Português: 31/08/22

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Análise de "O Operário em Construção", de Vinicius de Moraes


            Esta composição de Vinicius de Moraes foi publicada inicialmente em 1959 no livro Novos Poemas II e foi divulgada, em 1962, na coletânea de poemas engajados Violão de Rua, e pode ser lida como uma metáfora para a construção da consciência de um trabalhador.

            O poema é antecedido de uma epígrafe, extraída do Evangelho de São Lucas (Lc 5, 5-8), um trecho parafraseado por Vinicius para compor a estrutura do poema e proporcionar a sua leitura. A passagem bíblica corresponde à tentação sofrida por Jesus no deserto. Nela, este elevado pelo Diabo ao alto de um monte e é aí tentado a adorar o seu opositor. O texto de Vinicius retoma essa ideia claramente através de uma estrofe em que o operário é desafiado a abandonar a sua ética em troca de favores do seu patrão, após este compreender que nem por meio da violência o convenceria:

De sorte que o foi levando

Ao alto da construção

E num momento de tempo

Mostrou-lhe toda a região

E apontando-a ao operário

Fez-lhe esta declaração:

– Dar-te-ei todo esse poder

E a sua satisfação

Porque a mim me foi entregue

E dou-o a quem bem quiser.

Dou-te tempo de lazer

Dou-te tempo de mulher.

Portanto, tudo o que vês

Será teu se me adorares

E, ainda mais, se abandonares

O que te faz dizer não.

            A escolha desta passagem para iniciar um poema que retrata o operário contribui para o entendimento do poema e encontra justificação nas bases sociais de meados do século XX. A epígrafe funciona como um pequeno roteiro para o desenvolvimento do poema, que vai da descoberta do sofrimento até à negação do tentador.

            O título do poema contém a ideia de um operário que não constrói somente o mundo ao seu redor, mas que vai dando conta da ampliação de si mesmo e da grandiosidade do seu trabalho de maneira poética e crítica, quando já não aceita a sua condição de operário, isto é, é um operário em construção de si mesmo.

            O poema inicia-se com a narrativa em trono de um operário da construção civil e do seu quotidiano, sem que ele consiga perceber a importância do seu trabalho para a sociedade, que o ato de construir uma casa tinha um grande significado para os que iriam morar nela. De facto, a abertura da composição faz-se com a apresentação do papel do trabalhador na construção das 6coisas e o desconhecimento do significado e impacto da sua profissão, traduzido pela alienação verificada na multidão que empilha os tijolos com suor e cimento.

            A comparação com “um pássaro sem asas” reflete a condição de artífice do operário, que, sem grandes expectativas, alcançava as alturas com o suor do seu trabalho. Apesar de o operário desconhecer a importância do seu trabalho, a sua ação não só é mais importante que a coisa construída, mas também faz o trabalhador ser e fazer mais, de maneira reflexiva: “Mas ele desconhecia, / Esse fato extraordinário, / Que o operário faz a coisa, / E a coisa faz o operário”. Estes versos conceituam a capacidade transformadora do trabalho em relação ao produto do seu trabalho. O vocábulo «coisa» aponta para a ideia da alienação e coisificação do trabalho, sendo o trabalhador alienado e coisificado transformado em «coisa» pelo sistema de produção. Por seu turno, o paradoxo «liberdade» e «escravidão» significa que o produto do seu trabalho deveria garantir liberdade ao operário, contudo tal não sucede, pelo contrário transforma-o num escravo.

            Em contraste com a alienação inicial, o funcionário é tomado por uma súbita revelação e a tomada de consciência de que tudo à sua volta é fruto do seu trabalho. Essa tomada de consciência dá-se num momento simples do seu quotidiano, o momento de uma refeição: “À mesa, ao cortar o pão / O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que tudo naquela mesa / – Garrafa, prato, facão – / Era ele quem os fazia / Ele, um humilde operário, / Um operário em construção.”. A imagem do trabalhador sentado à mesa, cortando o pão (note-se que estes versos podem ser entendidos como o simples ato de alguém se alimentar, mas também como uma alusão ao partir do pão feito por Jesus), é o ponto de partida para a “súbita emoção” que o assalta e o leva a compreender a relação do seu trabalho com o que é produzido por esse mesmo trabalho. É isso que nos mostra a extensão enumeração: “Olhou em torno: gamela / Banco, enxerga, caldeirão / Vidro, parede, janela / Casa, cidade, nação! / Tudo, tudo o que existia / Era ele quem o fazia”.

            De seguida, o «eu» poético dirige-se aos “homens de pensamento”, afirmando que lhes é impossível compreender o que o humilde operário soube naquele momento. Isto constitui uma conceção anti-intelectual que contrapõe a noção de homens de pensamento ao humilde operário. A tomada de consciência do operário prossegue quando ele olha as suas mãos e compreende que são elas que tornam possível toda a sua obra: “O operário emocionado / Olhou sua própria mão / […] / E olhando bem para ela / Teve um segundo a impressão / De que não havia no mundo / Coisa que fosse mais bela.”. Esta constatação evidencia a descoberta que o trabalhador fez sobre si mesmo, a sua ação iluminada pela sua capacidade de construir aquilo que a sua mente pensa que é capaz.

            O operário, quando olha para a sua mão, tem a impressão de que não há coisa mais bela. Note-se que a mão simboliza o trabalho e, em simultâneo, é uma parte do corpo modificado pelo próprio trabalho, enquanto o adjetivo «rude» evidencia o sofrimento do corpo do trabalhador. Por outro lado, o “instante de compreensão” é solitário (“Foi dentro da compreensão / Desse instante solitário”), valorizando-se, assim, o indivíduo e não o coletivo. Encontrado esse sentido, o operário encontra a dimensão do poético que há no seu trabalho: “O operário adquiriu / Uma nova dimensão: / A dimensão da poesia.”, dimensão que causou a mudança de atitude que trouxe ao operário outras possibilidades de entender e viver no mundo. Os versos “Cresceu em alto e profundo / Em largo e no coração” revelam que essa dimensão poética tem as suas raízes no discurso emocional e é a partir dela que um operário «dizia» e o outro «escutava», aprendendo a dizer «não». Ou seja, o trabalhador consegue agora perceber a beleza que existe naquilo que constrói e reconhecer-se a si mesmo nos produtos que cria. Ele vai-se libertando, gradualmente, do jogo do patrão e incentivando os outros operários a fazerem o mesmo, a tomarem consciência da sua força, do seu poder de construção. Esta consciencialização opera-se por estas vias, ignorando as construções coletivas de luta, como os sindicatos, e através de um método retórico contrário ao racional. Em suma, a tomada de consciência social parte da sua função produtiva na sociedade e alcança dimensões mais amplas, primeiro adquirindo uma conceção estética, da beleza das suas rudes mãos, até à transformação das suas experiências de vida em poesia. O trecho em que o operário contempla a sua mão e considera que é a coisa mais bela do mundo pode parecer contraditório, visto que, de modo geral, a mão de um operário da construção civil tende a ser grossa, rude e cheia de calos. Deste modo, como pode ser considerada bela? A beleza que ele vislumbra situa-se além das aparências; percebe que tem nas suas mãos o poder de transformar o mundo.

            O que leva o operário a dizer «não» e a «se fazer forte na sua resolução» é a perceção das suas condições de vida, a diferença de condições de vida entre os trabalhadores e os patrões, ou seja, a oposição entre a pobreza dos primeiros e a riqueza dos segundos, através de várias metáforas, que o levam a questionar determinadas situações: “Notou que sua marmita / Era o prato do patrão / Que sua cerveja preta / Era o uísque do patrão / Que seu macacão de zuarte / Era o terno do patrão / Que o casebre onde morava / Era a mansão do patrão / Que seus dois pés andarilhos / Eram as rodas do patrão / Que a dureza do seu dia / Era a noite do patrão / Que sua imensa fadiga / Era amiga do patrão”. Este patrão é comparado, mais à frente, ao diabo tentando Jesus. Assim sendo, existe um momento de diabolização da riqueza e de transformar a pobreza em virtude, o que constitui uma forma simplista de abordar a luta de classes. Este ato de contestação não é um processo individual, passando o operário a compartilhar a insatisfação com os seus colegas de trabalho.

            Esta ação tem duas consequências. A primeira é a violência exercida sobre o operário, praticada pelos delatores, que, através de uma sugestão cifrada do patrão, o agridem. Assim, vê o seu rosto cuspido e o braço partido, agressões semelhantes às sofridas por Jesus Cristo: “Pois será entregue aos gentios, e escarnecido, injuriado e cuspido” (Lucas, cap. 18, versículo 32). A segunda consequência relaciona-se com a ineficiência das agressões. De facto, o operário, apesar de delatado por colegas e apesar de agredido repetidas vezes, continua a resistir e a dizer «não», mesmo sabendo que não seria fácil conviver com a sua própria verdade: “E todo o seu sofrimento / Misturava-se ao cimento / Da construção que crescia”. O patrão, percebendo a recusa do funcionário, tenta suborná-lo, oferecendo-lhe poder, tempo de lazer e mulheres, com a condição de que abandone o «não», no entanto o operário não reconhece naquilo que vê o poder do patrão, mas sim o trabalho de quem o construiu: “Um dia tentou o patrão / Dobrá-lo de modo vário. / De sorte que o foi levando / Ao alto da construção / E num momento de tempo / Mostrou-lhe toda a região / E apontando-a ao operário / Fez-lhe esta declaração: / – Dar-te-ei todo esse poder / […] / Será teu se ma adorares / E, ainda mais, se abandonares / O que te faz dizer não. / […] / Mas o que via o operário / Que olhava e refletia / Mas o que via o operário / O patrão nunca veria. / O operário via as casas / E dentro das estruturas / Via coisas, objetos / Produtos manufaturas. / Via tudo o que fazia / O lucro do seu patrão / E em cada coisa que via / Misteriosamente havia / A marca de sua mão. / E o operário disse: Não!”. Assim sendo, podemos concluir que o subordinado tem uma visão que o patrão jamais será capaz de compreender: o patrão não lhe podia dar nada daquilo, visto que fora ele, operário, e os seus companheiros que tinham construído tudo o que havia. Por outro lado, o operário observa a ampla região em volta da construção e vê o que o seu patrão não consegue ver: o trabalhador vê casas e muitos objetos, enquanto a visita do seu patrão se limita ao lucro.

            Este passo, em que o operário é desafiado a abandonar a sua ética em troca de favores do seu patrão, após este tomar consciência de que nem mesmo a violência o faria mudar de opinião, constitui uma paráfrase da epígrafe bíblica do poema: o patrão tenta subornar o operário, tal como Satanás tentara Jesus. No entanto, aquele não compreende, de facto, a recusa do seu funcionário, que é claro e revela a sua tomada de consciência: “ – Mentira! – disse o operário / Não podes dar-me o que é meu.”. Da discussão com o patrão, resulta o silêncio, o vácuo, o eco de tempos passados, de familiares que se foram.

            A sensação que se extrai do final do poema remete para a luta, a dor e o sofrimento, mas também a superação, quando “Uma esperança sincera / Cresceu no seu coração / E dentro da tarde mansa / Agigantou.se a razão / De um homem pobre e esquecido / Razão porém que fizera / Em operário construído / O operário em construção”. Os versos finais são carregados de uma troca contínua entre aquele que faz e o que é feito, ou seja, o operário constrói-se na medida em que constrói os seus sonhos, as suas habilidades refletem quem ele é. Um operário em construção constrói-se a si próprio, espelha-se no que faz para continuar a realizar um bom trabalho, tal como um poeta ou um artesão.

            Em suma, o poema procura expor o processo histórico de formação da classe operária e a consciencialização social, a partir da perceção da sua função produtiva no campo económico e da construção de uma nova forma de perceção do mundo, que inclui a dimensão estética, a ação coletiva e a necessidade de adoção de um posicionamento político, que sustenta o «não» do operário ao patrão. Note-se que toda a composição poética assenta na metonímia, pois o poeta não foca um trabalhador e um patrão específicos, mas de duas classes que se situam e vivem em campos opostos: “Via tudo que fazia / O lucro do seu patrão / E em cada coisa que via / Misteriosamente havia / A marca de sua mão.”

            Neste poema, dá-se conta da busca do autoconhecimento e do reconhecimento de quem se é e do que faz. Muitas vezes, não há uma relação direta entre o construído e aquele que o fez, pois, quando a construção está terminada, no exemplo do texto, ela não pertence, de facto, a quem a fez. No poema, a revolta dá-se quando o operário toma consciência da sua condição e, ao alcançar a dimensão da poesia, consegue poetizar a sua existência, tornando-se dono da sua própria vida, mesmo que de maneira figurativa.


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