Português: 12/08/19

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Delimitação da ação de A Sibila

            Narrativa fechada:
-» Quina, a protagonista, morreu;
-» Germa, encarregada de continuar as tradições familiares, pressente uma grande dificuldade, ou quase impossibilidade, de cumprir a sua missão, sobretudo no que ela tem de legado espiritual;
-» relativamente ao legado material, a casa da Vessada aparece, no final, já em ruínas após a morte de Quina;
-» os membros da família foram morrendo, restando apenas Germa e a sua difícil missão.

            Narrativa aberta:
-» ao concluir-se esta narrativa, podemos imaginar o início de uma nova narrativa, onde Germa e o seu tempo se revelarão: "Eis Germa, eis a sua vez agora e o tempo de traduzir a voz da sua sibila..." (p. 249).

Estacionamento para mortos


Ações secundárias de A Sibila

            A obra aparece-nos como um conjunto de histórias que se vão acumulando, narradas por alguém que só diz delas o que quer e quando quer. A ação central é continuamente interrompida por uma série de pequenas histórias narradas pelo narrador omnisciente, que servem para caracterizar ambientes e personagens. Estas pequenas histórias surgem desordenadamente, frequentemente fora da sequência lógica do tempo, não se vislumbrando uma estruturação lógica da intriga. A grande atenção da narradora está em transmitir o pormenor quer da paisagem, quer do aspeto e atuação das personagens (seu vestuário, seu modo de vida, suas reações somáticas) de modo a captar o seu universo psicológico. Daí o facto de muitas delas serem interrompidas para voltarem a ser retomadas posteriormente.

            Uma das formas de agrupar as várias ações secundárias é com base na sua funcionalidade.

            a) Ações que se relacionam com Quina, personagem central, desvendando as suas características psicológicas e as suas relações com os outros:

            "Quina tornou-se, então, dum grande interesse para ela, e mandou chamá-la. (...)
            - Ora viva a Sibila! - disse, com mais riso na voz do que nos lábios. (...) Dirigiu-se a Quina como se se tratasse duma velha amiga perante a qual as cerimónias nem lembram e são supérfluas.
            - É maluquice minha, mas eu queria que me dissesse uma coisa: se alguém a ofendesse muito, perdoava, retribuía ou esquecia?
            - Perdoava a uma criança, retribuía a uma mulher; tratando-se de um homem, esquecia.
            - Ah! - Com um certo pasmo, a condessa fitou Quina. Começava a respeitá-la, antes mesmo de a ter entendido.
            - Acha então?! (...)
            - Ah, Joaquina Augusta - disse ela dando-se à canseira de se fingir pensativa -, haverá muita gente assim, pelo mundo? É que diz palavras de iluminada, como se só contasse um chiste.
            - Doutra maneira, quem me ouvia?" (pp. 76-77)


            b) Ações que se relacionam com as personagens secundárias, mostrando a sua caracterização psicológica e o seu comportamento e relacionamento:

            "- Ela já morreu - dizia. - Antes de hoje e há muito tempo que ela estava morta. Já a pariste morta, porque as tuas entranhas são amaldiçoadas. Quando viste os teus filhos estendidos numa tábua em cima da cama, não choraste uma lágrima que enchesse um dedal; porque também tu estás morta, e os teus frutos são uma desgraça. (...)
            Tossia e gritava, e as patadas das tuas botas reboavam pela casa. - Se a menina não aparecer, se ela não vier ter aqui, trazida pelos anjos e pelos diabos, e sem que um pico de tojo lhe tenha arranhado a pele, abro uma cova no quinteiro e enterro-te lá. Ouves?
            - Ela não torna a aparecer - disse Estina, debilmente. (...)
            - Não? - E ele vacilou na sua cólera." (p. 117)


            c) Ações que nos fornecem imagens do ambiente social onde se insere a protagonista:

            " Porque acontecera ser o sétimo rapaz duma família, fora batizado com o nome de Adão, para evitar assim o correr do fado, ou seja, ficar condenado a vadiar de noite, transformado em bácoro, ou cavalo, ou bode, ou toiro, em cujo rasto espolinhado se espojasse. Ah, e então apenas uma labareda, à meia-noite, consumindo-lhe as roupas que abandonou, um espinho ou um chuço ferindo o bicho que corre desabaladamente pelos atalhos, podem quebrar o encanto! Melhor é chamar, pois, Eva às quintas ou sétimas filhas e que Adão sejam os infantes todos que venham perfazer esses fatídicos números." (p. 40)


            d) Ações que contêm elementos temáticos que constituem o substrato ideológico da obra:

            "- Olha que o teu homem dorme com essa moça - prevenira Narcisa Soqueira, avisada como era em intrigas de harém provinciano. (...)
            - Cantês! - disse Maria, com a sua secura habitual. (...)
            Uma tarde, não muito depois disto, quando a merenda já fora servida e a moça se preparava para arrumar as camas que às vezes até à noite se faziam, Maria despediu-a também para o campo. Fazia muito calor. A sala, que era ao mesmo tempo quarto de dormir, tinha aberta as portadas da varanda. Da eira subiam cepas que tinham ganho corcovas, o jeito dos ferros que enlaçavam. Foi um desses pés de videira, cuja casca, já velha, desfibrava, que Francisco usou para trepar, disposto a representar com rigor a cena do balcão. Maria que, inclinada sobre a cama, lançava a ponta da coberta contra a parede, sentiu-se abraçada pela cintura; umas suíças loiras roçavam-lhe o rosto. Ela endireitou-se sem muita pressa, disse, com uma indiferença que era como uma chicotada:
            - Como te enganaste!" (pp. 34-35)

Ação central de 'A Sibilia'

            A ação central é constituída pela longa retrospetiva da vida de Quina, tia de Germa, a partir do momento em que, baloiçando-se na velha "rocking-chair", a recorda com saudade e alguma nostalgia, e começa e termina no mesmo espaço (a casa da Vessada), com as mesmas personagens em diálogo (Germa e Bernardo Sanches).
            A ação central gira, pois, à volta de Quina, iniciando-se no momento em que se dá origem à sua evocação por Germa e termina na altura em que, cerca de oitenta anos depois, se regressa ao tempo da evocação. Por arrastamento, dela fazem parte os membros de sua família. O primeiro plano da intriga é ocupado pela protagonista e sua família. A história de Quina é, logo de início, substituída pelo relato das vidas de Maria da Encarnação e Francisco Teixeira, suas aventuras e desventuras, com inúmeras divagações e comentários sobre o lugar da mulher na família e na sociedade e os efeitos nefastos da existência do homem. E a história das relações de Maria e Francisco Teixeira é muito importante para a compreensão do comportamento de Quina: o seu desprezo pelos homens, a sua frustração amorosa e compensação psicológica pelo poder económico e domínio dos outros. As relações da família ocupam, pois, um lugar determinante na obra. Mas também o peso do dinheiro e da propriedade têm grande relevo.
            O narrador dá saltos no tempo, utiliza o resumo, não se preocupa com a estruturação sólida da intriga, pois o importante é o contar e a atenção ao pormenor (da paisagem, do vestuário, da aparência física ou duma reação somática). Há, ocasionalmente, alusões ao envelhecimento progressivo de Quina, mas o leitor não assiste ao processo de evolução da protagonista). A inexistência de uma intriga bem estruturada permite um discurso digressivo. Ainda assim, é possível distinguirem-se alguns núcleos de ação que se organizam em torno de dois eixos: o da conquista do poder material e espiritual e o da análise introspetiva da sua alma, na relação com os outros e com os objetos:
            A recordação da vida de Quina é frequentemente interrompida por cortes e digressões suscitadas pela necessidade de recriação de ambientes e costumes e enquadramento de figuras e controlada por um narrador omnisciente, cujo ponto de vista profundamente irónico e devastador confere a todas as personagens e aos ambientes evocados uma feição negativa. Esta tendência para a digressão e reconstituição de ambientes faz com que a protagonista seja muitas vezes substituída por personagens e acontecimentos secundários relacionados com ela e com o grupo e o modo de vida em que ela se move. De tal modo que poderíamos dizer que o romance é, antes de mais, a história de uma família rural desde, pelo menos, o último quartel do século XIX. A partir da segunda metade deste século, começa a notar-se uma evolução da sociedade rural, no sentido de uma culturização da sua burguesia que, pela ameaça ao equilíbrio de um cosmos restrito, merece a reação conservadora de Quina, representativa de um superior estado de espiritualidade, de poder e prestígio sociais.

As Misteriosas Cidades de Ouro - Episódio 6: "O navio Solaris"

O título A Sibila

            As sibilas eram videntes antigas, provenientes da Ásia Menor e existentes na Grécia desde a época arcaica. A princípio existiria só uma, que se foi multiplicando e recebendo nomes conforme os lugares.
            Na Grécia, a mais célebre é a do templo de Apolo, em Delfos. Este santuário torna-se importante a partir do século VIII a.C. Os escritores e filósofos importantes da Grécia antiga falam dos oráculos de Apolo. As respostas eram dadas pela Pétia; depois de ter feito fumigações de louro e de cevada e bebido água da fonte de Cassótis, recebia as emanações sulfurosas provindas de uma fenda existente no coração do templo, entrava em delírio, proferindo assim as palavras enigmáticas que iriam orientar as ações dos que as consultavam. Vivia só e em castidade. Guardava a casa do seu deus, mantendo acesa a chama do seu culto. Na sua solidão, recebia a inquietação dos homens e transmitia o recado dos deuses. Ouvindo as preocupações, os problemas, as angústias, os segredos da vida humana, alcançava a capacidade de entender o mistério da existência.
            Na Itália, a mais famosa é a Sibila de Cumas. É esta que acompanha Eneias aos infernos, no canto VI da Eneida, e lhe prediz o futuro. A Sibila de Cumas é uma das cinco, pintadas por Miguel Ângelo em alternância com os Profetas, no teto da Capela Sistina.
            O título do romance terá sido escolhido, tendo como ponto de referência a vida da Sibila de Delfos e os seus oráculos.
            Esse título não está exatamente em conformidade com o desenrolar da intriga. Com efeito, o signo "sibila" aponta para as capacidades espirituais da protagonista, quando, afinal, o que a intriga nos revela é uma Quina excecionalmente dotada para manter e aumentar o património familiar. São raras e débeis as suas demonstrações sobrenaturais e as suas capacidades divinatórias. Por exemplo, no caso do desaparecimento da filha louca de Estina, a sua concentração e as rezas são impotentes para resolver a situação que vem a ter um trágico desenlace. De facto, o que se destaca em Quina é a forma como conquista um certo poder material, o importante é manter ou aumentar o património, que só pode ser transmitido a outro membro da família. Daí ela ter constituído Germa sua herdeira universal, sem atender aos pedidos insistentes de Custódio. O dote é como o sangue: só pertence à família, só pode ficar dentro dela, vence a morte.
            No desenvolvimento da ação, é importante considerar o título, pois ele, nesta obra, poderá ter uma intenção irónica, servindo para desmascarar uma ambiência rural onde proliferam a crendice, a superstição, o instinto de sobrevivência, o sentimento arreigado da propriedade e a obsessão do dote que é preciso levar aos vindouros intacto e, se possível, alargado. Procurar-se-ia, deste modo, reconstituir um modo de vida provinciano que, em Portugal, nos anos 50, começava a desaparecer ou, pelo menos, a ser ameaçado pela modernização e pela industrialização.


Obras de Agustina Bessa-Luís

            A sua obra é muito vasta, da qual se destacam os seguintes títulos: Mundo Fechado (1948), Os Super-Homens (1959), Contos Impopulares (1951 e 1953), A Muralha (1957), A Sibila (1954), O Sermão de Fogo (1962), Homens e Mulheres (1967), As Categorias (1970), As Pessoas Felizes (1975), As Fúrias (1977), Crónica do Cruzado Osb (1976), Fanny Owen (1979), Os Meninos de Ouro (1983), Um Bicho das Terras (1984), Eugénia e Silvina (1989).

Biografia de Agustina Bessa-Luís

            Agustina Bessa-Luís nasceu a 15 de outubro de 1922, em Vila Meã, concelho de Amarante. Apenas com seis anos de idade, entrega-se com prazer à leitura de As Mil e Uma Noites, obra que lhe despertou curiosidade.
            Depois dos estudos da Escola Primária, frequentou o colégio das Doroteias, na Póvoa de Varzim, lendo apaixonadamente a Bíblia, sobretudo o Velho Testamento. Passou as férias e parte da adolescência no Douro, em Godim. Aos dezasseis anos, disse para si: «Também escreverei um livro; em breve escrevo um livro.»
            Em entrevista ao Jornal de Notícias, em 1955, dirá: "Num Inverno monótono duma província magnífica de mais para ser justamente interpretado aos dezasseis anos, ou se namora um primo, ou se come demasiado, ou se escreve um romance. Foi uma longa história esse primeiro idílio com as letras. Chovia muito num pátio, a água das caleiras batia nas folhas das hidrângeas, que brilhavam como faróis do outro lado da janela. O outro lado da janela e a chuva são para todo o espírito criador uma oportunidade – eu aproveitei-a rigorosamente, escrevi um romance.»
            E escreveu mesmo o primeiro romance ainda não publicado. Continua a ler apaixonadamente autores portugueses e estrangeiros.
            Em 1945, casa com Alberto de Oliveira Luís e vai viver para Coimbra, onde o marido estuda direito na Faculdade de Direito, mostrando-se muito interessado pela literatura e pela arte. Em 1946, nasce a filha, Laura Mónica, que virá a tirar o curso de pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto.
            Concluído o curso de Direito, o casal fixa-se, em definitivo, no Porto, onde ainda reside. O Porto está presente em muitos dos seus romances, assim como Coimbra em dois, o que comprova uma personalidade muito atenta ao meio que a rodeia.
            Tem um intenso convívio literário com vários escritores e artistas. Viaja por vários países, colabora em muitos encontros internacionais, ganha inúmeros prémios literários, escreve para a televisão, é condecorada, em 1980, pelo Presidente da República, no dia de Portugal, com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.
            Continua a publicar quase anualmente um ou mais romances e biografias, sendo já bastante extensa a sua obra.
            Faleceu a 3 de junho de 2019, na cidade do Porto.


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