Português: 23/12/22

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Análise do poema "A canção do africano"


             Este poema, escrito em 1863 por Castro Alves, tem como tema o africano exilado da sua terra natal africana que tem de se encontrar em território brasileiro, ou seja, a composição mostra a solidão de um povo oprimido numa terra estranha. Assim sendo, estamos na presença de um contraste entre continentes: a África representa a liberdade e a América a escravidão. Perante esse desenraizamento e essa solidão, para não se perder, o escravo negro entoa canções da sua terra natal.

            O poema é constituído por nove estrofes, cinco sextilhas e quatro quadras, com rima emparelhada e interpolada nas sextilhas (AABCBC) e cruzada nas quadras, com dois versos brancos ou soltos (ABCB). Nas quadras, o poeta dá voz ao escravo africano cativo em terras brasileiras, colocando na sua boca uma suposta canção popular africana, que ele canta dentro de uma senzala expondo o seu sentir de cativo e exilado.

            Na primeira estrofe, o «eu» poético apresenta o escravo africano preso numa senzala húmida e acanhada, sentado no chão junta a um pequeno braseiro, inundado pela saudade de África, a sua terra natal, que o faz chorar silenciosamente enquanto canta uma canção cujo teor ainda se desconhece, mas indiciado desde já pelo título da composição poética: a recordação da sua vida em África.

            Na segunda, são introduzidas outras figuras que se encontram no interior da senzala: uma mulher, também escrava, com uma criança ao colo, que ela embala nos braços para a adormecer. Quando ouve uma canção entoada pelo homem, a figura feminina começa também a cantar, num tom de voz bem baixo, pois não quer que o filhou ouça.

            A terceira estrofe – a primeira quadra – revela-nos o conteúdo da canção pela voz do próprio cantor. O tema musical, marcado pela saudade de África, caracteriza-a como uma terra muito distante (“Minha terra é lá bem longe”), de onde vem o sol, menos bela do que as terras brasileiras (o resultado desta comparação, isto é, a superioridade da beleza brasileira relativamente ao continente africano, mostra que o poeta romântico, por mais que queira, não consegue escapar ao seu espírito ufanista). No entanto, apesar disso, a sua saudade e os eu amor são dedicados à terra de onde foi roubado: “Mas à outra eu quero bem!”).

            A quadra seguinte dá continuidade à canção, que dá conta de quão quente é o astro-rei em África através de várias hipérboles (“O sol faz lá tudo em fogo, / Faz em brasa toda a areia;”), todavia o «eu» afirma que é bela a visão da estrela da tarde no céu de África, que é apelidada de “papa-ceia”, o equivalente ao planeta Vénus ou Estrela d’Alva: “Ninguém sabe como é belo / Ver de tarde a papa-ceia!”

            A próxima quadra volta a estabelecer uma comparação entre o Brasil e a África, através, nomeadamente, da vastidão das terras, comparada por sua vez à do mar (“Aquelas terras tão grandes, / Tão compridas como o mar”) e ao menor número de palmeiras (“Com suas poucas palmeiras”). Deste modo, o «eu» poético estabelece um contraste entre a natureza paradisíaca brasileira e a escravidão que lá     se faz sentir.

            A última quadra que dá voz à canção saudosa do escravo canta a felicidade que este experimentou na sua terra natal e que é um sentimento coletivo (“Lá todos vivem felizes”), recorda as danças típicas africanas (“Todos dançam no terreiro”) e, sobretudo, denuncia a escravatura que experimenta no Brasil, por oposição à liberdade que existia em África: «”A gente lá não se vende / Como aqui, só por dinheiro”.» Por outro lado, nesta estrofe, à semelhança do que sucede nas demais quadras, está presente uma antítese entre os dois primeiros versos e os dois últimos: ela começa aludindo ao sonho bom que era a vida em África e termina afirmando que o povo africano não é movido pelo dinheiro como o brasileiro, que é capaz de vender pessoas em troca do vil metal.

            Na estrofe seguinte, o «eu» poético recupera a sua voz no poema, para contar que o escravo fica em silêncio junto ao fogo que se começava a apagar. A escrava, que cantava baixinho enquanto embalava o filho no colo, emudece também: mais do que cantar, ela soluça, chorosa, triste pela saudade da sua terra (“O escravo calou a fala, / Porque na húmida sala / O fogo estava a apagar; / E a escrava acabou seu canto, / Pra não acordar com o pranto / O seu filhinho a sonhar!”). Deste modo, o que ela silencia não é a canção ou o canto, mas o choro, para que o filho não acorde.

            As duas últimas estrofes dão notícia da preparação das três figuras para se deitarem: “O escravo enão foi deitar-se…”; “E a cativa desgraçada / Deita seu filho…”. Porém, estas notas são apenas o pretexto para o «eu» poético denunciar a realidade dura enfrentada pelos escravos. Por exemplo, o cativo, se simplesmente acordasse tarde, seria espancado: “Pois tinha de levantar-se / Bem antes do sol nascer, / E se tardasse, coitado, / Teria de ser surrado, / Pois bastava escravo ser.”. Por seu turno, a mulher deita-se angustiada e receosa, com medo que, durante a noite, o seu «dono» surgisse e lhe levasse o filho. Pelo contrário, a criança, por oposição aos adultos, ainda não tem consciência da realidade e de que não passava de uma simples mercadoria naquele ambiente de escravidão, em que homens, mulheres e crianças de pele negra não tinham liberdade nem voz.

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