“O Tempo – Passado e Presente” é uma
pintura de Paula Rego, datado de 1990, a segunda realizada pela pintora
enquanto Artista Associada da National Gallery, um acrílico sobre papel colado
em tela, 183 cm x 183 cm.
O título
encontra eco nas duas personagens centrais – um homem velho e uma menina,
provavelmente avô e neta – e também no par mulher/criança que comunica na porta
ao fundo aberta. Os quadros nas paredes contêm outras personagens, são uma
espécie de janelas que se abrem para outras narrativas e até os bonecos sobre o
móvel e os azulejos nas paredes são figuras que podem contar-nos histórias, a
nós e ao bebé que nos olha da direita do quadro.
Ao centro, a figura masculina domina
a composição. A idade já avançada sulca-lhe o rosto, pinta-lhe o cabelo de
cinzento, estagna-lhe o olhar. É a presença que dialoga com a rapariga, pequena
e andrógina, que está sentada à esquerda, debruçada sobre a folha em branco que
se esforça por esconder. Sobre o aparador, vemos uma caravela, um hipopótamo e
uma estatueta de contornos femininos, que as vestes acentuam. Estes objetos
remetem para a memória do tempo passado, tal como os objetos e pinturas que
povoam as paredes definidoras do espaço interior onde a cena se desenvolve. É
um espaço fechado, iluminado pela claridade que entra pela porta que, ao fundo,
se abre para o mar. Essa mesma porta mostra-nos uma mulher idosa, de saia azul,
e uma menina, de saia amarela, que se encontra no exterior. Todas as
personagens parecem alheadas do bebé envolto no seu casulo verde, confiado ao
anjo, que encima o berço, a sua proteção. É esta figura a única que nos olha.
A figura do bebé, que Paula Rego
afirmou constituir uma alusão ao nascimento da sua neta Lola, é, pois, encimada
por um anjo fundido com a parede-biombo onde se insere. À esquerda do quadro
encontramos uma alusão ao mar que funde elementos relacionados com a História
de Portugal (a caravela, por exemplo, é um símbolo dos Descobrimentos), a
atividade de marinheiro de Keith Sutton e as viagens de S. Jerónimo, enquanto o
centro da composição alude à pintura produzida num contexto de encomenda e
fruição religiosa, da mesma forma que a imagem do anjo e a figura do bebé
estabelecem com o observador uma relação de familiaridade que remete para a
cultura tradicional – constituindo estas três camadas sociais uma crítica
subtil à retórica propagandística do Estado Novo. Neste contexto, merece destaque
a capa azul de pescador que marca a divisão de planos e o traje escolar,
característico dos rapazes da Mocidade Portuguesa, com que é representada a
adolescente – vestes que acentuam a robustez das formas desenhadas e se
sobrepõem aos traços de feminilidade.
Outras recorrências, como os
azulejos bicromáticos em azul e branco onde estão representados jogos infantis,
a extremidade da moldura do quadro apócrifo acima do aparador que remete para
os beirais da casa portuguesa de Raul Lino, ou o mar que a porta aberta ao
fundo deixa adivinhar como horizonte, remetem à infância da pintora (serão memórias
convocadas da quinta dos seus avós na Ericeira).
Neste quadro, podemos encontrar
influências de outras obras, como, por exemplo, “S. Jerónimo na sua cela” (c.
1475), de Antonello de Messina, embora haja diferenças significativas entre os
dois quadros. Assim, a relação interior/exterior é invertida: em da Messina o
espaço encontra-se “fechado”, o tempo petrificado, e o observador é apenas
convidado a observar; em Paula Rego, o observador encontra-se no interior do
espaço onde se desenrola a ação da pintura, assumindo o lugar de espectador; a
ilusão do espaço, em perspetiva, é-nos sugerida em Antonello pelo padrão
geométrico do chão e pela arcaria à direita; em Paula Rego, são as ortogonais
marcadas pela parede lateral esquerda e pela sobreposição de planos à direita
que fecham o espaço e conduzem o olhar através da pintura. Para a construção
das figuras do primeiro plano, o quadro recorre ao jogo realidade-ficção,
fazendo coincidir em cada personagem a representação de alguém do seu mundo
real com uma imagem retirada de uma obra da National. Desta forma, a figura
masculina, não sendo a representação de S. Jerónimo mas um retrato de Keith
Sutton, encontra-se na mesma posição mantendo a atitude pensativa e
introspetiva que a figura do “S. Jerónimo numa paisagem” (c. 1440), de Bono da
Ferrara; a figura da menina a desenhar («retrato» da artista quando jovem)
coincide com a imagem do leão na pintura de Bono da Ferrara, ao nível da
relação espacial que este estabelece coma figura de “S. Jerónimo” e do
posicionamento do corpo. No que concerne ao bebé, existem semelhanças com o
leão representado por Domenichino em “A visão de S. Jerónimo” (a. 1603). Do
mesmo modo, a relação entre o par leão/anjo em Domenichino é assumida em “O
Tempo…” pela dupla bebé/anjo. Assim, ao jogo realidade-ficção sobrepõe-se a injunção
profano-religioso.
Por outro lado, as pinturas de
santos reproduzidas no fundo do quadro são reproduções fiéis ao “S. Francisco em
Meditação” (c. 1636-9), de Francisco de Zurbaran, ao “S. Sebastiºao” (c. 1623),
de Gerrit van Honthorst, e ao São Cristóvão, no reverso do volante esquerdo, do
“Tríptico de Donne” (c. 1478), de Hans Memling. Deste modo, Paula Rego presta
homenagem aos mestres do passado.
É possível identificar na pintura
duas narrativas paralelas: uma personificada pela própria artista que se
autorrepresenta em três tempos diferentes (coincidentes com o bebé, a menina ao
fundo e a adolescente) de cariz autobiográfico; outra historicista, que
consiste na pintura enquanto disciplina artística. Neste contexto, é
interessante registar a relação de “O Tempo…” e “As Meninas”, de Diego
Velázquez, havendo diversas semelhanças entre as duas obras: a porta que se
abre ao fundo para onde converge a obliquidade da construção espacial
assinalando o ponto de fuga; a profusão de figuras; a convocação de obras de
pintores precedentes e, no caso de Velázquez, também seus contemporâneos; a
elisão do sujeito. É, no entanto, através da autorrepresentação – com a
suspensão do gesto de Velázquez e a folha em branco em Paula Rego, com o facto
de os pintores integrarem não só a pintura, mas também o seu tempo e contexto
histórico de produção (para Velázquez a corte e para Paula Rego a instituição
museu).
Podemos considerar “O Tempo –
Passado e Presente” como uma alegoria, por conter a representação simbólica de
ideias abstratas através de figuras, grupos de figuras ou atributos. Neste
caso, a arte do presente deve permitir estabelecer relações por antecipação
(visão do futuro) e por retornos (conhecimento do passado). Nesta obra de Paula
Rego, a existência dessa visão do futuro e conhecimento do passado estimula a
continuidade transformativa que determina a inovação. Assim, no quadro,
perspetivado como uma alusão à história da pintura que tem no tempo histórico o
tema e na pintura o motivo, o que motiva a pintora é a combinação de formas
múltiplas da história da pintura e da arte, a desconstrução e reformulação do
real, a afirmação da linguagem pictórica e, através dela, da injunção da arte
com a vida. Ou seja, “O Tempo – Passado e Presente” constitui uma alegoria da
história da pintura.
C Paula Rego: O Tempo – Passado e
Presente ou a Pequena História da História da Pintura.
C GREER, Germaine. 1992. “A Olhar para
Paula Rego”, in Paula Rego: Histórias da National Gallery.