Português: 05/11/20

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Análise de "Quer'eu en maneira de proençal"

Género textual: cantiga de amor composição cujo sujeito poético é masculino (o trovador), que faz o panegírico (o elogio) da “senhor”, uma dama geralmente casada.
 
 
Resumo
 
O trovador declara que vai fazer «agora» uma cantiga de amor à maneira dos provençais, dando a entender que, até então, tinha composto muitas cantigas de amigo, sendo que decidiu produzir, no presente, um cantar à maneira dos poetas provençais.
Assim, elogia muito a sua «senhor», à qual não falta todo o «valor ou formosura ou bondade»; mais do que isso, Deus fê-la tão «completa de virtudes» que é mais valiosa do que «todas as do mundo».
Deste modo, segue os lugares-comuns da época e do género, pelo que, na segunda estrofe, prossegue o panegírico da dama: é muito sociável, quando é precisos sê-lo, e muita sensata/ajuizada; em suma, é a melhor de todas (“quando non quis que lh’outra foss’igual”).
Na terceira estrofe, a «senhor» é apresentada como uma projeção platónica do Bem, do Belo e da Virtude: até a afalar e a rir sobreleva as demais damas; além disso, é leal. O trovador conclui que desconhece quem possa ter eloquência bastante para falar suficientemente das suas qualidades, até porque, além daquilo que é só «ben», não há nada mais que dela possa ser dito.
 
 
Assunto: o trovador manifesta o seu desejo de fazer agora uma cantiga de amor à maneira provençal, onde possa louvar a sua senhora, a quem não falta virtude nenhuma, pois Deus a criou mais dotada de qualidades (físicas e sobretudo morais) que todas as mulheres do mundo.
 
 
Tema: o panegírico da mulher       ® ideal
(elogio)                         ® inacessível
® perfeita
® divinizada (deusa)
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (1.ª cobla): o sujeito poético revela a sua intenção / o seu objetivo («fazer agora um cantar d’amor»).

 
NOTA:
 
1) O verso 1 denota a influência dos cantares da Provença na lírica galaico-portuguesa. A influência dessa estética encontra-se nos seguintes aspetos:
® o uso da mestria;
® a idealização da mulher como a melhor de todas;
® a enumeração das qualidades da dama;
® o amor cortês.
 
 
2.ª parte (2.ª-3.ª coblas) - Caracterização da Senhora (objeto):
 
física:
- formosa: «fremusura»
- bela: «beldade»
- sorriso bonito: «riir melhor / que outra mulher»
 
psicológica e moral:
- bondosa / generosa: «bondade»
- sábia: «sabedor de todo ben»
- perfeita: «comprida de ben»
- sensata / ajuizada: «bon sem»
- leal
 
social:
- honrada / possuidora de grande valor: «prez»
- «de mui gran valor»
- possuidora de boas maneiras / muito sociável: «mui comunal»
- «falar mui ben e riir melhor»
 
         Em síntese, estamos perante um retrato essencialmente psicológico: todas as características se orientam para a caracterização da alma, do espírito da senhora; que aponta para o retrato da mulher idealizada.
 
         Por outro lado, e atendendo à cantiga "Proençaes soen mui ben trobar", na qual D. Dinis denuncia o fingimento dos trovadores provençais, relacionando-a com esta cantiga, concluímos que ele também sabe trovar à maneira provençal e fá-lo de forma apreciável, demonstrando conhecer bem a técnica provençal e os seus artifícios poéticos, chegando mesmo a socorrer-se de termos provençais ("prez"). De facto, esta cantiga é quase um manifesto poético dos cantares de amor provençais. O próprio D. Dinis não deixa lugar a dúvidas ao afirmar logo nos versos iniciais:
"Quer' eu en maneira de proençal
fazer agora um cantar d' amor".
 
 
Conceção do amor e da mulher
 
         A mulher das cantigas de amor é uma mulher criada pela imaginação do poeta, distante da vida e da realidade, inacessível, a mulher-deusa. Ela é perfeita a todos os níveis, o que a coloca num plano superior, tornando-se inacessível ao sujeito poético, o que lhe causa sofrimento.
         Pelo contrário, a donzela das cantigas de amigo é uma rapariga real, simples, popular, do campo, movida por um amor real e sincero.
         Ao invés, na poesia de influência provençal, o que há é um amor-adoração, ao sabor do idealismo platónico. Podemos classificá-lo como artificial ou artificioso, pois ele é apenas a força ideal que alimenta a inspiração do poeta.
         A mulher retratada nesta cantiga é idealizada, dentro de uma visão platónica do amor. É uma mulher vista de longe, construída pela imaginação do poeta, é uma deusa intocável a quem o trovador rende a sua homenagem, a sua vassalagem. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. O amor cortês apresenta-se como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.
 
 
Relação entre o sujeito poético e a mulher (amada)
 
Moldada pela relação feudal entre senhor/suserano e vassalo, na cantiga de amor há um grande distanciamento entre o sujeito poético / trovador e a mulher amada. Esta é a suserana e o trovador é o vassalo, o qual celebra as qualidades inexcedíveis da senhora, com toda a devoção e lealdade, segundo as regras do código do amor cortês.
 
 
Recursos poético-estilísticos
 
         1. Nível fónico
 
. Estrofes: três coplas uníssonas, isométricas, constituídas por 7 versos.
. Rima  - abbacca;
- emparelhada e interpolada;
- consoante;
- pobre ("amor"/"senhor") e rica ("mal"/"leal";
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos agudos.
. Ritmo binário.
. Transporte: vv. 1-2, 6-7, 8-9, 18-19, 19-20.
. Refrão: esta cantiga não possui refrão, como sucedia com muitas de amigo, porém os dois versos finais de cada estrofe, nomeadamente das duas primeiras, funcionam como se o fossem pela posição e pela repetição de ideias. De facto, esses versos servem para realçar o quão perfeita e ímpar é esta mulher.
 
 
         2. Nível morfossintático
 
. Adjetivação (vv. 6, 9, 11, 18): estão na base do retrato da senhora e são essencialmente de ordem psicológica, pois o objetivo do trovador é fazer realçar as características morais e psicológicas da Senhora.
. Nomes:
- proençal: determina a origem e influência em Portugal das cantigas de amor;
- Deus: caracteriza a mulher como ideal e perfeita, pois todas as suas qualidades têm origem em Deus;
- ben: significa que a mulher é um ideal, que possui as qualidades supremas concedidas a um ser.
. Advérbio agora: pressupõe um passado poético de D. Dinis, que é cantiga de amigo, género que o rei-poeta também cultivou.
. Equilíbrio entre a coordenação e a subordinação: equilíbrio entre a expressão de sentimentos e o tom narrativo.
. Verbos:
® pretérito perfeito: a caracterização da Senhora, que recebeu de Deus só qualidades;
® presente: a intenção de fazer uma cantiga de amor;
® futuro: o tema da cantiga ® louvar a Senhora.
. Orações causais, temporais e consecutivas: indiciam um maior cuidado na elaboração do discurso; as orações subordinadas causais das segunda e terceira estrofes estabelecem um nexo de causalidade em relação à primeira estrofe, pois aquelas coblas funcionam como justificação do propósito da cantiga.
. Conjunção subordinativa «ca»: esta cantiga de amor, à semelhança de outras, apresenta inicialmente uma ideia que tem de ser justificada no resto da composição. Neste caso, o trovador afirma que a mulher que vai louvar é única e termina mesmo a primeira cobla constatando que Deus criou uma mulher perfeita que «mais que todas las do mundo val». A estrofe seguinte (bem como a terceira) inicia-se com a conjunção subordinativa causal «ca» (v. 8), que introduz a “listagem” das qualidades da «senhor» que comprovam a afirmação final da primeira cobla. A progressão do texto nas cantigas de amor segue frequentemente esta linha de desenvolvimento.
. Linguagem embutida de provençalismos: sen (senso), prez, comprida de ben, loor.
. Polissíndeto: explicita o entusiasmo e o deslumbramento do sujeito lírico, bem como destaca, por acumulação, o conjunto de qualidades da mulher amada.
. Poliptoto: o jogo com as formas do verbo "fazer".
. Sinonímia: «fremosura» / «beldade»; «comprida de ben» / «sabedor de todo ben e de mui gran valor», etc.
 
 
         3. Nível semântico
 
. Hipérboles: o sujeito exalta a sua "dona", faz o seu panegírico, da mulher que excede todas as outras: "mais que todas no mundo val"; "ca non há, trálo seu ben al", “quando non quis que lh’outra foss’igual” ninguém a excede nas suas qualidades; nenhuma se lhe compara; ou seja, a dama é colocada num plano de superioridade relativamente ao trovador.
. Comparações: encarecem e superlativam a mulher, louvando-a, colocando-a num pedestal onde se revela superior às outras "tanto a fez Deus comprida de bem / que mais que todas las do mundo val"; "e rir melhor / que outra mulher".
 
 
Classificação
 
1. Cantiga de amor: composição poética de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama frequentemente designada por "mha senhor".
         O poeta elogia e louva as qualidades invulgares e singulares da mulher amada a nível físico, moral, psicológico e social, de forma hiperbólica, seguindo o modelo provençal.
 
1.1. Formal:
- cantiga de mestria (= sem refrão);
- cantiga de atafinda.
 
         A Provença, pelo seu clima ameno, favorece a caça e as cruzadas, o que faz com que o nobre passe muito tempo fora do castelo. É uma sociedade matriarcal: a castelã é que tinha a seu cargo o controle político, social e económico; é a senhora no seu feudo. Daí ser natural que os trovadores procurem conquistar benefícios e benesses da "senhor".
         O trovador acaba por transpor para o plano amoroso uma situação do plano social:
 
 
         As cantigas de amor tratam sempre o tema do amor em duas vertentes:
- o trovador exprime o seu amor arrebatador, mas sempre de forma espiritualizada, ainda que sofra da coita de amor;
- o elogio da mulher amada.
         Nestas cantigas, o trovador dirige-se à "senhor" numa atitude de vassalagem e subserviência, rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. Este serviço amoroso orientava-se por um código rígido de comportamento ético: as regras do amor cortês, que vêm na linha da poética da "fin' amors", recebidas da Provença.
         Assim, e de acordo com este código:
* o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da mulher amada;
* o trovador teria que ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha);
* o trovador tinha que prestar à amada uma vassalagem que apresentava 4 fases:
® fenhedor: o trovador limitava-se a suspirar pelo amor da sua dama;
® precador: o trovador ousava declarar-se;
® entendedor: o trovador já era ouvido pela dona;
® drudo: o trovador era amante.
 

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