nada disso derrubará a sua determinação e força.
    O verso «nem per meaças nem pela ferir» reflete a sociedade da época medieval e os relacionamentos entre homens e mulheres. Assim, o comportamento de Álvaro Rodrigues, efetivo ou aludido, de ameaçar ou agredir fisicamente a esposa reflete o poder e a autoridade que o homem detinha sobre a mulher numa sociedade patriarcal. Curiosamente, a personagem feminina foge ao estereotipo epocal, não cedendo às ameaças do esposo, antes lhe resistindo firmemente. Trata-se de uma subversão da relação de poder característica daquele tempo, usada pelo trovadorismo para criticar os padrões sociais, que levavam os homens a crer que poderia ser possível conquistar o afeto feminino através de ameaças, da força física, da violência e da coerção.
    Ironicamente, a resistência e a obstinação da recusa da mulher poderão ser facilmente vencidas (“se a quer desta sanha tirar”): o marido tem de jurar “bõa fé” (isto é, tem de se comprometer) que nunca mais a abandonará (“a jurar / que a nom leixe em neum tempo já.”). Significa isto que a esposa exige sinceridade, lealdade e compromisso total da parte de Álvaro Rodrigues.
    Este aspeto aponta para uma reflexão sobre o valor da “bõa fé”, da lealdade, da sinceridade, do compromisso como bases para um relacionamento, para um matrimónio. Por outro lado, a exigência de que o homem jure lealdade à esposa constitui uma inversão do papel tradicional dos géneros: nesta cantiga, é ela quem estipula condições ao marido, invertendo o padrão social. A figura feminina exige um compromisso verdadeiro, recusando-se a ceder à intimidação ou à violência, o que evidencia a sua força e capacidade de resistência em defesa dos seus interesses e convicções.
    A cantiga, intencionalmente ou não, critica o abandono temporário ou definitivo das mulheres pelos maridos, uma temática que percorre grande parte do trovadorismo, e que é exposta, neste caso, através da resolução / queixa da mulher de Álvaro Rodrigues. A resposta da esposa é inusitada, já que enfatiza uma postura de resistência feminina numa sociedade patriarcal: ela impõe uma condição firme para retomar o relacionamento – ela só se voltará a “chegar ao marido” caso este prometa de que não voltará a ser abandonada, demandando lealdade e estabilidade, valores que o marido não terá demonstrado anteriormente. Neste contexto, Álvaro Rodrigues mostra-se totalmente impotente para vencer a determinação da consorte: “nem per meaças nem pela ferir, / ela por en neua rem non dá”. A única solução que lhe resta é jurar “a bõa fé” de que não a voltará a abandonar. Em suma, a cantiga critica não apenas o marido, mas a estrutura social que normalizava o abandono das mulheres, sós, desprotegidas e dependentes.

Análise da cantiga "A mim dam preç’, e nom é desguisado", de Afonso Anes do Cotom

    Esta cantiga de escárnio e maldizer, da autoria de Afonso Anes do Cotom, chegou até nós incompleta: uma única estrofe (sétima) com rima interpolada e emparelhada. Nela, compara-se o aspeto físico de três maljeitosos: o próprio trovador, João Fernandes e Pero da Ponte, o qual levaria a palma aos outros dois.
    O sujeito poético começa por referir que tem a fama ou reputação – que não é despropositada, ou seja, é certeira – de ser maljeitoso. Para que não haja dúvidas, volta a confirmar que concorda com essa apreciação: “e nom erram i”.
    O verso três refere-se a um tal Joam Fernandes, figura de difícil identificação, desde logo por se desconhecer o seu apelido. Se considerarmos que a cantiga datará de cerca de 1241 e terá sido produzida em Castela, poder-se-ia tratar de Juan Fernández Valdés, senhor de Beleña, que faleceu na batalha de Martos, em Jaen, em 1275. Um outro candidato seria João Fernandes de Lima, marido da Ribeirinha, a famosa barregã de D. Sancho I, após a morte do monarca, e que antes tinha sido casado, em primeiras núpcias, com Berenguela Afonso de Baião, tia do trovador D. Afonso Lopes Baião. Desempenhou cargos importantes nos reinos de Leão e Portugal, tendo falecido por alturas de 1245.
    Joam Fernandes pertence também ao grupo dos maljeitosos. Ele é conhecido pela alcunha de “o mouro” por causa do seu aspeto físico, como é confirmado pela rubrica de uma cantiga de Martim Soares (“Joam Fernándiz, um mour’est aqui”).
    Outro dos homens que faz parte do grupo é o trovador Pero da Ponte, que supera os dois anteriormente citados. De facto, se alguém o visse em «cós», isto é, sem manto, em corpo bem feito, parecer-lhe-ia “moi peor talhado”, ou seja, o mais maljeitoso.
    Em suma, esta cantiga constitui uma sátira dirigida a três figuras específicas (o próprio Afonso do Cotom, João Fernandes e Pero da Ponte) e à sua aparência. Ironicamente, o sujeito poético inclui-se no grupo dos maljeitosos, o que pode configurar uma forma de autoironia, através da qual ri de si mesmo, enquanto satiriza os demais.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A Dom Foam quer’eu gram mal"

    Esta cantiga, da autoria de João Garcia de Guilhade, é de escárnio e maldizer, de mestria e finda, em cobras uníssonas, com dobre (vv. 1 e 7 de cada estrofe: “mal” – est. 1; “já maenfestou” – est. 2; “falar” – est. 3). Nela, o trovador, em simultâneo, elogia uma dona e critica o seu marido, explicitando claramente o que seriam os bastidores do amor cortês.
    O poema abre com a alusão a “Dom Foam” (= D. Fulano), uma fórmula usual nas cantigas trovadorescas para omitir uma identidade concreta, a quem o «eu» poético deseja “gram mal”, ao contrário do que sucede com a sua esposa, por quem expressa a sua admiração e deseja “gram bem”. Esta antítese (“mal” / “bem”) estabelece a linha condutora da composição poética: o elogio da esposa e a crítica ao marido. Esses sentimentos já o acompanham há muito tempo (“gram sazom há que m’est’avém”) e não mudarão (“e nunca i já farei al”), ou seja, o trovador não fará outra coisa, nunca se desviará deste propósito, nunca mudará de atitude relativamente à figura masculina (sempre o criticará e desprezará) e à feminina (sempre a exaltará).
    A partir do verso 5, o trovador explicita o momento em que começou a experimentar esses sentimentos pelas duas personagens, isto é, desde que viu a mulher (“ca, des quand’eu sa molher vi”), deduzindo-se que tal sucede por ela ser muito bela. E é essa beleza que o seduz e causa o encanto, bem como a aversão pelo marido. A partir desse dia, serviu-a sempre que pôde, não obstante ser casada, e, em simultâneo, procurou o mal para Dom Foam, por a amar ou por o considerar indigno dela.
    Enfaticamente, o sujeito poético declara querer manifestar os seus sentimentos, algo que pesará muito a alguém – certamente Dom Foam –, porém isso mão o impede de o fazer. Ele está consciente que a sua postura poderá ter consequências sérias: mesmo que “morra” por o fazer, quer dizer mal do mau, ou seja, criticar o marido (o “mão”) e bem “da que mui bõa for”, isto é, elogiará a sua esposa, que caracteriza como “mui bõa”, expressão que reforça a exaltação das virtudes da mulher, como sucede na cantiga de amor. O verso seguinte, na esteira deste tipo de cantar, através de uma hipérbole, apresenta-a como uma mulher perfeita, única, a melhor: “qual nom há no mundo melhor” (ou seja, é a melhor de todas, quer física, quer sobretudo psicológica e moralmente). O verso final da cobla reforça a ideia do inicial, isto é, de manifestar publicamente o seu elogio da mulher e a crítica do esposo: “quero-[o] já maenfestar”.
    A terceira cobla explicita a razão da hipérbole do verso 13, descrevendo as qualidades da mulher: nenhuma outra a supera na aparência física (“De parecer”) e na forma de falar, de comunicar, de se expressar (isto é, sabe estar, conviver), e nas boas maneiras (“e de bõas manhas haver”). Esta figura feminina é o protótipo da mulher perfeita, sem igual, superior a todas as outras, como se conclui do uso de nova hipérbole: “ela, non’a pode vencer / dona no mund”. Tendo em conta que se trata de uma mulher casada e juntando isto à caracterização que, sumariamente, dela é feita, não restam dúvidas de que esta composição poética traça o retrato da mulher característico da cantiga de amor. Obedecendo às regras desse género poético, o trovador faz uso da mesura e da cortesia e não a identifica, nem ao marido, dado ser casada. A expressão “a meu cuidar” enfatiza a ideia que se trata da sua opinião.
    Os três versos finais desta estrofe apresentam outro traço típico da mulher do cantar de amor: ela é de origem divina (“ca ela fez Nostro Senhor”, o que justifica a sua perfeição física e moral e a coloca num plano superior ao do trovador, o que a torna inacessível, desde logo pelo seu caráter divino. Em contraste, o marido da “senhor” é uma criação do “Demo”, uma criação do Mal. Para que não restem dúvidas sobre a sua origem, o «eu» poético afirma que as suas palavras e ações são guiadas pelo Diabo. Esta nova antítese (Deus / Diabo) liga-se à anterior e explicita o motivo por que ela é digna de elogios e ele de crítica.
    A finda, constituída por três versos, clarifica que, por ambos serem da maneira descrita nos versos anteriores, caberá a Deus, que tudo pode e vale, julga-los tal como o trovador os encara. Porque “ataes” (marido e esposa) são assim (ele foi criado pelo Diabo e representa o Mal, logo é objeto de crítica; ela, por Deus e representa o Bem, daí ser digna de elogio) e como o trovador sente por eles o que enunciou, caberá a Deus o julgamento de ambos, dado ser quem tem valor e poder para tal. Assim, será a divindade a declarar o veredito final sobre as virtudes da esposa e as falhas do marido, ou seja, estamos na presença de um julgamento moral superior. E quem poderá contestar Deus?

segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A ũa velha quisera trobar", de Afonso Anes do Cotom

 
A ũa velha quisera trobar
quando’em Toledo fiquei desta vez,
e veo-me Orraca López rogar
e disso-m’assi; - Por Deus que vos fez
nom trobedes a nulha velh’aqui
ca cuidarám que trobades a mim.
 
    Esta cantiga de Afonso Anes do Cotom continua o tema de outra que a precede nos manuscritos (“Orraca López vi doente um dia”): a velhice de Orraca López. De acordo com vários estudiosos, a cantiga está incompleta, o que não impede a compreensão da sua sátira.
    O sujeito poético, no primeiro verso, exprime o desejo de cantar uma “velha” em Toledo. Por um lado, estamos perante uma sátira relacionada com a cantiga de amor, dado que, de acordo com os seus cânones, o trovador cantava uma dama jovem, bela, perfeita e inacessível, ou seja, cantava a beleza e a juventude, não a velhice e a feiura. Por outro lado, o «eu» poético trata a mulher de forma depreciativa, usando o nome «velha» sem mais (poderia, por exemplo, usar a palavra como adjetivo – “mulher velha” –, o que suavizaria a abordagem), para enfatizar a ideia da velhice, desvalorizando e depreciando a mulher. Além disso, a expressão “ũa velha” (o recurso ao indefinido indicia que poderia ser qualquer uma) retira a individualidade da figura feminina, reduzindo-a a um traço – a idade – que ignora a sua identidade como mulher ou pessoa. A intenção do trovador é unicamente destacar a velhice de uma qualquer mulher e as suas implicações sociais e culturais, bem como o modo como a sociedade medieval observava as mulheres mais velhas.
    Toledo, então, era uma cidade e província de Castela-La Mancha, na margem direita do rio Tejo, capital da Hispânia visigótica e uma das principais cidades medievais da Península Ibérica. Foi aí que o trovador chegou “desta vez”, o que sugere a sua itinerância, andando de terra em terra a compor as suas cantigas. Nesta ocasião, o ponto de paragem foi Toledo, onde tinha a intenção de cantar uma mulher velha. Encontrou, então, Orraca López (ou Urraca Lopes, provavelmente uma soldadeira), o objeto da sátira, que se dirige ao «eu» para que lhe rogar que não trove a nenhuma velha da cidade. Esse rogo é antecedido da invocação de Deus (“Por Deus que vos fez”), que sugere a ansiedade da mulher relativamente ao que teme que o trovador faça.
    O último verso conhecido da cantiga explicita o motivo que está na base do pedido de Orraca López: se o sujeito lírico escrever uma cantiga dedicada a uma velha, todos pensarão que o texto é sobre ela, ou seja, ela representa a mulher velha, a velhice. Deste modo, a figura em questão encontra-se numa situação de vulnerabilidade, tendo em conta o modo como a sociedade de então olhava e tratava as mulheres de idade avançada, desvalorizando-as, escarnecendo-as e até marginalizando-as. A mulher jovem e bela deseja ser cantada, ver os seus atributos físicos e a sua juventude ser reconhecidos pelos outros, mas a mulher velha e, consequentemente, feia não. Deste modo, além de visar a temática da cantiga de amor, esta composição aborda igualmente a questão da autoimagem e da perceção que a sociedade tem de cada pessoa. Quem gostaria de ser conhecido e comentado publicamente por traços socialmente considerados negativos? Quem gostaria de ser ridicularizado publicamente?
    A concetualização da mulher nesta cantiga satírica, como em muitas outras, assenta na substantivação de velha como a mulher em si, ou seja, o termo «velha» caracteriza não uma qualidade da figura feminina descrita, mas a existência de um ser caricato com rosto, personalidade e características próprias. E isso é feito através do uso substantivado do adjetivo «velha».

domingo, 24 de novembro de 2024

Análise da cantiga "A um frade dizem escaralhado", de Fernando Esquio

    Esta cantiga de escárnio e maldizer de mestria (isto é, não possui refrão), em coblas singulares (ou seja, com estrofes com o mesmo esquema rimático), da autoria de Fernando Esquio, trovador provavelmente ativo entre o final do século XIII e início do XIV, compreende uma sátira, em termos bastante crus, a um frade que se dizia impotente, mas engravidava todas as mulheres que lhe passavam por perto, tendo três delas dado à luz no mesmo dia. Assim sendo, desde já, podemos concluir que a afirmação da impotência por parte do frade serve para esconder as suas aventuras sexuais.
    A cantiga aborda questão da libertinagem na sexualidade, a partir da referência à virilidade sexual de um frade, que se fazia passar por aleijado ou impotente: “A um frade dizem escaralhado, / e faz pecado quem lho vai dizer”. Ou seja, quem espalha esse rumor sobre o frade comete um pecado, isto é, comete um erro. A razão é simples: “ca, pois el sabe arreitar de foder, quer dizer, possui potência, virilidade, para praticar o sexo, o que o deixa feliz (de acordo com o sítio cantigas.fcsh.unl.pt, “gai” – alegre – é um termo provençal que, tradicionalmente, era lido por vários estudiosos como “que gaj’é” – que é um gajo –, todavia o termo “gajo” só começou a ser atestada em português em meados do século XIX, pelo que a sua utilização nesta cantiga não parece verosímil; eventualmente, podemos também associar o vocábulo ao sentido de “promíscuo”). O calão “de piss’arreitado” reforça a promiscuidade do religioso e o desrespeito pelas normas da religião que professava, nomeadamente a do celibato. Por aqui passa a crítica do trovador à quebra desse voto por parte do clero.
    Resumidamente, o trovador fala de um frade que dizem ser impotente (“escaralhado” significa “desprovido de membro viril”), boato que o próprio religioso teria confirmado. Na verdade, não só seria dotado de pénis, como este funcionava muito bem – como se depreender da expressão “saba arreitar de foder”, que indicia a sua potência sexual – e tem ótima disposição para o sexo, de modo que, como se verá, engravidou várias mulheres, por isso, ao invés de “escaralhado”, é um homem “bem encaralhado”.
    O escárnio e a sátira acentuam-se com a referência ao facto de o frade engravidar todas as mulheres com quem se deita (hipérbole), gerando diversos filhos e filhas, o que prova que é “bem encaralhado”, ou seja, que é bem potente sexualmente, ao contrário da fama de impotente que possui. De facto, o religioso não peca de forma isolada, antes continuada e profícua. O uso recorrente do calão expõe-no como um símbolo de corrupção e desrespeito pelos preceitos religiosos. Em simultâneo, se conectarmos a mensagem da cantiga à atualidade, poderemos considerar que a crítica se vira para a própria instituição Igreja, por forçar os seus membros a adotar comportamentos anti-natureza, como o celibato, isto é, a inibição do sexo.
    A ironia acentua-se na segunda estrofe: o sujeito poético afirma, ironicamente, que nunca usaria o termo “escaralhado” para designar o frade e fá-lo como se fosse uma espécie de concessão: “Escaralhado nunca eu diria”. Exemplificativo do seu vigor sexual é o facto de trazer o membro viril: “mais que traje ante caralho ou veite” (termo provençal que significa «verga», «pau», ou seja, em sentido figurado, pénis. Mais esclarecedora é a afirmação segundo a qual tem várias mulheres de leite, quer dizer, a amamentar filhos seus. Estes versos (“ao que tantas molheres de leite / tem”) tem duas leituras possíveis: a primeira sugere que o frade mantém relações sexuais com mulheres lactantes; a outra que o religioso se torna para as mulheres um deleite sexual, pelo seu “caralho arreitado”. A sátira atinge o zénite com a hipérbole “ca lhe parirom três em um dia”, isto é, três mulheres deram à luz, engravidadas por ele, no mesmo dia. Além disso, como se não bastassem já os factos apresentados para desmentir a sua pretensa impotência sexual, ficamos a saber que o frade possui muitas outras mulheres grávidas: “e outras muitas prenhadas que tem”. Em suma, o religioso tem mulheres engravidadas por si a amamentar; três deram à luz na mesma data; muitas outras estão grávidas. O que se pode concluir de todas estas provas? O frade seria muito “encaralhado” por isto. A ironia é clara: o indivíduo é o oposto de “escaralhado”, de impotente; pelo contrário, é particularmente dedicado ao sexo e fértil, como o comprovam as inúmeras mulheres com quem manteve relações sexuais e que engravidou
    O trovador, ao longo do poema, enfatiza sistematicamente a quantidade exagerada de mulheres com as quais se relacionam sexualmente. Na terceira estrofe, são apresentados outros exemplos: o da famosa soldadeira Marinha e de uma pastorinha prenhe, além de “muitas molheres que fode”. Deste modo, o «eu» lírico afirma, logo no primeiro verso, que tal homem “Escaralhado nom pode ser”. A conclusão, óbvia, surge nos dois versos finais da cantiga: um frade assim, por tudo isto, tem que ser muito viril (“e atal frade bem cuid’ eu que pode / encaralhado per esto seer”. Observe-se que o termo «arreitado» ainda é usado na Baía. No Brasil, nas formas “arretado” e “retado”, com o sentido de alguém muito masculino e também de pessoa ágil e firme. Os dois sentidos acabam por se ligar, dado que a ideia de firmeza sempre se associou à sexualidade.
    Em suma, o trovador enfatiza as habilidades do frade, referenciando-as cinco vezes (vv. 3, 4, 5-6, 7 e 9). O frade teria tantas parceiras sexuais que, em determinada ocasião, teriam nascido, no mesmo dia, três crianças de três mulheres engravidadas pelo frade. O trovador chega, inclusive, a citar o nome de uma das mulheres com quem o religioso se relacionava: chamava-se Marinha e seria mãe de vários filhos dele. O «eu» poético fala de uma «pastorinha», termo que significava uma mulher jovem, indiciando que o frade tinha engravidado também uma jovem de pouca idade, além de diversas outras mulheres.
    Estilisticamente, além do uso da ironia (“A um frade dizem encaralhado, / e faz pecado em que lho vai dizer”; “e atal frade cuid’eu que mui bem / encaralhado per esto seria”) e do calão cru, há que destacar o jogo com as palavras «escaralhado», que designa alguém impotente, e «encaralhado», que apontam para alguém constrangido, que se encontra em situação difícil ou de embaraço. Assim sendo, o primeiro vocábulo associa a figura do frade a uma pessoa que possui uma reputação indesejável, a de ser incapaz de manter relações sexuais, o que, em termos práticos, até se poderia considerar benéfico, pois, deste modo, mesmo que contra a sua (eventual) vontade, ele respeitaria o voto de castidade. Por sua vez, a segunda palavra remete para uma reputação conotada com a virilidade, a masculinidade, mas também à devassidão e à luxúria.
    A anáfora, presente no uso repetido da conjunção coordenativa copulativa «e», serve o propósito de intensificar o caráter devasso e a virilidade do frade, visto que serve a enumeração dos factos que o atestam [o caráter]: “e pois emprenha estas com que jaz / e faze filhos e filhas assaz”; “ca lhe parirom três em um dia, / e outras muitas prenhadas que tem; / e atal frade…”. O diminutivo «pastorinha», equivalente a «mocinha» / «jovenzinha», carrega em si as ideias de pureza e simplicidade, bem como de juventude, logo de inocência, em tese, da figura feminina (em tese, porque, na prática, mantém relações sexuais com o frade), que contrastam com a do frade, devasso e experiente, pelo que não lhe seria difícil seduzir uma jovem. A aliteração em «f» (“e faze filhos e filhas assaz”) enfatiza a consequência da devassidão do frade e da sua atividade sexual repetitiva e sem contenção: o gerar de uma quantidade grande de filhos. A hipérbole (“tantas molheres de leite tem, / ca lhe parirom três em um dia”) dá nota do número elevado de mulheres com quem o frade manteve relações sexuais e, consequentemente, engravidou, indiciando o comportamento devasso e descontrolado, completamente alheio ao dever de castidade. O religioso é, de facto, um homem extremamente fértil e com uma vida sexual bem ativa, em suma, um femeeiro contumaz.
    Nesta cantiga, a impotência é apresentada como estratégia de conquista do frade, que age de modo a sugerir que sofre de impotência (de estar escaralhado – versos 1, 8 e 15), em que muitos acreditavam. Deste modo, não se trata efetivamente de impotência do religioso, mas, pelo contrário, de uma forma de encobrir, aos olhos das demais pessoas, a sua intensa atividade sexual e desrespeito pelo voto de castidade.
    De forma genérica, o trovador denuncia que um frade, que todos creem impotente, na verdade não o era, bem pelo contrário. O adjetivo qualificativo «escaralhado» significa, ao pé da letra, “aquele que não tem o seu membro viril”. O sentido de não o ter desse modo procura sugerir a ideia de que não servia para tal fim, ou seja, era impotente. No entanto, o trovador atesta que “el sabe arreitar de foder” (v. 3), o que significa que o pénis funciona em pleno, como o atesta o facto de engravidar as mulheres com quem se relaciona (v. 5). Os versos finais de cada estrofe apresentam outro qualificativo – «encaralhado» (vv. 7, 14 e 21) –, que significa o oposto de «escaralhado», isto é, quer dizer “portador de membro viril”.
    O uso desses vocábulos confirma a existência de um mecanismo característico da cantiga de amor: o dobre. Este recurso consiste num processo através do qual se repetem palavras na mesma estrofe, em pontos fixos em todas as estrofes (ou seja, exemplificando: se na primeira estrofe se repete a mesma palavra em dois pontos, nas seguintes deverá repetir-se uma palavra na mesma posição). O primeiro dobre, focado nos versos iniciais das estrofes, refere-se à palavra «escaralhado», ou seja, impotente. O segundo dobre é o qualificativo «encaralhado», presente nos derradeiros versos das estrofes, e indicia que o frade, afinal, não é impotente, pelo contrário, é um expert em matéria de sexo.
    Esta cantiga, em suma, denuncia a prática recorrente na época: a manutenção de concubinas por parte de membros do clero, o que contraria as recomendações saídas do IV Concílio de Latrão, que teve lugar em 1215. A questão é que o trovador insinua que o frade pratica sexo de forma ostensiva, inclusive com mulheres que amamentam (porque geraram filhos seus).
    De acordo com Hugo Gonçalves [in Prática Sexual e Humor nas Construções Identitárias da Nobreza Portuguesa na Corte Dionisina (1279-1325), Goiás, 2014), “A manutenção de relações sexuais por parte de clérigos era uma preocupação não só da igreja. De uma maneira ou de outra, o poder secular se envolveu nestas questões, visando restringir esse tipo de envolvimento. Ao clérigo que se casasse com mulheres virgens, era-lhe reservada a justiça secular: fosse através de um processo, fosse pela cítola. Em uma lei datada de 1305, Dom Dinis reivindica para o poder secular o direito de julgar os clérigos que se envolvessem com mulheres virgens. Essa atitude visava proteger as mulheres – especialmente as pertencentes a qualquer círculo da nobreza, que seriam as ideais para o casamento – de se envolverem com algum clérigo que não pudesse dispor de bens para seu favorecimento. Portanto, a petição do monarca é de que o clérigo que violentasse alguma mulher leiga fosse excomungado como se tivesse agredido a outro clérigo, e por isso passasse para as mãos da justiça régia […].
    Outra forma de fazer justiça consistia nas sátiras, pois era uma maneira de se denunciar práticas vigentes e condenáveis aos olhos daquela sociedade. Através do humor, do riso e da pilhéria, se criavam situações, hipotéticas ou não, que certamente traziam certa desconfiança para os adeptos das práticas deletadas. Seus delatores, bem como a maioria da audiência, certamente se deleitavam em imaginar os envolvidos, ou ainda certamente acusavam uns e outros de serem os atores da cena, comentando o clima humorístico envolto nas encenações destas cantigas.
    Portanto, retorna-se à questão da cultura do insulto, pois essas delações pressupunham que houvesse certo afastamento deste clérigo das “muitas molheres que fode” (v. 19), já q eu não o poderia. É impossível reconstruir o ambiente de encenação dessas cantigas, mas ao que tudo indica elas sugerem uma pessoa, sem dizer nenhum nome, as quais eram motivo de divertidas especulações momentâneas, em busca da correspondência real da personagem da sátira. Assim é possível afirmar que essas práticas entre os clérigos eram comuns.
    A construção identitária da nobreza também se dava nestas ocasiões, afinal, escarnecer dos clérigos que não podiam manter tais práticas, enquanto os mesmos nobres a mantinham era uma maneira de se afirmar através do humor. Em última instância, existe uma sugestão de que o referido clérigo mantinha relações com uma soldadeira, que era uma categoria de mulheres que acompanhavam os jograis – músicos que viviam desta atividade, recebendo pelas apresentações que faziam, e às vezes produziam algumas cantigas – e bailavam nas apresentações dessas composições poéticas. Estas mulheres tinham diferentes tratamentos nesta sociedade, muitas vezes sendo confundidas com prostitutas.
    Os estatutos de uma e de outra são diferentes, e as soldadeiras nem sempre eram prostitutas. Por outro lado, como a cantiga propõe em relação à Marinha, essas mulheres deveriam manter relacionamentos sazonais nas cidades que mais frequentavam. Daí pode advir a explicação do facto de o frade ter feito “tantos filhos em Marinha” (v. 16), por ela ser uma soldadeira com quem tivera várias oportunidades de se encontrar.
    […]
    Fernando Esquio, por sua vez, tratou a impotência como uma possível estratégia necessária para um frade disposto a peripécias sexuais, já que mão podia manter relações deste tipo, e que acreditava que fazer com que as mulheres pensassem que era impotente o ajudaria a continuar indefinidamente com suas companheiras.”
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...