Português: Paula Rego
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terça-feira, 30 de agosto de 2022

Análise do quadro "O Tempo – Passado e Presente"



            “O Tempo – Passado e Presente” é uma pintura de Paula Rego, datado de 1990, a segunda realizada pela pintora enquanto Artista Associada da National Gallery, um acrílico sobre papel colado em tela, 183 cm x 183 cm.

            O título encontra eco nas duas personagens centrais – um homem velho e uma menina, provavelmente avô e neta – e também no par mulher/criança que comunica na porta ao fundo aberta. Os quadros nas paredes contêm outras personagens, são uma espécie de janelas que se abrem para outras narrativas e até os bonecos sobre o móvel e os azulejos nas paredes são figuras que podem contar-nos histórias, a nós e ao bebé que nos olha da direita do quadro.

            Ao centro, a figura masculina domina a composição. A idade já avançada sulca-lhe o rosto, pinta-lhe o cabelo de cinzento, estagna-lhe o olhar. É a presença que dialoga com a rapariga, pequena e andrógina, que está sentada à esquerda, debruçada sobre a folha em branco que se esforça por esconder. Sobre o aparador, vemos uma caravela, um hipopótamo e uma estatueta de contornos femininos, que as vestes acentuam. Estes objetos remetem para a memória do tempo passado, tal como os objetos e pinturas que povoam as paredes definidoras do espaço interior onde a cena se desenvolve. É um espaço fechado, iluminado pela claridade que entra pela porta que, ao fundo, se abre para o mar. Essa mesma porta mostra-nos uma mulher idosa, de saia azul, e uma menina, de saia amarela, que se encontra no exterior. Todas as personagens parecem alheadas do bebé envolto no seu casulo verde, confiado ao anjo, que encima o berço, a sua proteção. É esta figura a única que nos olha.

            A figura do bebé, que Paula Rego afirmou constituir uma alusão ao nascimento da sua neta Lola, é, pois, encimada por um anjo fundido com a parede-biombo onde se insere. À esquerda do quadro encontramos uma alusão ao mar que funde elementos relacionados com a História de Portugal (a caravela, por exemplo, é um símbolo dos Descobrimentos), a atividade de marinheiro de Keith Sutton e as viagens de S. Jerónimo, enquanto o centro da composição alude à pintura produzida num contexto de encomenda e fruição religiosa, da mesma forma que a imagem do anjo e a figura do bebé estabelecem com o observador uma relação de familiaridade que remete para a cultura tradicional – constituindo estas três camadas sociais uma crítica subtil à retórica propagandística do Estado Novo. Neste contexto, merece destaque a capa azul de pescador que marca a divisão de planos e o traje escolar, característico dos rapazes da Mocidade Portuguesa, com que é representada a adolescente – vestes que acentuam a robustez das formas desenhadas e se sobrepõem aos traços de feminilidade.

            Outras recorrências, como os azulejos bicromáticos em azul e branco onde estão representados jogos infantis, a extremidade da moldura do quadro apócrifo acima do aparador que remete para os beirais da casa portuguesa de Raul Lino, ou o mar que a porta aberta ao fundo deixa adivinhar como horizonte, remetem à infância da pintora (serão memórias convocadas da quinta dos seus avós na Ericeira).

            Neste quadro, podemos encontrar influências de outras obras, como, por exemplo, “S. Jerónimo na sua cela” (c. 1475), de Antonello de Messina, embora haja diferenças significativas entre os dois quadros. Assim, a relação interior/exterior é invertida: em da Messina o espaço encontra-se “fechado”, o tempo petrificado, e o observador é apenas convidado a observar; em Paula Rego, o observador encontra-se no interior do espaço onde se desenrola a ação da pintura, assumindo o lugar de espectador; a ilusão do espaço, em perspetiva, é-nos sugerida em Antonello pelo padrão geométrico do chão e pela arcaria à direita; em Paula Rego, são as ortogonais marcadas pela parede lateral esquerda e pela sobreposição de planos à direita que fecham o espaço e conduzem o olhar através da pintura. Para a construção das figuras do primeiro plano, o quadro recorre ao jogo realidade-ficção, fazendo coincidir em cada personagem a representação de alguém do seu mundo real com uma imagem retirada de uma obra da National. Desta forma, a figura masculina, não sendo a representação de S. Jerónimo mas um retrato de Keith Sutton, encontra-se na mesma posição mantendo a atitude pensativa e introspetiva que a figura do “S. Jerónimo numa paisagem” (c. 1440), de Bono da Ferrara; a figura da menina a desenhar («retrato» da artista quando jovem) coincide com a imagem do leão na pintura de Bono da Ferrara, ao nível da relação espacial que este estabelece coma figura de “S. Jerónimo” e do posicionamento do corpo. No que concerne ao bebé, existem semelhanças com o leão representado por Domenichino em “A visão de S. Jerónimo” (a. 1603). Do mesmo modo, a relação entre o par leão/anjo em Domenichino é assumida em “O Tempo…” pela dupla bebé/anjo. Assim, ao jogo realidade-ficção sobrepõe-se a injunção profano-religioso.

            Por outro lado, as pinturas de santos reproduzidas no fundo do quadro são reproduções fiéis ao “S. Francisco em Meditação” (c. 1636-9), de Francisco de Zurbaran, ao “S. Sebastiºao” (c. 1623), de Gerrit van Honthorst, e ao São Cristóvão, no reverso do volante esquerdo, do “Tríptico de Donne” (c. 1478), de Hans Memling. Deste modo, Paula Rego presta homenagem aos mestres do passado.

            É possível identificar na pintura duas narrativas paralelas: uma personificada pela própria artista que se autorrepresenta em três tempos diferentes (coincidentes com o bebé, a menina ao fundo e a adolescente) de cariz autobiográfico; outra historicista, que consiste na pintura enquanto disciplina artística. Neste contexto, é interessante registar a relação de “O Tempo…” e “As Meninas”, de Diego Velázquez, havendo diversas semelhanças entre as duas obras: a porta que se abre ao fundo para onde converge a obliquidade da construção espacial assinalando o ponto de fuga; a profusão de figuras; a convocação de obras de pintores precedentes e, no caso de Velázquez, também seus contemporâneos; a elisão do sujeito. É, no entanto, através da autorrepresentação – com a suspensão do gesto de Velázquez e a folha em branco em Paula Rego, com o facto de os pintores integrarem não só a pintura, mas também o seu tempo e contexto histórico de produção (para Velázquez a corte e para Paula Rego a instituição museu).

            Podemos considerar “O Tempo – Passado e Presente” como uma alegoria, por conter a representação simbólica de ideias abstratas através de figuras, grupos de figuras ou atributos. Neste caso, a arte do presente deve permitir estabelecer relações por antecipação (visão do futuro) e por retornos (conhecimento do passado). Nesta obra de Paula Rego, a existência dessa visão do futuro e conhecimento do passado estimula a continuidade transformativa que determina a inovação. Assim, no quadro, perspetivado como uma alusão à história da pintura que tem no tempo histórico o tema e na pintura o motivo, o que motiva a pintora é a combinação de formas múltiplas da história da pintura e da arte, a desconstrução e reformulação do real, a afirmação da linguagem pictórica e, através dela, da injunção da arte com a vida. Ou seja, “O Tempo – Passado e Presente” constitui uma alegoria da história da pintura.

 
Bibliografia:

C Paula Rego: O Tempo – Passado e Presente ou a Pequena História da História da Pintura.

C GREER, Germaine. 1992. “A Olhar para Paula Rego”, in Paula Rego: Histórias da National Gallery.

 

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Análise de "Border Patrol with Lila, Reflection and Ana", de Paula Rego



            Esta pintura de Paula Rego foi pintada em 2004 d constitui um autorretrato da pintora, assente numa espécie de jogo de espelhos.

            O plano central da obra é ocupado por uma mulher – Paula Rego –, sentada de perfil numa cadeira, com a cabeça desafiadoramente levantada. Ela veste um colete verde, com bolsos para colocar granadas, e calções da mesma cor que a cobrem sensivelmente até aos joelhos. Entre as suas pernas encontram-se as costas da cadeira, no cimo da qual tem as mãos, que seguram um pano verde em forma de boneco, possível representação de Víctor Willing, um pintor britânico conhecido pelos seus estudos originais de nus e ex-marido da pintora, falecido em 1988.

            Atrás dessa figura feminina está um espelho de pé, colocado na diagonal, onde é visível o corpo robusto de Ana, que sustém nas mãos um espelho onde surge o reflexo de Lila Nunes, que é a representante de Paula Rego no “teatro de guerra”, a modelo das suas heroínas, por meio da qual a pintora é todos e todas.

             Com este quadro, Paula Rego apresenta-se através do seu reflexo e neste consta o retrato de outra mulher: Lila Nunes, o Outro da artista. A missão da pintora é combater os mecanismos negativos que se impõem à humanidade, levando-a ao ato perverso de deglutir os próprios filhos, nomeadamente na guerra. Nesta obra, a artista está entrincheirada, opondo-se com as suas armas aos avanços e recuos de um inimigo que, na sociedade portuguesa, corresponde ao medo. Deste modo, parece que estamos na presença de uma verdadeira “operação militar, o patrulhamento das fronteiras do próprio eu, como que para ilustrar aquela iluminada afirmação de Freud de que o ego é uma criatura de fronteira. Onde acaba Lila e começa Paula?” (ROSENGARTHEN, Ruth, in Paula Rego…). Lila é Paula na tela, na qual projeta a sociedade portuguesa, assumindo-se como a encenadora que coloca no palco os elementos que a levam a questionar a realidade para fomentar a solidariedade.

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