Português: Manuel Bandeira
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domingo, 14 de janeiro de 2024

Análise do poema "Poética", de Manuel Bandeira


    O título deste poema em verso livre – “Poética” – vem do grego «poiein», que significa «criar»; de acordo com Aristóteles, quer dizer “o estudo da criação poética em si mesma”.

    Nos primeiros cinco versos, o sujeito poético apresenta um gesto de recusa (“estou farto de”) do lirismo comedido, caracterizado por metáforas que remetem para a vida burocrática (“Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente […]”). Tal como a vida burocrática está sujeita a regras que desgastam a vida, tirando-lhe o prazer, certas construções poéticas acabam desgastadas pela rotina, porque permanecem fiéis a fórmulas inautênticas da tradição e a metáforas mortas: “protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor. / Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo”. Deste modo, a técnica substitui o talento, valoriza-se a pureza do idioma, e o lirismo torna-se subserviente às...


    A análise pode encontrar-se aqui: análise-de-poética-de-manuel-bandeira.

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Análise do poema "O cacto", de Manuel Bandeira


    Os três versos iniciais constituem uma longa comparação, assente na forma verbal «lembrava», no pretérito imperfeito do indicativo, entre os galhos contorcidos do cato e duas personagens sujeitas a uma violência extrema: a morte de um pai e dos seus filhos, triturados por serpentes, como castigo por ter profanado o templo de Apolo (episódio de Laocoonte, narrado no segundo canto da Eneida), e um avô a morre de fome com os netos na prisão da torre de Gualandi (referência ao episódio de Ugolino, narrado por Dante no canto 33 do Inferno, no nono círculo, na “Antenora”, lugar reservado aos traidores da pátria. O caso de Laocoonte foi abordado em escultura por um artista grego, o que justifica a comparação feita pelo «eu» poético. Deste modo, o cato deixa de ser uma mera planta, visto que lhe são associados os sentidos de dor, privação e injustiça.

    Laacoonte era um sacerdote de Apolo que se casou, contra a vontade do deus, e teve filhos, Antífantes e Timbreu. Quando estava a fazer um sacrifício em honra de Neptuno, Apolo enviou duas serpentes que o mataram, bem como a seus descendentes. Segundo os frígios, isto aconteceu porque Laacoonte tinha arremessado a sua lança contra o cavalo de Troia, em pleno conflito com os Gregos. Ugolino foi uma figura histórica real que viveu no século XIII, em Itália, e que se envolveu em disputas políticas entre as famílias dos Guelfos e Guibelinos. Durante esse conflito, foi traído e feito prisioneiro, juntamente com os seus filhos e netos, no interior de uma torre da cidade italiana de Pisa, em 1288, acusados de conspirar para derrubar o governo da localidade, acabando por morrer à fome. De acordo com a lenda, teria morrido após comer a carne dos seus descendentes já mortos. Esta história foi abordada no canto 33 do Inferno, de Dante.
     O quarto verso traz-nos uma nova comparação: “Evocava também o seco nordeste, carnaubais, caatingas…”. Deste modo, a planta adquire, juntamente com a imagem do sofrimento das personagens acima mencionadas, a imagem do sofrimento da região nordestina do Brasil com as suas matas de carnaúbas e as suas capoeiras ralas.
     O quinto verso apresenta, de forma direta, o que foi dito anteriormente de modo figurado: “Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excecionais.” O cato destaca-se, porque ganha novos significados e, com isso, vai-se agigantando, já que passa a conter os males que afligem os seres humanos.
     A imagem do cato abatido pelo tufão converte-se numa alegoria, ou seja, através de uma sequência de imagens que lhe foram atribuídas, adquiriu um significado novo, diferente da sua realidade vegetal: a planta passa a ser a imagem da humanidade supliciada pela dor, pela privação e pelas injustiças.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Análise do poema "Palinódia", de Manuel Bandeira


    «Palinódia» é um vocábulo que designa uma retratação poética, uma correção presente, atual, sobre algo que foi dito no passado.
    No primeiro verso, o sujeito poético alude a uma prima, no entanto esta palavra possui um significado que vai para além do sentido que lhe é geralmente atribuído. De facto, o segundo verso informa que, se se mantivesse o significado coloquial, “arruinaria em mim o conceito / De teogonias velhíssimas”. A palavra «teogonia» quer dizer “a origem dos deuses”, o que implica que a visão da “prima” está associada a um momento especial: o do nascimento de Afrodite, a deusa grega do amor.
    A segunda estrofe confirma o conteúdo da primeira, visto que o sujeito poético recorda o momento em que viu a prima a tomar banho, num inverno específico (“Naquele inverno”). Note-se que, no Nordeste do Brasil, a palavra «inverno» designa os meses da chuva, que coincidem com o verão. Essa visão parece constituir a primeira lembrança da manifestação do desejo erótico, por isso o sujeito poético associa a imagem da prima à da deusa grega. Sucede, contudo, que as atitudes da prima não condizem com as da divindade, dado que aquela visita as igrejas o que constitui um comportamento caracteristicamente cristão.
    Na terceira estrofe, o «eu» poético justifica o título do poema, porque para ele aquela imagem da prima vista na infância é agora (“Hoje”), embora percebida de outra forma: “Que não és prima só / Senão prima de prima / Prima-dona de prima / – Primeva”, ou seja, ela é a representação mítica da primeira mulher (“primeva” = prima + Eva), permanecendo na memória do sujeito poético como símbolo da descoberta do desejo erótico. Deste modo, essa imagem da prima transcende o mero parentesco para se converter em símbolo da descoberta do amor sensual. A visão da prima pode ser entendida como um acontecimento epifânico que permite ao «eu» a descoberta de significados até então ocultos na sua vida.

Análise do poema "Pensão familiar", de Manuel Bandeira


    “Pensão familiar” é um poema constituído por uma oitava e uma quintilha.
    A primeira estrofe começa por descrever a pensão. Ela, de caráter burguês, é limitada / pequena (como se depreende pelo uso do diminutivo “pensãozinha”), com um jardim, onde se destacam o gato ao sol, a tiririca, que é um tipo de mato, as boninas (margaridas) murchas ao sol, a beleza dos girassóis e as dálias, flores vistosas e sem perfume. Esta caracterização da pensão sugere que se trata de um espaço descuidado e algo abandonado, pois a erva daninha domina o canteiro, ofuscando assim a beleza dos girassóis e das dálias. A figura do gato ao sol reforça a impressão de um lugar “parado”, tranquilo, sem agitação alguma.
    Na época, as pensões eram moradias coletivas destinadas a pessoas de baixa renda que procuravam manter alguma dignidade e conforto, condizentes com as suas posses financeiras. O título revela que a pensão retratada no poema é “familiar”, isto é, dá guarida a pessoas que ganham a vida honestamente, tendo em conta que havia outras pensões que eram destinadas à prostituição. Por outro lado, de acordo com o verso 1, é uma “pensãozinha burguesa”.
    A segunda estrofe centra-se no gato, quebrando a estagnação do ambiente da primeira, dado que descreve a atividade do felino. O dinamismo da sua ação é dado pelo uso das formas verbais “faz”, “encobre”, “sai” e “vibrando” (gerúndio). Por outro lado, o comportamento do animal é natural, espontâneo e elegante aos olhos do sujeito poético.
    Além disso, o último verso enfatiza a elegância do gato: “– É a única criatura fina na pensãozinha burguesa”. Dado que a ação do felino se opõe ao descuido e à estagnação do ambiente, pode deduzir-se que o comportamento das pessoas que residem naquele espaço é artificial. Aliás, a caracterização da pensão como “familiar” (título) e “burguesa” (verso 1) realça a passividade dos seus moradores e o conformismo rotineiro que nega a beleza da vida. O comportamento do gato, de início, não parece motivo poético, como o comprova o calão “mijadinha”, contudo o contraste entre a sua ação e a neutralidade dos moradores (que nem sequer são referidos diretamente) revela a negação de uma vida marcada por valores mesquinhos que aviltam a existência e condicionam as pessoas a uma vida medíocre e conformista.

Análise do poema "O último poema", de Manuel Bandeira


    No primeiro verso, o sujeito poético manifesta o seu desejo: “Assim eu quereria o meu último poema”. De seguida, apresenta uma série de comparações que traduzem esse seu desejo. Através da primeira, o «eu» afirma que deseja a simplicidade que provém da espontaneidade, capaz de traduzir sem artifícios prévios o carinho e o afeto: “Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais”. A segunda mostra que o «eu» deseja produzir um poema que parte toda a intensidade característica da emoção sem, entretanto, resvalar para a pieguice sentimental, sobretudo a dos românticos: “que fosse ardente como um soluço sem lágrimas”. A terceira demonstra que o sujeito poético deseja produzir um poema com uma beleza discreta, incapaz de alarde, comedida a ponto de se revelar discretamente, impondo-se pela forma, sem necessidade de espraiar as suas intenções: “que tivesse a beleza das flores quase sem perfume”. A quarta indicia que o sujeito lírico almeja elaborar um poema que contenha toda a beleza e preciosidade dos sentimentos e emoções raros, mas que toda a preciosidade possa ser consumida, isto é, dissolvida por uma «chama», por um estilo simples capaz de conter, na sua simplicidade e pureza, a nobreza dos sentimentos: “A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos”. A última mostra que esse poema deveria ser capaz de conter os sentimentos mais intensos, sem, no entanto, ser sentimental, sem anunciar de forma dramática a intensidade das emoções, guardando em si o mistério que caracteriza a alma humana. 

terça-feira, 25 de julho de 2023

Análise do "Poema de finados", de Manuel Bandeira


    Ao contrário de muitas outras composições poéticas, este texto é caracterizado pela regularidade formal. Assim, é constituído por 12 versos octossílabos, distribuídos por três quadras, com rima entre o segundo e o quarto versos de cada estrofe, sendo os demais brancos ou soltos. Existe ainda rima interna nos versos 3 (“procura”/”sepulturas” – esta rima enfatiza o clima de morbidez presente no poema desde o verso inicial) e 11 (“quero”/”espero”).
    O tema do texto é a morte, mais concretamente o testemunho da perda do pai do sujeito poético, associado à sensação da morte do próprio «eu». A isto soma-se uma súplica do sujeito, órfão paterno, para que o leitor do poema tenha compaixão de si e lhe dedique uma oração. Note-se que o título se encontre no plural, pelo que não se refere “ao finado” pai, mas encadeia “pai e filho”, como se ambos estivessem “finados”, “mortos”. A palavra “finado” é o particípio do verbo «finar» e indica aquilo ou aquele que se finou, que faleceu (eufemismo).
    O primeiro verso do poema alude ao Dia de Finados: “Amanhã é dia dos mortos”. Esta é uma data da liturgia cristã, que cai oficialmente no dia 2 de novembro, posterior ao Dia de Todos os Santos, que aproxima o divino (santos) e o terreno (os mortos, a finitude).
    O culto dos mortos é um ritual muito antigo que faz parte da maior parte das religiões. Inicialmente, estava ligado aos cultos agrários e de fertilidade, dado que as pessoas criam que, como as sementes, os mortos eram sepultados com vista à sua ressurreição. No caso da Igreja Católica, o Dia de Finados foi criado como um vínculo suplementar entre os vivos e os mortos. Já no século I d.C., os cristãos rezavam pelos seus entes falecidos: visitavam os túmulos dos mártires para orar pelos que tinham morrido. Mais tarde, no século V, a Igreja passou a dedicar um dia do ano para rezar por todos os mortos, pelos quais ninguém rezava e dos quais ninguém se lembrava. No século X, a Igreja católica instituiu oficialmente o Dia de Finados e, a partir do século seguinte, os papas Silvestre II (1009), João XVII (1009) e Leão IX (1015) passaram a obrigar a comunidade a dedicar um dia aos mortos. No século XIII, esse dia passou a ser comemorado no dia 2 de novembro, porque o primeiro é a Festa de Todos os Santos. Com o passar do tempo, a celebração ultrapassou o seu traço exclusivamente religioso e passou a estar associado a um momento emocional: a saudade de quem perdeu entes queridos. Presentemente, o Dia de Finados é um dos feriados mais universais, sendo que as pessoas costumam celebrar os seus mortos levando flores aos túmulos e rezando por eles.
    O sujeito poético, através de formas verbais no imperativo na segunda pessoa do singular, dirige-se a um «tu», pedindo-lhe que vá ao cemitério e procure a sepultura do seu pai (dele, «eu» lírico), num tom confessional. A reiteração da forma verbal «vai», no imperativo, por ser idêntico à forma do verbo «ir» no presente do indicativo, suaviza a ordem e sugere um pedido.
    Neste poema, o «eu» poético procura a representação da presença do ouvinte, uma característica da língua falada. Assim, o «eu» dialoga com um «tu» implícito, propiciando um tom próximo da conversa e atenuando a distância entre o «eu» poético e o leitor. Exemplos deste diálogo são o verso 1 (“Amanhã que é dia dos mortos”) e os versos 2 a 8,onde o suposto diálogo com o interlocutor é marcado por formas verbais no imperativo (“vai”, “procura”, “leva”, “ajoelha”), através das quais o «eu» se dirige ao «tu» com uma série de ordens/pedidos. Desta forma, o sujeito poético cria um clima de cumplicidade entre ambos.
    A segunda quadra inicia-se com novo pedido do «eu» poético, através da linguagem coloquial, exemplificada pelo uso do advérbio de intensidade «bem» no verso 5: que o seu interlocutor leve rosas ao túmulo do seu pai. Este gesto de depositar flores numa sepultura corresponde ao cumprimento de um ritual católico para homenagear os que já partiram. A essa oferenda soma-se a postura / posição de humilhação reverente e religiosa (a genuflexão) e a prática da oração. No entanto, o verso seguinte introduz uma nota incomum e ilógica relativamente ao culto: a reza não se destina ao pai (morto), mas ao filho (vivo). Como se justifica este pedido, esta súplica? O filho, o «eu» poético, sofre pela ausência dos seus entes queridos mortos, nomeadamente o pai, de tal forma que a dor e a solidão que o caracterizam levam-no a desejar a morte.
    Neste contexto, o verso 8 é muito significativo: o sujeito poético, ao recorrer ao termo coloquial «precisão», mostra que a necessidade dele, do filho, é muito maior que a necessidade de oração do pai morto. A morte aplacaria o sofrimento de que padece enquanto vivo. Tudo isto, no fundo, casa com a visão cristã pessimista da existência: a vida é sofrimento e amargura. Este pessimismo é acentuado pela reiteração do pronome indefinido «nada», que representa o fim dos desejos e das expectativas em relação à vida: “Pois nada quero, nada espero”. As perdas dos entes queridos levam o sujeito poético a sentir-se só, por isso pede aos que estão de forma que se compadeçam do seu sofrimento. Ele sente essa perda como uma antecipação da sua própria morte, como uma sensação de morte em vida.
    Deste modo, a identidade do «eu» poético passa a ser a do pai morto, pois ele também se julga falecido. Relembre-se que um pai, normalmente, representa um modelo para o(s) seu(s) filho(s), além de simbolizar refúgio, proteção. Ora, sendo assim, perdê-lo é ficar só e por sua conta no mundo, desabrigado, desprotegido, caso não seja emocionalmente autónomo, como parece ser o caso do «eu» poético. Neste contexto, o último verso do poema constitui uma espécie de profissão de fé, uma completa identificação com o pai, sempre presente na sua vida.
    Para finalizar, uma última nota para o ritmo do poema, um ritmo entonacional, durativo e pausado, nomeadamente pela presença da pontuação, de que é exemplo o uso da vírgula no verso 7, que tem como efeito a criação de uma dupla leitura: o sujeito poético desdobra-se entre o «eu» e aquele do qual se fala. Um outro recurso usado pelo sujeito lírico é a chamada técnica do «feedback», cuja função é esclarecer o que o «eu» quer dizer. São exemplos deste processo os versos 3 e 4 e 7e 8.

Análise do poema "Evocação do Recife", de Manuel Bandeira


    O poema “Evocação do Recife”, de Manuel Bandeira, foi escrito em 1925 a pedido do escritor e amigo Gilberto Freyre, para representar o Recife da meninice do poeta.
    O texto, que aborda a temática da infância, é constituído por 80 versos, alternadamente longos e curtos e sem pontuação. Por outro lado, ele constitui um exemplo de revolução contra a poesia tradicional brasileira, como se pode comprovar pelo uso da linguagem simples e coloquial, pela valorização do quotidiano, do universo comum, rotineiro, habitual, recriado a partir do olhar artístico. Em várias passagens do poema, o poeta aproveita o espaço em branco da folha para dispor as palavras, trabalhando, assim, o aspeto visual do texto.
    O título, “Evocações do Recife”, antecipa o tema do poema: o resgate, através da evocação da infância vivida em Recife, capital de Pernambuco, mais concretamente a cidade que a memória do homem adulo preservou. O nome “Evocação” deriva da forma latina “evocatione”, que significa “chamar a si”, “recordar”, “relembrar”. Assim, o sujeito poético faz uma viagem no tempo que o transporta até um passado remoto, o da infância feliz, fundamental para a formação do homem adulto que rememora o passado. O sujeito lírico recorda, pois, esses momentos de felicidade com ternura, como se fosse ainda a criança que brincava na rua.

 
Abertura do poema
    Esta primeira parte do poema constitui uma espécie de prólogo, destinado a apresentar o tema que será desenvolvido: um olhar ternurento, não sobre o Recife atual, moderno, mas do passado provinciano, que ele vai evocar e celebrar – a cidade da sua infância. Para o conseguir, começa por a desmistificar para, de seguida, a particularizar através de várias imagens e impressões tiradas da memória.
    Ao «eu» poético não interessam os factos históricos presentes nos livros didáticos, mas o espaço das primeiras aventuras, das experiências amorosas, das primeiras frustrações e primeiras descobertas.
    Assim sendo, o verso inicial constitui uma espécie de chamamento do Recife, lugar da sua meninice, para, logo de seguida, explicitar, através do advérbio de negação «não» e do paralelismo semântico, aquilo que não quer evocar. Começa pela “Veneza Americana”, isto é, o lugar comum, cuja associação está relacionada com o facto de os rios Capibaribe e Beberibe estarem incorporados na paisagem da cidade de Recife, dividindo-a em três bairros, excluindo a ideia de dependência e uma imagem exterior, estrangeira. De facto, a expressão ”Veneza americana” do verso 2 constitui uma referência aos dois rios mencionados, que determinam a paisagem da cidade de Recife, dividindo-a em três bairros principais, daí esse apelido. No poena, inicialmente, o nome do curso de agua é grafado em conformidade com a norma culta (Capiberibe) e, de seguida, foi escrito segundo a fala popular (Capibaribe).
    Essa negação do que é exterior ao próprio Brasil prossegue nos versos 3 e 4: “Mauritssatd, que significa “Cidade de Maurício, é uma alusão ao período de domínio neerlandês do Recife, governado por Maurício de Nassau (“Não a Mauritssadtd dos armadores das Índias Ocidentais”). Mauritssadt era o nome dado pelo administrador neerlandês Maurício de Nassau a Recife por ocasião da invasão neerlandesa. Por seu turno, “o Recife dos Mascates” constitui uma alusão à Guerra dos Mascates, que teve lugar em Pernambuco no início do século XVIII e que envolveu os mascates, que lutavam pela independência de Recife contra os senhores o engenho de Olinda.
    O Recife que evoca não é, igualmente, “o […] que aprendi a amar depois” nem o “das revoluções libertárias”, uma alusão à Revolução Praieira, ocorrida entre 1848 e 1849, de caráter liberal, quando o povo se revoltou contra os latifundiários e os comerciantes portugueses. Neste passo, a cidade é apresentada como um espaço de transformação, representada pela presença de dois tempos verbais, traduzidos pela expressão “aprendi a amar” e pelo vocábulo “depois”.
    Essa transformação é rememorada pelo «eu» poético nos versos seguintes. No sétimo, ele refere o Recife inocente (“sem história nem literatura”), como a infância, não impregnado de «história» e sentido racional, antes um Recife de sensações, de primeiras impressões sobre o mundo, ou seja, o Recife da sua formação. A expressão “sem mais nada” não contém um sentido negativo; traduz a essência do que foi a cidade para o sujeito poético, o Recife da experiência empírica da criança e  das suas descobertas e experiências.
    O verso 9 encerra esta primeira parte, definindo o seu foco. Todos os versos anteriores, a partir do primeiro, são construídos de forma negativa, mas o nono perde esse tom: “Recife da minha infância”. OI determinante possessivo «minha» particulariza a cidade: não é uma qualquer, é a do «eu». Por outro lado, o uso da primeira pessoa do singular confere grande subjetividade a essa rememoração do espaço e do tempo da infância. O verso 10 significa que as características históricas do Recife são substituídas pelas lembranças da infância do poeta.


Exame do Recife
    Seguidamente, o sujeito poético descreve, de forma pormenorizada, os instantâneos da vida quotidiana da sua infância, como se ele estivesse, pelo fluxo da consciência, a caminhar pelas ruas da sua meninice, palco das suas inesquecíveis brincadeiras. Ao recordá-las, associa-lhes várias figuras dessa fase da sua vida: Totônio Rodrigues (sobrinho do avô do poeta), Aninha Viegas, a preta das bananas, os vendedores de rolete de cana e de amendoim, a rua da União, a rua do Sol, o rio Capibaribe, o sertãozinho de Caxangá e a casa do avô. Essa associação é feita através de formas verbais no pretérito imperfeito (“brincava”, “botava”, “tomavam”, etc.), que retratam ações passadas que se prolongam no tempo.
    Estamos parente uma espécie de crónica da infância, por meio da qual recorda o espaço (a Rua da União), as brincadeiras (“eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas”) e as figuras humanas (dona Aninha Viegas, Totônio Rodrigues, etc.). Além disso, o «eu» poético dá-nos conta de impressões rápidas, descrições subjetivas: “Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz…”. Este verso, por exemplo, constitui uma impressão, um instantâneo da memória, uma fotografia.    
    O verso 12 dá-nos conta de mais comportamentos, hábitos e relações interpessoais: “Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas”. O seguinte prossegue a crónica da infância, ainda que de forma ambígua, pois o coloquialismo “a gente” tanto pode referir-se a «eles», as crianças, como incluir o sujeito poético no grupo: “a gente”, isto é, “nós, crianças”.
    Os versos 14 a 16 continuam a recordar as brincadeiras infantis, neste caso através de formas verbais no presente (“sai”), para introduzir uma celebração e recuperar uma pluralidade de vozes: “Os meninos gritavam: / Coelho sai! / Não sai!”. A estrutura fragmentada do poema é representada pelas brincadeiras infantis (“chicote-queimado”), pelas figuras humanas que povoam o imaginário do poema (“Aninha Viegas”, “Totônio Rodrigues”) e pelas situações comuns da vida quotidiana: “cadeiras nas calçadas”, “mexericos”, “namoros”, “risadas”.
    A forma verbal «politonavam” sugere a ideia de canto em vários tons através das “vozes macias” (sinestesia), que entoam a cantiga infantil: “Roseira dá-me uma rosa / Craveiro dá-me um botão”. Os parênteses e as reticências dos versos 20 e 21 funcionam como uma espécie de aparte, introduzindo um tipo de comentário do «eu» adulto, o qual proporciona que a cantiga infantil adquira um outro significado. Assim, a rosa em botão são meninas que não envelheceram, pois morreram jovens, ao contrário do sujeito poético, que envelheceu e, agora, rememora o passado.
    Os três seguintes (22 a 24), que poderiam constituir um só, visto que estão espacialmente fragmentados, encerram o parêntesis e regressam ao passado, recordando o som de um sino ecoando pela noite (pela memória?). Desta forma, o «eu» poético funde dois planos: o objetivo (ligado à cidade) e o subjetivo (relacionado com as recordações de infância).
    A expressão coloquial “Uma pessoa grande” traduz a visão infantil do sujeito lírico de um adulto, uma pessoa mais velha. Esse adulto é Totônio Rodrigues, sobrinho do avô do poeta, uma figura muito velha. E a memória continua a fluir, centrando-se agora nos costumes da época (o fogo, o hábito de fumar) e na frustração do «eu» por não poder gozar da liberdade total dos adultos: “E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.”

 
Impressões pessoais mais marcantes
    Além das figuras humanas, também as ruas são rememoradas pelo sujeito poético, dado questão associadas a momentos de alguma felicidade. A recordação começa pela Rua da União, que é referida pela segunda vez, agora enfatizada pela presença das reticências, que sugerem o saudosismo do «eu», como se, após nomear a rua, soltasse um suspiro.
    Os nomes dos arruamentos (“União”, “Sol”, “Saudade”, “Aurora”) reforçam a ideia dos valores humanos e apontam para o princípio das coisas essenciais, não contaminadas pela “história” e, por isso, puras, essenciais. Novos parênteses, no verso 34, refletem de novo a fala do homem adulto e as suas impressões do presente, as quais configuram uma crítica e revelam o seu distanciamento da cidade do Recife, pois desconhece como está e o próprio nome, resistindo apenas a “geografia” na sua memória. Por outro lado, as ruas são associadas a gestos transgressores da infância: fumar e pescar escondido. O uso de formas verbais no infinitivo mostra que essas transgressões não são objeto de censura, antes são encarados com naturalidade, enquanto modos de descobrir o mundo.
    A memória, por vezes, é traiçoeira. Assim, o «eu» engana-se no verso 39 ao pronunciar o nome “Capiberibe”, mas logo se corrige: “Capibaribe”. O travessão indica a fala. Estas duas formas de grafar o nome do rio estão relacionadas, também, com um episódio ocorrido numa aula, quando o poeta era aluno de José Veríssimo, professor de Geografia no Ginásio Nacional de Recife. Certo dia, o professor perguntou qual era o maior rio de Pernambuco e o poeta, querendo ser o primeiro a responder, gritou “Capibaribe”, como sempre ouvira pronunciar (com «a»). O professor retorquiu-lhe de forma irónica: “Bem se vê que o senhor é um pernambucano” (pois os pernambucanos pronunciavam o nome do rio com o tal «a») e corrigiu-o: “Capiberibe”.
    São vários os exemplos do recurso à linguagem coloquial e um deles é o 41, nomeadamente pela presença da expressão “Lá longe”, que aponta, de forma imprecisa, em termos de distância, para o espaço do “sertãozinho” (atente-se no diminutivo, que, neste caso, sugere afetividade e mão tamanho/dimensão).
    O verso 42 volta a relacionar a infância à ideia de liberdade: a palha serve ao «eu» do passado como banheiro, isto é, um espaço privilegiado de liberdade. Da infância fazem parte também as brincadeiras, as cantigas de rua, as travessuras e igualmente aquilo que poderíamos chamar primeira experiência erótica, concretamente a visão de uma mulher nua a tomar banho. Este passo obedece a uma construção curiosa: a localização temporal indefinida, característica do mundo infantil – por exemplo, das lendas ou dos contos populares – (“Um dia”); a visão da “moça nuinha” (o nome «moça» a sugerir a sua juventude; o diminutivo usado para intensificar a nudez, isto é, a mulher estava muito, completamente nua); a reação intensa à visão (“Fiquei parado o coração batendo”) e a reação descontraída e divertida dela (“Ela se riu”). O nome «alumbramento» intensifica a reação do «eu» poético ao episódio, o seu deslumbramento, que pauta a descoberta do desejo, o prenúncio do crescimento e do fim da infância. O verso 51 dá-nos conta do passo seguinte no processo de aprendizagem e crescimento: o contacto físico com a mulher (“eu me deitei no colo da menina”).


O poeta mira o Brasil
    O poema está prenhe de impressões, normalmente dadas de forma fragmentária, como sucede de novo nos versos 47 e 48, a partir da rememoração das cheias causadas pelo rio. As exclamações do verso 47 (“Cheia!  As cheias!”) indiciam a impressão viva que ficou marcada na memória do «eu», a desordem e os estragos que ela causaram (o boi morto, as árvores, os destroços), ideias acentuadas pelo acumular de palavras sem conjunções a liga-las e/ou vírgulas a separá-las. Dito de outra forma, essa sucessão de vocábulos e a ausência de pontuação (verso 47) sugerem a fúria com que as águas das enchentes arrastavam as coisas e a imagem das coisas arrastadas velozmente pela água da cheia, o que permite também que o leitor visualize a cena. Dentro da fúria da natureza (verso 48), o «eu» poético contempla a intervenção humana (“ponte do trem de ferro”) e a coragem e o caráter destemido do ser humano comum (“caboclos destemidos em jangadas de bananeiras”).
    Os versos seguintes proporcionam-nos o conhecimento da cultura do estado de Pernambuco, começando pelas manifestações religiosas cristãs (“Novenas” – verso 49), seguindo-se as comemorações típicas, como as Cavalhadas. O verso 51 retoma, como vimos anteriormente, a questão da descoberta da afetividade e do desejo (“Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos”).
    O verso 54 e seguintes levam-nos de volta à Rua da União e aos elementos típicos que lhe estão associados: os frutos (as bananas), as figuras humanas (a preta que vende bananas, vestida ainda como escrava – “pano da Costa” –, os vendedores), os produtos comercializados (bananas, roletes de cana, amendoins) – as comidas típicas da região. Qual a importância destas referências? Uma nação, um povo também se define(m) pelos seus hábitos e costumes alimentares.
    Por seu turno, os pregões indiciam o prazer que o «eu» poético sentia ao ouvi-los, publicitando os ovos e o seu custo (a pataca era a moeda usada no Brasil na época), porém este passo não termina de forma eufórica, antes de forma bem melancólica. De onde vem essa melancolia? Do facto de tudo o que recorda e lhe traz uma enorme felicidade ter ocorrido “há muito tempo” (e hoje já não existe).


Consciência do homem em relação à poesia
    Entre os versos 63 e 71, a linguagem parece explodir de brasilidade, com palavras/expressões como “a gente”, “nuinha”, “midubim”, “me lembro”; com o registo de fala em “coelho sai / não sai”; com o pregão “ovos frescos e baratos / dez ovos por uma pataca”. Essa linguagem típica opõe-se à linguagem académica, retórica e artificial, a qual não exprime os valores brasileiros. Ora, é um pouco isso que se encontra entre os versos 63 e 66, que se reportam à vida da infância que não era mediada, sujeita às normas e interferências externas, como acontece com os livros e os jornais. O verso 64 e seguintes descrevem o homem comum, não subordinado aos dogmas do bom gosto dos jornais e dos livros; a fala do povo é o reflexo de uma forma singular de viver, não mais tributária do colonizador ou da Europa. A língua errada do povo é a língua certa do povo; o português lusitano e o português brasileiro separaram-se, como o mostra a sinestesia “fala gostoso”, que sugere o modo como a língua era falada pelos brasileiros: com prazer, com naturalidade, sem seguir já a sintaxe que, por causa da passagem do tempo, se afastou da dos antigos colonizadores. “É macaquear / A sintaxe lusíada”: o poeta defende a ideia de aproximar a escrita da fala do povo, “porque ele é que fala gostoso o português do Brasil”. Aqui, Manuel Bandeira retoma o projeto de Mário de Andrade sobre a necessidade de abrasileirar a língua.
    Posteriormente, o poema centra-se no «nós», isto é, nos poetas brasileiros, dos quais o «eu» faz parte, que continuam a macaquear, isto é, a imitar de forma caricata / grotesca a sintaxe portuguesa, criticando, assim, a submissão brasileira ao português de Portugal. Por outro lado, o sujeito poético revela a inocência e a ignorância da ordem do mundo que caracterizaram a sua infância, bem como a ideia de que o exterior pouco ou nada contribuiu para a sua formação. As suas raízes, com efeito, estão no Recife, com as suas ruas, cheiros, cores, fauna, flora e figuras humanas.


Lamento e reflexão sobre a passagem do tempo
    A parte final do poema mostra a consciência do «eu» de que a infância já passou, ficou no passado, porque, afinal, o tempo decorre, a vida é breve e a velhice e a morte aproximam-se. É, por isso, que ele recorda, de modo triste e melancólico, as imagens do passado: “Recife”, “Rua da União”, “A casa do meu avô”, ou seja, a cidade, a rua, a casa. De seguida, através de uma exclamação, exprime toda a sua incredulidade e melancolia pelo fim da infância: “Nunca pensei que ela acabasse!” (v. 76).
    O poema finaliza com a referência à morte do avô, à perda do Recife da sua infância, da Rua da União e da própria casa do avô, tudo perdido no tempo. O sujeito poético, mesmo que em estado de choque, está consciente da passagem do tempo e da efemeridade da vida (“Tudo lá parecia impregnado de eternidade”). O Recife morto é o da infância, cujo maior valor é o facto de ser brasileiro e autêntico, com os seus modos de viver, de agir, de alimentar e de conviver.

domingo, 23 de julho de 2023

Análise do poema "Poema tirado de uma notícia de jornal"


    Este poema foi publicado pela primeira vez no jornal “A Noite”, do Rio de Janeiro, em 1925, integrando uma espécie de crónica da vida brasileira. De facto, o poeta transforma ima notícia de um jornal, que relata a história trágica de um homem de origem humilde, e converte-a em prosa.
    A composição poética é constituída por uma única estrofe de seis versos (sextilhas), sem qualquer pontuação, alternando versos longos e curtos. Por outro lado, tem uma clara estrutura narrativa, com uma ação com início (a descida de João Gostoso do morro), desenvolvimento (a entrada de João Gostoso no bar) e conclusão (a sua morte, resultante da queda nas águas da lagoa Rodrigo de Freitas e o consequente afogamento); personagens (João Gostoso); espaço (referências ao morro da Babilónia, ao bar Vinte de Novembro e à Lagoa Rodrigo de Freitas); tempo (passado – «era», «chegou» – indefinido – “Era uma vez”, fórmula característica das narrativas tradicionais; “Uma noite”); um narrador-observador, o sujeito poético.
    O tímido é bastante longo e contrasta com o caráter reduzido do poema e, através dele, o «eu» poético estabelece uma analogia com o jornal, sugerindo uma transformação do texto poético. Ao usar o particípio passado do verbo «tirar» («tirado»), que quer dizer fazer sair de algum ponto ou lugar, o «eu» poético recria poeticamente a vida simples de um brasileiro: João Gostoso.
    A notícia focaliza uma ocorrência pontual, efémera, como, por exemplo, a morte de um simples «carregador» de feira libre, no entanto o «eu» transforma esse facto insignificante para a humanidade em assunto de um poema. Deste modo, a poesia valoriza o quotidiano, imortalizando-o.
    O primeiro verso, o mais longo do poema, descreve uma personagem, indicando (a) o nome próprio (João), (b) a alcunha (Gostoso), (c) a atividade profissional (carregador de feira livre), (d) o local onde mora (o morro da Babilónia) e (e) a residência propriamente dita (um barracão sem número). Atentemos no apelido (“Gostoso”), pois trata-se de um termo coloquiam tipicamente brasileiro, que sugere estarmos na presença de uma pessoa leviana, sedutora e malandra, mas também alguém que se julga superior. Deste modo, estamos na presença de uma alcunha que imprime uma certa comicidade à figura em questão. Mais: proveniente das camadas populares, a personagem tem uma profissão e uma morada, mas a sua vida insignificante resume-se a uma única linha do poema.
    Os espaços geográficos referidos (“morro da Babilónia”, “bar Vinte de Novembro”, “Lagoa Rodrigo de Freitas”) impõem-se à existência da personagem, ao seu isolamento e solidão, reforçando a sua insignificância no contexto da cidade do Rio de Janeiro. As suas origens humildes, a sua pobreza e a sua solidão ficam bem evidentes quando atentamos na referência a um “barracão sem número”. A ausência de um lugar preciso reforça o isolamento e a insignificância de alguém completamente à margem do olhar público. Note-se que essa ausência de uma referência a um lugar específico, concreto, contrasta ironicamente com o bar, cujo nome contém um número (Vinte de Novembro), e com a lagoa onde a personagem morre afogada, que possui nome e sobrenome (Rodrigo de Freitas). Note-se que o nome «morro» indica um espaço geográfico situado num ponto alto, longe do espaço do desenlace trágico (a lagoa). Esta alternância entre um espaço alto, outro baixo e a ideia de descida não se refere unicamente aos espaços geográficos, mas a um ponto de partida para a descida e a morte. Por seu turno, o nome próprio «Babilónia», derivado de Babel, a cidade e torre bíblicas que conotam «confusão», «balbúrdia», adquire múltiplos significados, o que não sucederia na notícia, dado o seu caráter objetivo. Por sua vez, como já vimos, a expressão “barracão sem número” marca um espaço anónimo da residência e do morador. Não se trata apenas de um barracão, mas perde-se entre os outros, o que aponta para a falta de identidade e ausência de valor da personagem em questão. No meio da multidão do morro, o ser humano perde-se, entra no bar, bebe, canta e dança.
    Todo este jogo de nomes, alcunhas, números, exclusões, serve para reforçar a insignificância da personagem. Talvez por isso, o sujeito poético parece solidarizar-se com ela e com o seu entorpecimento na cidade, ao descrever as ações desenvolvidas durante a última noite de vida, em que deambula pela cidade, bêbedo e solitário.
    João Gostoso, a personagem anónima do barracão sem número, desenvolve uma série de ações corriqueiras, num determinado tempo e vive um destino trágico: bebe, canta e dança, acabando por se suicidar na lagoa que embeleza a paisagem. Deste modo, podemos considerar que João Gostoso é o herói anónimo que sucumbe à voracidade da cidade grande. E tudo se concretiza em “Uma noite”, fórmula que marca o início da narração, localizando-a num tempo indefinido, e que nos lembra as narrativas tradicionais. Para o poeta, não são necessárias muitas palavras, métrica ou rima para compor a «tragédia»; os factos valem por si mesmos. A noite, associada à chegada ao bar, representa um momento de prazer e de libertação de um simples carregador de feira livre, morador do morro, num barracão sem número. A noite representa uma perspetiva nova que se abre para João Gostoso, não mais uma figura anónima. O ápice da libertação atinge-se no último verso: “Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogada”.
    Estamos, pois, na presença de um poema tipicamente modernista: análise crítica da sociedade e da realidade brasileiras, expressa através de uma linguagem coloquial, sucinta, em que os factos se reduzem ao essencial, como acontece numa notícia.
    A finalidade do poema não passa por marcar um acontecimento no tempo e no espaço, mas mostrar, através desse incidente trágico do quotidiano, uma metáfora do ser humano em busca da sua identidade e da sua liberdade. A vida e a morte fundem-se numa amplitude de sentidos, até porque configuram dois movimentos antagónicos, mas complementares da mesma realidade. A solidão da vida aparenta constituir apenas uma espécie de ensaio da grande solidão que atinge cada ser humano. Os movimentos de vida e morte complementam-se na busca empreendida por João Gostoso, na queda para a sua libertação. Depois de viver um momento de festa e alegria, a personagem suicida-se na lagoa. Porquê? É o fim da festa; o indivíduo liberta-se da sua vida sinistra, difícil, miserável, solitária e desumana. Esse mergulho trágico, porque leva à morte, é encarado como libertação: movimento, queda, imagem, purificação e libertação. Por outro lado, o último ato de João Gostoso está prenhe de dramatismo, por causa da sua brevidade, que aproxima, de forma seca, a rápida sequência das ações da personagem (“Bebeu / Cantou / Dançou”), na sua aparente expressão da alegria de viver, manifestada num crescendo de expansão efusiva, até ao abrupto desfecho do último verso.
    O poema constitui um olhar sobre o quotidiano de um homem comum, sobre os desprovidos de voz, o indivíduo solitário que diariamente se perde e passa despercebido nas páginas dos jornais das grandes metrópoles. Sob a capa de qualquer homem simples, há a existência de uma complexidade humana que o singulariza.
    O não-sentido da morte de João Gostoso (o lançar-se de modo fortuito, gratuito, na lagoa) ou a ”inferência” de um drama pessoal (a sua peripécia derradeira, culminando no suicídio) deixam o leitor atónito, como diante de um enigma a exigir decifração. Se é verdade que a composição poética recupera o género da notícia, não o é menos que rompe com ele ao apresentar uma espécie de esqueleto de um drama que não é desenvolvido (afinal, o texto é constituído por meros 6 versos) e que a simples menção dos atos da personagem não abarca. Deste modo, João Gostoso torna-se «imortal» ao ser convertido em poesia, e não ser apenas uma mera de nota efémera de jornal. Manuel Bandeira retira do quotidiano um incidente, uma notícia de jornal, transformando-o em algo poético.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Análise do poema "O anjo da guarda", de Manuel Bandeira


             Este poema breve, constituído por seis versos, aborda atemática da morte, neste caso ligada à biografia do poeta, pois remete para o passamento da sua irmã, Maria Cândida de Sousa Bandeira, que foi sua enfermeira desde o final de 1904, quando ele ficou doente dos pulmões, e faleceu em 1918. Ela, de acordo com o título e o terceiro verso, foi o seu «anjo da guarda».

            Note-se, porém, que a abordagem do tema da morte é feita de forma comedida. Em versos livres e brancos, o «eu» poético exprime o seu apelo pela irmã, apelidando-a de anjo.

            No primeiro verso (“Quando a minha irmã morreu”), seguido de outro entre parênteses [“(Devia ter sido assim”), o sujeito poético apresenta a sua hipótese sobre a morte da irmã: “Um anjo moreno, violento e bom / brasileiro” veio guardá-lo, veio cuidar dele e, de seguida, “voltou para junto do Senhor”, ou seja, morreu.

            O adjetivo “brasileiro” é destacado no poema, sendo disposto mais à direita e aproveitando criativamente o espaço em branco da folha, possibilitando assim sugerir a descida do anjo, que “veio ficar ao pé de mim”. A imagem da figura angelical é brasileira; o anjo é “moreno, violento e bom”. Estes dois últimos adjetivos constituem um paradoxo, dado que aproximam dois conceitos contrários. No entanto, eles irmanam-se, dado que “violento e bom”, ligados pela conjunção coordenativa copulativa «e», realçam a forma como o «anjo» impõe os seus cuidados. Por outro lado, é possível associar a imagem do anjo à forma dedicada e intensa (violenta) como a irmã se dedicava a cuidar do sujeito poético. De seguida, o sorriso do «anjo» tranquiliza-o, pois anuncia a sua ascensão, isto é, a imagem da irmã funde-se com a do anjo, que sobe em direção a Deus.

Análise do poema "Pneumotórax", de Manuel Bandeira


             Este poema pode dividir-se em três partes. Na primeira, constituída pelos três primeiros versos, descreve-se a agonia de um tuberculoso, que, em face do seu sofrimento, lamenta toda a vida que não pôde viver (“A vida inteira que podia ter sido e que não foi.”). O terceiro verso, formado pela repetição três vezes da forma verbal «tosse», reitera as dificuldades de respiração e a razão do acesso de tosse.

            Na segunda parte, formada pelos versos 4 a 7, encontramos o exame médico, destacando-se as dificuldades respiratórias do paciente, indiciadas pela aliteração do som /t/ e pela linha pontilhada que sucede ao verso 7.

            Na terceira parte, entre os versos 8 e 10, o médico apresenta o diagnóstico ao doente: “– O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo / e o pulmão direito infiltrado”. O paciente deposita toda a sua esperança de cura num tratamento: “– Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?” A resposta do médico é irónica de brutal: qualquer tratamento será inútil. E, eufemisticamente, diz-lhe para “… tocar um tanto argentino”. Ou seja, o clínico está a dizer-lhe que não há qualquer esperança de cura para a sua doença. E porquê a alusão a um tango argentino? Este era a música das tragédias. Assim sendo, o diagnóstico sentencioso do médico é, simultaneamente, irónico e eufemístico, visto que anuncia de forma indireta e até sarcástica a iminência da morte do paciente.

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