● Género textual: cantiga de amor
→
composição cujo sujeito poético é masculino (o trovador), que faz o panegírico
(o elogio) da “senhor”, uma dama geralmente casada.
● Resumo
O
trovador declara que vai fazer «agora» uma cantiga de amor à maneira dos
provençais, dando a entender que, até então, tinha composto muitas cantigas de
amigo, sendo que decidiu produzir, no presente, um cantar à maneira dos poetas
provençais.
Assim,
elogia muito a sua «senhor», à qual não falta todo o «valor ou formosura ou
bondade»; mais do que isso, Deus fê-la tão «completa de virtudes» que é mais
valiosa do que «todas as do mundo».
Deste
modo, segue os lugares-comuns da época e do género, pelo que, na segunda estrofe,
prossegue o panegírico da dama: é muito sociável, quando é precisos sê-lo, e
muita sensata/ajuizada; em suma, é a melhor de todas (“quando non quis que lh’outra
foss’igual”).
Na
terceira estrofe, a «senhor» é apresentada como uma projeção platónica do Bem,
do Belo e da Virtude: até a afalar e a rir sobreleva as demais damas; além
disso, é leal. O trovador conclui que desconhece quem possa ter eloquência
bastante para falar suficientemente das suas qualidades, até porque, além
daquilo que é só «ben», não há nada mais que dela possa ser dito.
● Assunto:
o trovador manifesta o seu desejo de fazer agora
uma cantiga de amor à maneira provençal, onde possa louvar a sua senhora, a
quem não falta virtude nenhuma, pois Deus a criou mais dotada de qualidades
(físicas e sobretudo morais) que todas as mulheres do mundo.
● Tema:
o panegírico da mulher ® ideal
(elogio) ® inacessível
® perfeita
® divinizada
(deusa)
● Estrutura interna
• 1.ª parte (1.ª cobla):
o sujeito poético revela a sua intenção / o seu objetivo («fazer agora um
cantar d’amor»).
NOTA:
|
1)
O verso 1 denota a influência dos cantares da Provença na lírica
galaico-portuguesa. A influência dessa estética encontra-se nos seguintes aspetos:
® o uso da
mestria;
® a idealização
da mulher como a melhor de todas;
® a enumeração
das qualidades da dama;
® o amor cortês.
●
2.ª parte (2.ª-3.ª coblas) -
Caracterização da Senhora (objeto):
•
física:
-
formosa: «fremusura»
-
bela: «beldade»
-
sorriso bonito: «riir melhor / que outra mulher»
•
psicológica e moral:
- bondosa / generosa: «bondade»
- sábia: «sabedor de todo ben»
- perfeita: «comprida de ben»
- sensata / ajuizada: «bon sem»
- leal
• social:
- honrada /
possuidora de grande valor: «prez»
- «de mui
gran valor»
- possuidora de
boas maneiras / muito sociável: «mui comunal»
- «falar mui ben
e riir melhor»
Em síntese, estamos perante um retrato
essencialmente psicológico: todas as
características se orientam para a caracterização da alma, do espírito da
senhora; que aponta para o retrato da mulher
idealizada.
Por outro lado, e atendendo à cantiga
"Proençaes soen mui ben trobar", na qual D. Dinis denuncia o
fingimento dos trovadores provençais, relacionando-a com esta cantiga,
concluímos que ele também sabe trovar à maneira provençal e fá-lo de forma
apreciável, demonstrando conhecer bem a técnica provençal e os seus artifícios
poéticos, chegando mesmo a socorrer-se de termos provençais ("prez").
De facto, esta cantiga é quase um manifesto poético dos cantares de amor
provençais. O próprio D. Dinis não deixa lugar a dúvidas ao afirmar logo nos
versos iniciais:
"Quer'
eu en maneira de proençal
fazer
agora um cantar d' amor".
● Conceção do amor e da mulher
A mulher das cantigas de amor é uma
mulher criada pela imaginação do poeta, distante da vida e da realidade,
inacessível, a mulher-deusa. Ela é perfeita a todos os níveis, o que a coloca
num plano superior, tornando-se inacessível ao sujeito poético, o que lhe causa
sofrimento.
Pelo contrário, a donzela das cantigas
de amigo é uma rapariga real, simples, popular, do campo, movida por um amor
real e sincero.
Ao invés, na poesia de influência
provençal, o que há é um amor-adoração, ao sabor do idealismo platónico.
Podemos classificá-lo como artificial ou artificioso, pois ele é apenas a força
ideal que alimenta a inspiração do poeta.
A mulher retratada nesta cantiga é idealizada, dentro de uma visão
platónica do amor. É uma mulher vista de longe, construída pela imaginação do
poeta, é uma deusa intocável a quem
o trovador rende a sua homenagem, a sua vassalagem.
A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma
ideia pura. O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende
à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.
● Relação entre o
sujeito poético e a mulher (amada)
Moldada
pela relação feudal entre senhor/suserano e vassalo, na cantiga de amor há um
grande distanciamento entre o sujeito poético / trovador e a mulher amada. Esta
é a suserana e o trovador é o vassalo, o qual celebra as qualidades
inexcedíveis da senhora, com toda a devoção e lealdade, segundo as regras do
código do amor cortês.
● Recursos poético-estilísticos
1. Nível
fónico
. Estrofes:
três coplas uníssonas, isométricas, constituídas por 7 versos.
.
Rima - abbacca;
-
emparelhada e interpolada;
-
consoante;
-
pobre ("amor"/"senhor") e rica
("mal"/"leal";
-
aguda ou masculina.
. Metro:
versos decassílabos agudos.
. Ritmo
binário.
. Transporte:
vv. 1-2, 6-7, 8-9, 18-19, 19-20.
. Refrão:
esta cantiga não possui refrão, como sucedia com muitas de amigo, porém
os dois versos finais de cada estrofe, nomeadamente das duas primeiras,
funcionam como se o fossem pela posição e pela repetição de ideias. De facto,
esses versos servem para realçar o quão perfeita e ímpar é esta mulher.
2. Nível
morfossintático
.
Adjetivação (vv. 6, 9,
11, 18):
estão na base do retrato da senhora e são essencialmente de ordem psicológica,
pois o objetivo do trovador é fazer realçar as características morais e
psicológicas da Senhora.
. Nomes:
- proençal:
determina a origem e influência em Portugal das cantigas de amor;
- Deus:
caracteriza a mulher como ideal e perfeita, pois todas as suas qualidades
têm origem em Deus;
- ben:
significa que a mulher é um ideal, que possui as qualidades supremas concedidas
a um ser.
.
Advérbio agora:
pressupõe um passado poético de D. Dinis, que é cantiga de amigo, género que o
rei-poeta também cultivou.
.
Equilíbrio
entre a coordenação e a subordinação: equilíbrio entre a
expressão de sentimentos e o tom narrativo.
. Verbos:
®
pretérito perfeito: a caracterização
da Senhora, que recebeu de Deus só qualidades;
® presente: a intenção de fazer uma
cantiga de amor;
® futuro: o tema da cantiga ® louvar a Senhora.
.
Orações causais, temporais e consecutivas: indiciam um maior cuidado na elaboração do discurso;
as orações subordinadas causais das segunda e terceira estrofes
estabelecem um nexo de causalidade em relação à primeira estrofe, pois aquelas
coblas funcionam como justificação do propósito da cantiga.
.
Conjunção subordinativa «ca»: esta cantiga de amor, à semelhança de outras,
apresenta inicialmente uma ideia que tem de ser justificada no resto da
composição. Neste caso, o trovador afirma que a mulher que vai louvar é única e
termina mesmo a primeira cobla constatando que Deus criou uma mulher perfeita
que «mais que todas las do mundo val». A estrofe seguinte (bem como a terceira)
inicia-se com a conjunção subordinativa causal «ca» (v. 8), que introduz
a “listagem” das qualidades da «senhor» que comprovam a afirmação final da
primeira cobla. A progressão do texto nas cantigas de amor segue frequentemente
esta linha de desenvolvimento.
. Linguagem
embutida de provençalismos: sen
(senso), prez, comprida de ben,
loor.
.
Polissíndeto: explicita o entusiasmo e o
deslumbramento do sujeito lírico, bem como destaca, por acumulação, o conjunto
de qualidades da mulher amada.
. Poliptoto:
o jogo com as formas do verbo "fazer".
. Sinonímia:
«fremosura» / «beldade»; «comprida de ben» / «sabedor de todo ben e de mui gran
valor», etc.
3. Nível
semântico
.
Hipérboles: o sujeito exalta a sua "dona", faz o seu
panegírico, da mulher que excede todas as outras: "mais que todas no mundo
val"; "ca non há, trálo seu ben al", “quando non quis que lh’outra
foss’igual” →
ninguém a excede nas suas qualidades; nenhuma se lhe compara; ou seja, a dama é
colocada num plano de superioridade relativamente ao trovador.
.
Comparações: encarecem e superlativam a mulher, louvando-a,
colocando-a num pedestal onde se revela superior às outras → "tanto a fez Deus
comprida de bem / que mais que todas las do mundo val"; "e rir melhor
/ que outra mulher".
●
Classificação
1.
Cantiga de amor: composição poética de carácter lírico,
cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação
a uma dama frequentemente designada por "mha senhor".
O poeta elogia e louva as qualidades
invulgares e singulares da mulher amada a nível físico, moral, psicológico e
social, de forma hiperbólica, seguindo o modelo provençal.
1.1. Formal:
-
cantiga de mestria (= sem refrão);
-
cantiga de atafinda.
A Provença, pelo seu clima ameno,
favorece a caça e as cruzadas, o que faz com que o nobre passe muito tempo fora
do castelo. É uma sociedade matriarcal: a castelã é que tinha a seu cargo o
controle político, social e económico; é a senhora no seu feudo. Daí ser
natural que os trovadores procurem conquistar benefícios e benesses da
"senhor".
O trovador acaba por transpor para o
plano amoroso uma situação do plano social:
As cantigas de amor tratam sempre o
tema do amor em duas vertentes:
- o trovador exprime o seu amor
arrebatador, mas sempre de forma espiritualizada, ainda que sofra da coita de
amor;
- o elogio da mulher amada.
Nestas cantigas, o trovador dirige-se à
"senhor" numa atitude de vassalagem
e subserviência, rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe
impunha. Este serviço amoroso orientava-se por um código rígido de
comportamento ético: as regras do amor cortês, que vêm na linha da poética da
"fin' amors", recebidas da Provença.
Assim, e de acordo com este código:
* o trovador teria de mencionar
comedidamente o seu sentimento (mesura),
a fim de não incorrer no desagrado (sanha)
da mulher amada;
* o trovador teria que ocultar o nome
dela ou recorrer a um pseudónimo (senha);
* o trovador tinha que prestar à amada
uma vassalagem que apresentava 4 fases:
® fenhedor: o trovador limitava-se a
suspirar pelo amor da sua dama;
® precador: o trovador ousava declarar-se;
® entendedor: o trovador já era ouvido
pela dona;
® drudo: o trovador era amante.