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domingo, 29 de dezembro de 2024

Biografia de Alexandre O'Neill

 
·         19 de dezembro de 1924 – Nasce em Lisboa, no n. 39 da Avenida Fontes Pereira de Melo, Alexandre Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, filho de António Pereira d’Eça O’Neill de Bulhões, empregado bancário, e de Maria da Glória Vahia de Castro O’Neill de Bulhões, doméstica, mãe pela segunda vez aos 19 anos, e nero da escritora Maria O’Neill.

O apelido O’Neill, de origem irlandesa (o primeiro rei católico da Irlanda – 410 d.C. – chamava-se Eogan Vi Niall), foi herdado da avó paterna, Maria da Conceição, havendo registo da sua presença em Portugal desde 1736, ano em que Shane O’Neill, um refugiado, chega ao nosso país e se instala na Quinta da Arealva, em Cacilhas.

A escolha do apelido O’Neill como “nome de guerra relacionar-se-á possivelmente com a demarcação de qualquer «modo funcionário de viver»”, bem simbolizado pelo clã O’Neill na Irlanda: durante quase mil anos e cerca de trinta gerações, segundo as crónicas, não houve um O’Neill que morresse de morte natural. Por sua vez, o apelido Bulhões aponta para figuras importantes, como, por exemplo, Santo António de Lisboa.

·         1926-1937 – Mora em Lisboa com a família, constituída pelos pais e pela irmã, Maria Amélia, mais velha do que o futuro poeta, no 4.º Esq. do número 19 da Rua da Alegria, uma época que o próprio retratou da seguinte forma: “Era um chato, uma tristeza, era filho de gente que não me deixava sair à rua. Era um miúdo fechado, um bocado triste e passava muito tempo à janela. […] Não foi uma infância feliz nem infeliz. Foi um tempo cinzento, sem relevos.”

Mais felizes foram os períodos de férias de verão em Amarante, terra natal da mãe, entre os seis e os dezasseis anos, onde conheceu e conviveu com diversas pessoas, nomeadamente o tio-avô José Vahia, em cuja companhia faz longos passeios que lhe dão a conhecer a região do Douro e a poesia de Guerra Junqueiro e que estão refletidos no seu poema “Autocrítica”.

·         1932 – Começa a frequentar a Escola Primária, situada na Rua de S. José dos Carpinteiros.

·         1933 – Ingressa no Colégio Português de Educação Feminina, uma instituição de ensino particular, na qual conclui a instrução primária e inicia o curso dos liceus.

·         1935 – Conhece Teixeira de Pascoaes no Café Central de Amarante.

·         1936 – Contacta pela primeira vez com a poesia dimensionista de António Pedro através da revista “Revolução”, a que tem acesso por meio da sua professora, Virgínia Lima.

Inicia-se a Guerra Civil espanhola, que seguirá com grande atenção.

Inscreve-se, obrigado, na Mocidade Portuguesa.

·         1937 – Ainda em Amarante, conhece Alexandre Pinheiro Torres, que se tornará desde aí seu companheiro de aventuras, e Bento de Jesus Caraça, que se encontrava também na localidade na época e a quem pediu um autógrafo.

·         1938 – Muda-se com a família para a Rua Arnaldo Gama, no Bairro Social do Cego, mudança essa que o leva a mudar de escola e a frequentar o Colégio Valsassina, na Avenida António Augusto de Aguiar, por força da lei da separação dos sexos nas escolas.

Contacta com a poesia de Mário de Sá-Carneiro, bem como com a poesia neorrealista, graças às conversas pós-aulas que mantém com o seu professor Avelino Cunhal, “a quem horroriza o entusiasmo” de O’Neill por uma poesia que considerava “doentia e malsã” (a de Sá-Carneiro).

·         1939 – Reprova a Matemática no 3. Ano de liceu. Após frequentar aulas particulares, repete o exame e obtém anota de 19 valores.

Começa a ler (por exemplo, Júlio Verne, autor comum aos jovens da sua idade, bem como outros escritores que os da sua idade não liam) e a escrever.

O triunfo de Franco na Guerra Civil espanhola, a ascensão dos regimes fascistas e nacionalistas (Mussolini, Hitler e Salazar) e o início da Segunda Guerra Mundial agudizam a sua visão angustiada da História e da vida.

·         1941 – Ainda no Colégio Valssassina, conhece o professor António Dias Miguel, que o inicia na leitura dos autores do Novo Cancioneiro.

Obtém todos os prémios de um concurso literário organizado pela direção do colégio.

·         192 – Conhece, pela mão de Ribeiro Couto, Adolfo Casais Monteiro, João Gaspar Simões, Almada Negreiros, António Dacosta e António de Navarro, membros, entre outros, do chamado “Grupo dos Jantares dos Dias 13”, que têm lugar na Esplanada do Rato, e para os quais Alexandre O’Neill passou a ser convidado. Deles resultará um convite, formulado por Ribeiro Couto, no sentido de colaborar na revista “Litoral”, dirigida pelo escritor Carlos Queiroz.

Escreve poemas com sabor ao heterónimo pessoano Ricardo Reis e a um certo imaginário próximo do Neorrealismo, povoados por figuras como fadas, gnomos, etc., e tendo como interlocutora uma Lídia, que, de facto, nos leva de imediato até Reis.

·         1943 – Publica os primeiros versos num jornal de Amarante, o “Flor do Tâmega”.

·         1944 – Concluído o liceu, reprova no exame médico para admissão ao Serviço Militar, devido à asma e à miopia.

Sofre novo desgosto quando conclui, após terminar o primeiro ano do curso de Pilotagem da Escola Náutica de Lisboa (a admissão requeria apenas que os candidatos soubessem nadar), que jamais poderá ser piloto por causa da miopia, no momento em que tenta obter, na Capitania do Porto de Lisboa, uma cédula para navegar como praticante de piloto.

Volta, posteriormente, ao liceu para frequentar, como aluno externo, o Curso Complementar de Letras.

·         1945 – Conhece Mário Cesariny de Vasconcelos no café A Cubana, dando início a uma relação de amizade e cumplicidade intelectual, cimentada pelo envolvimento de ambos nas atividades do MUD Juvenil e pela renitência face ao Neorrealismo.

Publica os poemas “Explosão”, “Nocturno”, “Cavalos” e “Estátua Equestre” na revista “Litoral”.

·         1946 – Agravam-se conflitos no seio da sua família: a relação com o pai nunca fora pacífica e a mãe tinha sempre tentado afastar O’Neill da literatura, rasgando todos os versos que encontrava, pois sonhava para o filho uma carreira na advocacia. Em consequência dessas desavenças sai de casa e vai viver para casa do tio António Vahia de Castro, na Avenida Visconde de Valmor.

Começa a trabalhar na Caixa de Previdência dos Profissionais do Comércio, na secção de Arquivo e Expedição de Correspondência, como escriturário de terceira classe, ganhando 600 escudos (o equivalente a três euros) por mês. Aí permanecerá durante seis anos.

·         1947 – Troca correspondência com Mário Cesariny, que vive então em Paris, revelando o seu entusiasmo pelas atividades diversificadas a que se dedica: desenho, escrita, estudos (por exemplo, da obra de Freud), escultura, etc.

Participa, juntamente com outras figuras, como António Pedro, José-Augusto França, Cândido Costa Pinto, entre outros, em outubro, na primeira reunião do futuro Grupo Surrealista de Lisboa, que se formará antes do final deste ano, e que será constituído pelo próprio O’Neill, por Mário Cesariny, António Pedro, José-Augusto França, Moniz Pereira, Fernando de Azevedo, António Domingues e Vespeira. Cândido Costa Pinto fora afastado entretanto, acusado de assumir compromissos estranhos aos do grupo, nomeadamente com a galeria de exposições do SNI.

A adesão ao Surrealismo leva-o a colecionar objetos estranhos, em casa dos pais, como ossos, que levam a mãe ao desespero e que o «forçam» a arrendar um «atelier» numas águas-furtadas de um prédio antigo, na Avenida Liberdade, juntamente com António Domingos e Mário Cesariny. Esta iniciativa vem substituir outra, que nunca concretizará, de alugar uma casa em conjunto com José Cardoso Pires e / ou João Moniz Pereira. É nesse «atelier» que os locatários ensaiarão experiências de colagens, poemas, esculturas e pinturas.

·         1948 – Cria, nessas águas-furtadas, A Ampola Miraculosa, uma história, em poucas páginas, construída em torno de gravuras de antigos manuais de Física.

O Grupo Surrealista de Lisboa torna pública, através do “Diário de Lisboa”, a sua oposição ao aproveitamento e apropriação oficiais da figura de Gomes Leal, aquando da celebração do centenário do seu nascimento. Anos depois, O’Neill, juntamente com Francisco de Cunha Leão, organizará uma antologia poética de Gomes Leal.

Ainda neste ano, dá-se uma cisão no Grupo Surrealista de Lisboa, motivada por divergências estético-ideológicas e protagonizada por Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Pedro Oom e Henrique Risques Pereira.

·         1949 – Em janeiro, num sótão do n.º 25 da Rua da Trindade, abre ao público a primeira exposição do Grupo Surrealista de Lisboa, onde expõem os seus trabalhos Alexandre O’Neill, António Pedro, José-Augusto França, entre outros. A exposição é encerrada pela polícia devido ao seu cariz subversivo. A capa do catálogo ostenta a cruz azul do lápis da censura: o texto dessa capa, de facto, assinado por José-Augusto França, apoia a candidatura do general Norton de Matos contra Óscar Carmona e nele é possível ler frases como “É absolutamente indispensável votar contra o Fascismo.”, por isso é cortado com uma enorme cruz.

·         1950 – A 12 de janeiro tem lugar a Conferência de Nora Mitrani, intitulada “La Raison Ardente”, uma francesa de 29 anos ligada ao movimento surrealista de André Breton que chegara a Lisboa em finais do ano anterior. Alexandre O’Neill traduz a conferência para português, para ser publicada nos Cadernos Surrealistas, e apaixona-se loucamente pela conferencista.

Quando Nora Mitrani parte de regresso, os dois combinam que o poeta irá encontrar-se com ela a Paris, no entanto, entretanto, a PIDE confisca-lhe o passaporte, que apenas reaverá anos mais tarde.

Ainda neste ano realiza-se, na livraria A Bibliófila, a segunda exposição do Grupo Surrealista Dissidente, na qual O’Neill expõe, extracatálogo, não obstante fazer parte do grupo original.

·         1951 – Em novembro, é editado, em Cadernos de Poesia (fascículo 11), o seu primeiro livro de poemas: Tempo de Fantasmas. Num texto intitulado “Pequeno Aviso do Autor ao Leitor”, uma espécie de prefácio, o escritor demarca-se do Surrealismo e passa-lhe mesmo um atestado de menoridade.

Aproxima-se temporariamente do Partido Comunista Português, um namoro que começara em 1948 com a entrada para o MUD Juvenil, porém o poeta nunca seria um homem de grandes convicções partidárias.

Em dezembro, o Grupo Surrealista Dissidente reage à posição de O’Neill com o texto “Do capítulo da Probidade”, que o ataca, bem como o Grupo Surrealista de Lisboa, José-Augusto França e Jorge de Sena.

·         1952 – É posto sob “vigilância especial” na Caixa de Previdência, onde trabalha, depois transferido de secção e, por fim, demitido compulsivamente da Função Pública por se ter recusado a usar gravata pela morte do marechal Óscar Carmona.

·         1953 – Em março, torna-se funcionário da secção de Sinistros Automóveis, na Companhia de Seguros Metrópole.

Colabora em diversos jornais e revistas: “Litoral”, “Mundo Literário”, “Seara Nova”, “Diário de Lisboa”, “Cadernos de Poesia”, “Vértice”, “Journal des Poètes” e “Unicórnio” (1951), revista dirigida por José-Augusto França onde foi publicado o poema “Um Adeus Português” e, em 1956, “Meditação na Pastelaria”.

É preso pela PIDE no aeroporto de Lisboa por ter ido esperar Maria Lamas, escritora, jornalista e ativista política, que regressava de reuniões do Conselho Mundial da Paz, ocorridas em Bucareste, na Roménia, e encarcerado durante 40 dias. Nesse período de tempo, é visitado semanalmente pela irmã, à revelia dos pais. É posto em liberdade graças às influências movidas pela mãe, contra a vontade do próprio filho.

·         1954 – A 13 de março pede a demissão da companhia de seguros onde trabalhava desde março do ano anterior, alegando um estado de saúde frágil e a necessidade de repouso absoluto.

Em 1 de agosto, começa a trabalhar como escriturário para a divisão agro-química da Sandoz.

·         1957 – Em 27 de dezembro, casa com Noémia Delgado e vai morar para a Rua do Jasmim, quebrando, a partir daqui, o ciclo de idas e voltas de casa dos pais.

·         1958 – Publica No Reino da Dinamarca, na coleção “Poesia e Verdade”, da Guimarães Editores.

No fim de junho, abandona o emprego de escriturário da Sandoz.

·         1959 – A partir de julho, trabalha como encarregado da Biblioteca Itinerante n.º 17 da Gulbenkian, com ponto de irradiação em Lisboa.

Branquinho da Fonseca, diretor do Serviço de Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian, à falta de técnicos, «recruta» os encarregados entre os jovens poetas da época, como Herberto Hélder e António José Forte, além do próprio O’Neill.

Inicia a sua atividade como redator de publicidade, onde permanecerá até ao fim da vida, trabalhando sucessivamente em quase todas as maiores empresas do ramo: Telecine Moro, Publicis, Ciesa NCK e McCann Erickson. Nos anos 80, trabalhará com dois amigos na Publinter (Rui de Brito) e na Lápis (com Arnaldo Aboim). Ficam famosos diversos slogans da sua autoria, nomeadamente um, o mais conhecido e que acabou por se converter em provérbio: “Há mar e mar, há ir e voltar”.

A 23 de dezembro, nasce o seu primeiro filho: Alexandre Delgado O’Neill.

·         1960 – É publicado Abandono Vigiado, na coleção “Poesia e Verdade”, da Guimarães Editores.

Em maio, abandona o emprego na biblioteca itinerante e volta para a Sandoz.

·         1961 – Nora Mitrani suicida-se em Paris aos 40 anos. Ela e O’Neill nunca se voltaram a ver.

O poeta colabora com Ilse Losa na tradução da obra Teatro I, da autoria de Bertolt Brecht, para a editora Portugália.

Em finais de setembro, abandona em definitivo a Sandoz.

·         1962 – Na coleção Círculo de Leitores, da editora Moraes, é publicada a obra Poemas com Endereço.

Publicam-se também duas antologias poéticas de sua autoria, uma de Teixeira de Pascoaes (em parceria com Francisco da Cunha Leão), a outra de Carl Sandburg.

·         1963 – Organiza uma antologia de poemas escolhidos do poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, que é publicada na Portugália, na coleção “Poetas de Hoje”.

Traduz as letras das canções de O Círculo de Giz Caucasiano, para o volume Teatro II, de Bertolt Brecht, prosseguindo assim a colaboração com Ilse Losa.

·         1965 – A Ulisseia edita Feira Cabisbaixa.

·         1966 – É editada, pela Einaudi, de Turim, uma tradução de poemas seus intitulada Portogallo Mio Remorso, da responsabilidade de Joyce Lussu, um reflexo do interesse que O’Neill sempre teve pela cultura, história e língua italianas.

·         1968 – É publicado O Poeta Apresenta o Poeta, uma antologia da poesia de Vinicius de Moraes organizada por O’Neill. O poeta brasileiro vem a Lisboa e os dois tornam-se amigos.

·         1969 – É publicada a segunda edição de No Reino da Dinamarca.

·         1970 – É editada a coletânea de textos As Andorinhas não têm Restaurante, que reúne textos em prosa editados nos livros de poesia e crónicas que publicava periodicamente em jornais, nos “Cadernos de Literatura” da D. Quixote.

·         1971 – A 15 de janeiro, divorcia-se de Noémia Delgado e, a 4 de agosto, casa com Teresa Patrício Gouveia. O novo casal vai morar na Rua da Escola Politécnica, n.º 48-2.º, onde Alexandre O’Neill viverá até ao final da vida.

O segundo matrimónio coincide com um período de maior desafogo económico e com uma fase de estadas numa casa da família, em Azeitão, muito apreciada pelo poeta.

·         1973 – Prepara, com Jorge Listopad, o programa “Museu Aberto” para a RTP.

·         1974 – Colabora com o realizador Artur Ramos (com quem já havia colaborado nos anos 60, no filme Pássaro de Asas Cortadas) na produção da peça Schweik na II Guerra Mundial, da autoria de Bertolt Brecht, para a Companhia de Teatro da Rtp.

·         1975 – Em novembro, sai o primeiro número da publicação “Critério – Revista Mensal de Cultura”, dirigida por João Palma-Ferreira e O’Neill, como diretor-adjunto, defensora da democracia de tipo socialista. Entre os colaboradores contam-se figuras relevantes como Miguel Torga, Vergílio Ferreira, António José Saraiva, Álvaro Manuel Machado, António Tabucchi e Vitorino Magalhães Godinho. Em simultâneo, O’Neill torna-se simpatizante do Partido Socialista, dando início a uma relação pontuada por vários solavancos, exemplificada por slogans eleitorais como o seguinte: “Ele não merece, mas vota no PS”.

·         1976 – Abandona, juntamente com Palma-Ferreira, a direção da revista “Critério”, de que ainda sairão dois números sob uma direção interina.

Em maio, nasce Afonso, o seu segundo filho.

Traduz A Mandrágora, da autoria de Nicolau Maquiavel.

É internado, durante algum tempo, no Hospital de Santa Maria, na sequência de um episódio grave do foro cardíaco.

·         1977 – Organiza, para a Dom Quixote, Casa Branca Nau Preta / Felicidade na Austrália, uma coletânea que abarca poemas de trinta poetas portugueses contemporâneos, desde “Orpheu” até 1975, que, contudo, jamais foi publicada.

Edita outra antologia, intitulada Poesia Portuguesa Contemporânea, na qual colabora na seleção e notas.

A 17 de dezembro, participa no “Encontro de Poetas” que marca o início de diversas iniciativas culturais promovidas pela Casa de Mateus, nas quais participam também Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner, Pedro Tamen, Alberto Pimenta, Vasco da Graça Moura, entre outros.

·         1978 – Em colaboração com Mendes de Carvalho, escreve a peça Jesus Cristo em Lisboa, uma tragicomédia em duas partes inspirada na obra homónima de Raul Brandão e Teixeira de Pascoaes.

Colabora com o programa Perfil, produzido pela Interfilme para a RTP, diário e com a duração de 5 a 8 minutos, cujo objetivo era dar a conhecer o perfil de escritores ou artistas.

Em agosto, juntamente com Álvaro Guerra, Jorge Listopad e Raul Solnado, integra uma embaixada portuguesa ao Festival Internacional de Poesia, na então Jugoslávia.

·         1979 – Edita A Saca de Orelhas e colabora no projeto teatral de Ricardo Pais, Ninguém, uma adaptação de Frei Luís de Sousa feita por Maria Velho da Costa.

Durante o inverno viaja por Itália, ficando alojado em casa de Antonio Tabucchi, seu amigo e admirador.

Separa-se de Teresa Patrício Gouveia.

·         1981 – Passa alguns períodos de tempo em Constância, em casa de Rui de Brito, com quem vinha colaborando desde 1978.

·         1982 – Graças à ação de Vasco da Graça Moura, é publicada a obra Poesias Completas 1951/1981, que integra um novo livro, de 1981, As Horas já de Números Vestidas.

·         1983 – Adere, em conjunto com outras personalidades da vida literária e artística, a um abaixo-assinado contra a programação da RTP que acusa a empresa estatal de televisão de chantagem e coação moral.

A 7 de abril, o “Diário Popular” publica uma tomada de posição de O’Neill contra a proposta do Conselho Federal de Cultura do Brasil de extinção das cadeiras de Literatura Portuguesa nas Faculdades de Letras brasileiras.

·         1984 – É publicada a segunda edição das Poesias Completas, que inclui já a produção do poeta até ao ano de 1983. Sofre um AVC.

·         1985 – É reeditada Uma Coisa em Forma de Assim.

Em março, interrompe a sua colaboração com o “Jornal de Letras” por motivos de saúde: é internado no Hospital de Santa Maria durante oito dias para fazer uma desintoxicação medicamentosa.

·         1986 – A 9 de abril, é acometido de novo episódio cardíaco enquanto trabalha na Publinter e internado na unidade de cuidados intensivos do Hospital de Santa Cruz, sendo posteriormente transferido para o Hospital Egas Moniz, onde acaba por falecer a 21 de agosto.

Análise da ode "Temo, Lídia, o destino. Nada é certo", de Ricardo Reis

    Esta ode de Ricardo Reis é constituída por uma única estrofe de nove versos – uma nona, portanto – brancos ou soltos, de métrica irregular.
    O sujeito poético abre o poema apostrofando Lídia, para, em tom confessional, lhe dar conhecimento do seu receio face ao Destino. Qual a justificação para esse receio? A resposta é simples: o «eu» teme o incerto e o desconhecido, as fontes de todas as suas angústias: “Nada é certo.” O ser humano não está a salvo de, a qualquer momento, lhe suceder algo que transforme a sua existência, geralmente para pior. Assim sendo, qualquer coisa que façamos fora do que conhecemos, quando arriscamos e, por nós próprios, entramos no desconhecido, sentimos medo e insegurança, exatamente porque estamos a entrar no desconhecido e não sabemos o que nos espera, o que nos vai acontecer. Deste modo, devemos ter a inteligência de nos mantermos fiéis ao que conhecemos, até porque o Destino pode mudar tudo a qualquer momento, o que gera desconfiança e incerteza.
    Os deuses, graves, as forças poderosas e misteriosas que comandam os seres humanos e têm apenas acima de si o Fado / o Destino, guardam as coisas belas da vida, o que significa que nós, meros e frágeis humanos, não temos qualquer controlo sobre a nossa existência. Assim sendo, devemos recear a mudança e a novidade, que, regra geral, se operam em sentido negativo.
    Como agir, então, perante esta constatação e este estado de coisas? Na esteira da filosofia estoica e epicurista, e dado que não somos deuses, o sujeito poético aconselha Lídia a viver o presente, o momento, e a não se aventurar no desconhecido, isto é, aconselha-lhe moderação, prudência e o gozo das coisas simples da vida.
    Na parte final da ode, o «eu» lírico usa o adjetivo «parca», que pode significar «escasso», «moderado», apontando, assim, para a ideia de a vida ser escassa, isto é, breve (“E a parca vida”), como pode apontar igualmente para o apelo à prudência e à moderação. Além disso, o adjetivo remete para as Parcas, ou seja, as agentes do destino que eram responsáveis pelo fio metafórico da vida humana e que personificam o nascimento, a vida e a morte. As Parcas, filhas de Zeus e Témis ou de Nix e Érebro, escreviam o destino das pessoas numa parede de bronze e ninguém o poderia apagar. Cloto tecia os fios da vida com a sua roca; Láquesis decidia qual a extensão do fio de cada existência humana (é representada como uma matrona a desenrolar uma tira de papel onde estava escrito o destino de cada vida humana ou como uma velha coxa e feia); Átropos era a responsável por cotar o fio da vida com a sua tesoura. Em suma, Cloto fiava o fio, Láquesis media o seu comprimento e Átropos cortava-o.
    A referência às Parcas e ao facto de os seres humanos não serem deuses enfatiza a ideia da inexorabilidade do Destino e a certeza dos limites finais da existência, não comportando, pois, a exiguidade da vida as surpresas trazidas pela novidade. “Não somos deuses” constitui uma declaração sintomática onde são confrontadas, ainda que em termos de não identificação, da essência humana e da essência divina. O ser humano é cego, isto é, não conhece o que o espera, o seu destino, que é comandado pelos deuses, por isso receia o que ele(s) lhe destina(m), por isso deve valorizar a vida que lhe foi dada, por mais breve e limitada que seja, e não arriscar-se e experimentar coisas novas, que podem ser perigosas: “Não somos deuses: cego, receemos, / E a parca dada vida anteponhamos / À novidade, abismo.”

Análise do poema "A flor que és, não a que dás, eu quero"

    O poema abre com uma epígrafe em latim: “Ad juvenem rosam offerentem”, que significa “Ao jovem que oferece uma rosa”. O sujeito poético dirige-se a um tu, presumivelmente feminino, que trata metaforicamente por flor, metáfora essa que indicia a sua beleza e delicadeza, para exprimir um desejo: quer a sua essência, não o que ela tem a oferecer de superficial – “A flor que és, não a que dás, eu quero”. Segue-se uma interrogação, através da qual reclama da mulher amada o facto de esta lhe negar o que ele não pede, ou seja, o seu verdadeiro «eu». A vida humana é breve; mesmo a mais longa revela-se efémera (“Tão curto tempo é a mais longa vida”), bem como a fase da juventude, um momento da existência mais fugaz ainda dentro dela.
    O «tu» vive de forma vã, porque não se cumpre flor, ou seja, não cumpre a sua essência enquanto flor (beleza, delicadeza, harmonia…). Se, entretanto, ela morrer (atente-se nos eufemismos e perífrases de sabor clássico), não passará de sombra absurda que busca a sua essência, que o «eu» não lhe dá, velando eternamente: “Perene velarás”. O advérbio «perene» significa durante muito tempo, eternamente, enquanto «velar» quer dizer vigiar, ficar acordado durante a noite. Isto significa que essa busca será eterna.
    O início da terceira estrofe coloca-nos perante uma paisagem sombria e fria, onde há lírios a crescer em terras infernais, longe da luz do dia: “Na oculta margem onde os líricos frios / Da infera leiva crescem”. Ressalte-se o facto de os lírios serem flores exuberantes que exalam um perfume exuberante que seduz qualquer pessoa. Por outro lado, a sua flor possui um pistilo saliente, com aspeto fálico, o que remete para o campo da sexualidade. Além disso, está ligada à religiosidade e ao misticismo, daí ser usada em buquês de noivas, decorando festas de casamento e comemorações religiosas. O seu simbolismo varia também de acordo com a sua cor. Por exemplo, o lírio branco representa a pureza de corpo e alma, a inocência, a lealdade e o amor incondicional; o azul simboliza segurança, estabilidade e confiança; o amarelo remete para a amizade; o lilás representa o matrimónio e a maternidade; o laranja, a atração e a renovação amorosa; e o rosa ou vermelho, amor, desejo e sensualidade.
    Outra imagem de sabor clássico que encontramos no poema é a do rio, que, regra geral, representa a vida e a passagem do tempo. Neste caso, o «eu», o antepenúltimo e no último verso, apresenta-nos a imagem de um rio que, monotonamente, corre sem rumo, sem saber onde é o dia.

Análise da ode "A cada qual, como a estatura, é dada", de Ricardo Reis

    Cada pessoa possui uma medida de justiça que lhe é dada pelo fado, que determina a sorte de cada um, sem que haja mérito por parte de quem recebe ou tal constitua uma recompensa. A justiça, para uns, é a estatura e, para outros, a felicidade.
    Nada na vida constitui uma recompensa ou um castigo, é apenas o resultado de uma casualidade, um acaso: “Nada é prémio: sucede o que acontece.” Em jeito de conclusão, dirigindo-se a Lídia, o sujeito poético declara-lhe que o ser humano nada deve ao fado, a não ser aceitá-lo como ele é: “Nada, Lídia, devemos / Ao fado, senão tê-lo.”
    O destino é a entidade suprema, que tudo comanda e a quem todos obedecem – deiuses e seres humanos –, pelo que de nada adianta tentar evitá-lo ou contrariá-lo. Perante este cenário, a atitude adequada é aceitá-lo com resignação.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Análise da ode "Seguro assento na coluna firme", de Ricardo Reis

    Estamos na presença de uma ode de Ricardo Reis, publicada originalmente na revista “Athena”, em outubro de 1924 e incluída posteriormente na obra Odes, um projeto que Fernando Pessoa planeou publicar em cinco volumes, porém o poeta apenas concluiu o primeiro.
    Nesta ode, o «eu poético», socorrendo-se da metáfora, associa os seus versos a uma coluna firme, os quais lhe proporcionam um lugar firme (sinónimo) e duradouro no mundo, mesmo confrontado com as questões da passagem do tempo e do esquecimento. Assim, o sujeito não receia o futuro (“Nem temo o influxo inúmero futuro” – v. 3) nem o esquecimento (“o olvido”), pois a sua mente cria uma realidade que não está dependente dos reflexos do mundo, mas, sim, da arte. Os “reflexos do mundo” são as imagens que a sua mente capta das coisas externas ao «eu», mas que não correspondem à essência das coisas. A mente, quando se fixa na sua própria atividade criadora, transforma os reflexos exteriores em matéria para a sua criação, para a sua arte. Posteriormente, essa mesma arte cria o mundo, isto é, dá forma e sentido ao que é caótico e transitório. A arte não é uma criação ou projeção da mente, mas algo independente e superior.
    Nos dois últimos versos da ode, introduzidos pelo advérbio «assim», em jeito de conclusão, através de nova metáfora («placa», isto é, a sua poesia), o «eu» lírico sugere que os seus versos, a sua arte, lhe garantirão um lugar firme e duradouro no mundo. Ele grava o seu ser na placa, ou seja, os seus versos, que duram mais que o “instante externo”, quer dizer, o que sucede em seu redor, o que ocorre no exterior da sua mente, no mundo sensível e transitório, que se opõe ao seu ser, isto é, à sua essência, à sua personalidade, ao seu modo de ver e sentir as coisas. O seu ser permanecerá na placa, ou seja, na sua obra, mesmo depois de o poeta ter morrido ou esquecido. A poesia confere-lhe imortalidade.

Análise de "Esta tarde a trovoada caiu", de Alberto Caeiro

    Podemos entender este poema de Alberto Caeiro, o quarto de O Guardador de Rebanhos, datado de 10 de maio de 1914, como o real começo da obra, no seguinte sentido: no poema I, Caeiro definiu-se; no II, definiu o modo como encarava a realidade, clarificando a sua postura anti-metafísica meditativa; no III, libertou-se das suas influências literárias, pois poderiam poluir a sua escrita, se optasse pela imitação dos seus modelos. Nesta composição em concreto, Caeiro vira a sua atenção para o exterior, para a realidade, o mundo que ele capta agora através apenas das sensações.
    O sujeito poético abre o poema referindo-se à trovoada, exatamente o fenómeno natural que mais fascinava e aterrorizava Fernando Pessoa, nomeadamente os relâmpagos, como contou a sua irmã Henriqueta Dias em entrevista ao “Jornal de Letras” em 1985. Almada Negreiros contava que, certo dia, no Martinho da Arcada, café predileto do poeta, estava sentado à mesa com Pessoa quando rebentou subitamente uma fortíssima tempestade. Ele levantou-se e foi à porta do café. No momento em que retornou à mesa, Pessoa estava escondido debaixo da mesa. Almada, então, fez o seguinte: “Puxei-o. Pálido como defunto transparente. Levantei-o. Inerte senão morto. Pus-lhe os gestos de sentar-se e apoiar-se de corpo sobre a pedra da mesa.” O próprio Fernando Pessoa, em carta ao seu amigo Mário Beirão, qualifica o seu medo das trovoadas como uma “terrivelmente torturadora fobia”.
    A primeira parte da descrição do fenómeno por parte do sujeito poético é pautada pelo paganismo: “Esta tarde a trovoada caiu / Pelas encostas do céu abaixo (…) / Como alguém que duma janela alta / Sacode uma toalha de mesa, / E as migalhas, por caírem todas juntas, / Fazem algum barulho ao cair”. A metáfora sugere que existem presenças divinas por detrás desse fenómeno natural. Embora divinas, essas presenças têm hábitos humanos: o paganismo passa também pela aproximação das divindades de quem as reverencia. Essa aproximação prossegue nos versos seguintes: “Os relâmpagos sacudiam o ar (…) / Como uma grande cabeça que diz que não”.
    O sujeito poético declara não sentir medo da trovoada, nomeadamente dos relâmpagos, mesmo tratando-se de um fenómeno terrível, como indiciam as comparações com um pedregulho enorme a rolaer encosta abaixo e da chuva com alguém a sacudir as migalhas de uma toalha de mesa de uma janela aberta, que, por caírem juntas, fazem barulho ao cair, sugerindo a violência, o ruído dos trovões, bem como a intensidade da chuva, que “enegreceu os caminhos”. No entanto, dá por si a rezar a Santa Bárbara, a santa protetora contra as trovoadas, cujo dia é 4 de dezembro. Essa contradição aponta para o fingimento: se o «eu» tivesse medo, não faria sentido apelar a ser como a Natureza, dado que não se teme o que é nosso semelhante. O sujeito poético justifica essa ausência de medo por se sentir “ainda mais simples / DO que julgo que sou…”. É como se estivesse consciente de que está a passar por um processo, em quem vai abandonando a complexidade que ainda existe nele.
    Isto significa que, afinal, o pastor não se sentia verdadeiramente simples. A figura do pastor terá impressionado Fernando Pessoa pela simplicidade que lhe é associada e terá sido motivada por uma leitura de juventude, concretamente o poema “The Shepherdess”, da autoria de Alice Meynell. Rezar a Santa Bárbara é um gesto mais simples, mais comum, ou seja, é o que um pastor faria ao ver-se, e ao seu rebanho, envolvido numa tempestade com aquela intensidade. No caso de um intelectual, o apelo à religião seria ridículo e inócuo porque tratar-se-ia de nova superstição. Tal não sucede, porém, com o «eu lírico, que opta pela simplicidade.
    Depois de rezar, o sujeito lírico sugere que duvida da crença simples na Santa: “Sentia-me alguém capaz de acreditar em Santa Bárbara… / Ah, poder crer em Santa Bárbara! / (Quem crês em Santa Bárbara, / Julgará que ela é gente visível, / Ou que julgará dela?”. Se antes rezava para ser mais simples, depois de rezar, duvida até da crença simples na Santa. Na realidade, nem Santa Bárbara existe, pois a única existência é a Natureza: “(Que artifício! Que sabem / As flores, as árvores, os rebanhos, / De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore / Se pensasse nunca podia / Construir santos nem anjos…”. O sujeito poético nega o artifício da religião, que cria santos e anjos a partir da imaginação humana, por oposição à simplicidade e à pureza da Natureza, que não pensa nem constrói ficções produto da imaginação humana. Ele valoriza e identifica-se com as flores, com as árvores, com os rebanhos, elementos naturais que não pensam, não sabem nada de santos, nomeadamente de Santa Bárbara, a padroeira contra as tempestades, mas que existem harmoniosamente com os demais elementos.
    Recorrendo ao modo condicional, o sujeito poético coloca a hipótese de “julgar que oi sol / É Deus, e que a trovoada / É uma quantidade de gente / Zangada por cima de nós…”, ou seja, de seguir o caminho daqueles que explicavam fenómenos e elementos da Natureza por meio da religião, da crença em entidades divinas. Encontramos aqui uma dupla visão: a de certos homens que inventam deuses e mitos para explicar aquilo que não compreendem e a do «eu», que nega essas crenças (a negação é logo antecipada pelo uso do condicional), valorizando a sensação e a observação da Natureza, sem a tentar compreender, recorrendo à razão e à fé. Daí que o sujeito lítico qualifique esses homens como “doentes e confusos e estúpidos” (enumeração e polissíndeto): “(…) como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade / E saúde em existir / Das árvores e das plantas!”. A antítese (por exemplo, os outros vs. «eu»; doença vs. saúde) torna claro o contraste entre a estupidez e a doença dos outros homens, por recorrerem à religião e à crença para conseguirem explicar o que não compreendem, e a simplicidade e a saúde em simplesmente existir por parte dos elementos naturais, que não pensam e, por isso, não sofrem, limitando-se a existir. O sujeito lírico vê o erro dos outros homens e deixa de ser seu semelhante. Como? Pensando nisso.
    Na última estrofe, o «eu» revela que o facto de pensar o deixa triste (“menos feliz”), sombrio, doente e soturno, ou seja, o facto de pensar nesse contraste entre a sua visão da Natureza e a dos outros homens. Seguidamente, ele compara esse seu estado de espírito com um dia “em que todo o dia a trovoada ameaça / e nem sequer de noite chega.”, isto é, a trovoada ameaça, mas não chega, não se concretiza, ou seja, um dia de uma expectativa frustrada e de angústia permanente. Pode depreender-se que o sujeito poético se sente infeliz por não conseguir comunicar com os outros, por não comungar nem compreender a sua fé.
    O sujeito lírico quer ser natural, quer ser como a Natureza, porém acaba por reconhecer que não pode ser somente a Natureza, visto que é, afinal, e será sempre, um ser humano. É nessa qualidade que deverá encontrar o seu lugar na Natureza. “Se procurar a sua própria completa anulação, nunca poderá fazer parte de algo maior do que ele mesmo.” Deste modo, ficará no limbo: “(…) sombrio e adoecido e soturno / Como um dia em que todo o dia a trovoada ameaça / E nem sequer de noite chega…”.

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Análise do poema "Aquela senhora tem um piano", de Alberto Caeiro

    Este poema é constituído por dois tercetos de versos brancos ou soltos e métrica irregular.

    Na primeira estrofe, o sujeito poético estabelece uma analogia entre o som do piano e o produzido pelo curso das águas dos rios e das árvores, para constatar que o instrumento musical, quando tocado por uma determinada senhora, produz um som agradável, porém bastante inferior ao produzido pelos elementos da Natureza (atente-se na sua personificação, traduzida pelo nome «murmúrio», bem como na metáfora clássica do «correr dos rios»). O som do piano é, de facto, agradável, todavia não é natural, simples e verdadeiro, como o da Natureza. Tudo o que é humano não é natural. Tudo o que é humano não é natural. À semelhança do que sucede com o piano, que imita os sons da natureza nas suas melodias, o pensamento humano imita o natural movimento das coisas. Nesta estrofe e neste poema, o «eu» poético defende novamente a objetividade.

    Além disso, há uma oposição entre «Natureza» e pensamento e o piano constitui uma metáfora deste contraste. Dado que a Natureza produz sons mais melodiosos, não é necessário um piano para ouvir belos sons, isto é, não é preciso pensar para viver. Além disso, o piano é um intermediário entre o ser humano e a Natureza. O piano representa um bem cultural, uma construção humana, que se opõe aos bens naturais – o correr dos rios e o murmúrio das árvores. Assim sendo, o «eu» descarta a necessidade do piano, preferindo a fruição dos sons da Natureza. O melhor é ter ouvidos para os escutar.

    Caeiro vive de impressões, sobretudo visuais, todavia, neste poema, o foque recai sobre as auditivas. Por outro lado, são frequentes na poesia de Caeiro as comparações que têm como segundo elemento de comparação um elemento da Natureza e que servem para concretizar ideias abstratas.

    Em suma, embora os objetos e as criações humanas ofereçam prazer e conforto, eles ficam aquém da complexa e rica experiência oferecida pela Natureza: há um contraste entre o artificial, o construído, e o natural e simples.

    A segunda estrofe abre com uma interrogação retórica: “Para que é preciso ter um piano?” (v. 4). De facto, o piano é desnecessário, porque há a Natureza, que ultrapassa tudo o que o ser humano pode construir para a compreender. O essencial é usufruir da Natureza através dos sentidos, neste caso da audição, e amá-la. Não é necessário um instrumento musical – um objeto material musical construído – quando se tem o que é natural, uma forma mais autêntica de existência humana: a beleza e a pureza da Natureza, simples e natural. Amar é aceitar incondicionalmente, ao mesmo tempo que nos oferecemos por inteiro, sem compromisso, mesmo que tenhamos medo de falhar ou de ser magoados.

    Para concluir, esta composição poética recorda uma passagem do Livro do Desassossego que reza o seguinte: “Quando vim primeiro para Lisboa, havia, no andar lá de cima de onde morávamos, um som de piano tocado em escalas, aprendizagem monótona da menina que nunca vi. Descubro hoje que (…) tenho ainda nas caves da alma (…) as escalas repetidas, tecladas, da menina hoje senhora outra, ou morta e fechada num lugar branco onde verdejam negros os ciprestes. Eu era criança, e hoje não o sou.”. O piano, neste passo, parece constituir uma referência simbólica à mãe de Fernando Pessoa, tendo em conta que O Livro do Desassossego se debruça sobre a sua infância perdida. Ela tocava piano e o poeta recorda essas notas tocadas em sua casa, durante a idade infantil. Dado que recusa a necessidade do piano, denega também a necessidade da memória do piano (da própria mãe a tocá-lo, no que isso teria de reconfortante). Deste modo, os versos “Para que é preciso ter um piano? / É melhor ter ouvidos / E amar a natureza” podem ler-se como um lamento triste em que Pessoa, aparentemente, recusa a memória reconfortante.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

Análise do poema "Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia", de Ricardo Reis

    O poema encontra-se organizado no respeito pelo processo usado em determinadas odes de Horácio; quer dizer, constitui-se como um símile de valor parenético (ou seja, que encerra uma moralidade), tomando por base um exemplum.


    Relativamente à estrutura interna, o poema divide-se (pelo que acima foi referido) em duas partes: o exemplum (vv. 1 a 64) e a moralidade (vv. 65 a 105).


  
         1.ª parte: Exemplum (vv. 1 - 64)

    Embora seja um texto em verso (decassílabos e hexassílabos brancos), por isso com características evidentes do género lírico, é possível também detetar no poema alguns aspetos característicos do género narrativo, concretamente a presença de uma ação, narrador, tempo, espaço e personagens.

    A história (ação) narrada no texto prende-se com factos ocorridos durante a invasão de uma cidade da Pérsia. Tais factos, apesar da sua brutalidade e sanguinolência, foram incapazes de, por mais do que um leve e passageiro instante, desviar a atenção de dois jogadores de xadrez que, indiferentes a tudo o que os rodeava, prosseguiram serenamente o seu jogo.

    O narrador é o próprio...


    A análise completa do poema pode ser encontrada aqui: análise-de-ouvir-contar-que-outrora.

 

sábado, 20 de janeiro de 2024

Análise do poema “Presságio” ou “O amor, quando se revela”

    O poema “Presságio” foi escrito por Fernando Pessoa em 24 de abril de 1928, já na fase final da sua vida (13 de junho de 1888 – 30 de novembro de 1935).

    O tema da composição poética é o amor, mais concretamente a dificuldade em o revelar à pessoa amada (em última análise a impossibilidade de viver um amor correspondido), abordado em cinco quadras de redondilha maior (bem ao gosto popular), com rima cruzada, segundo o esquema rimático ABAB.

    Na primeira quadra, o sujeito poético apresenta o mote do texto, isto é, o tema que vai ser desenvolvido, bem como o seu posicionamento face...


    Podes encontrar a análise completa do poema aqui: análise-do-poema-presságio.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

Análise do poema "Ao entardecer, debruçado pela janela"


    Este poema é o terceiro da obra O Guardador de Rabanhos, um livro escrito entre 1911 e 1912, caracterizado por um estilo livre, sem rima nem métrica.

    O início da composição apresenta-nos um sujeito poético, debruçado pela janela, a ler O Livro de Cesário Verde. Ora, a leitura é uma atividade solitária por excelência e que exige concentração, introspeção, e Caeiro admitia que lia debruçado na janela, ao entardecer, o momento do dia que parece proporcionar a melancolia: a imagem é a de um poeta solitário – Alberto Caeiro – que lê outro poeta com tendências taciturnas – Cesário Verde.

    A seleção da obra para leitura não é casual. De facto, são evidências as similitudes entre a poética de ambos os poetas: a relação com a Natureza, as sensações, o deambulismo, etc. Caeiro lê O Livro de Cesário Verde, porque se identifica com ele. Note-se, por outro lado, a forma intensa e dedicada como Alberto se dedica à leitura, como o mostra o facto de ler até lhe doerem os olhos. O «eu» poético está totalmente focado e entregue à leitura. A identificação do título da obra indicia a sua admiração e respeito por Cesário, mas também a sua identificação com ele: ambos são poetas da Natureza e das sensações e observam o mundo com simplicidade e sem o racionalizar.

    Voltando ao verso inicial do poema, este coloca-nos perante o momento (“Ao entardecer”) e o local (a janela) em que se opera a leitura. O «eu» poético está...


A análise completa pode ser encontrada no link seguinte: análise-de-ao-entardecer.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Análise do Poema XIV de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro


    O poema XIV de O Guardador de Rebanhos é constituído por duas estrofes, uma sextilha (isto é, uma estrofe constituída por seis versos) e um terceto. Como seria de esperar num poeta que não concluiu a antiga escola primária e que pretende escrever ao correr da pena, de forma espontânea, não pensando no que escreve, a composição caracteriza-se pela irregularidade formal. Assim, como já foi referido, há irregularidade estrófica, visto que as estrofes contêm um número diferente de versos entre si (seis e três). Por outro lado, os versos são todos brancos ou soltos, isto é, não rimam uns com os outros. Além disso, a métrica é igualmente irregular, visto que encontramos versos com diferente número de sílabas: 12 (v. 1), 4 (v. 7), 13 (v. 5), etc.

    No que diz respeito à mensagem do poema, o sujeito poético inicia-o afirmando que não se importa com as rimas. O que significa esta afirmação / negação? Em primeiro lugar, significa que ele se assume como um poeta (já o tinha feito, aliás, logo na primeira composição poética de O Guardador de Rebanhos). Em segundo lugar, significa que, nessa qualidade, desvaloriza a importância da rima nos seus textos, na sua poesia. Mas por que razão tal sucederá? A explicação / justificação surge ainda no primeiro verso, estendendo-se ao seguinte. De facto, o «eu» declara que não “Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra”. O que quer isto dizer e qual a relação com o ato de escrever poesia? Fazer rimar duas palavras (isto é, colocar no texto duas – ou mais – palavras que têm um final semelhante – ou seja, que rimam) não é natural, e fundamenta esta ideia através de uma analogia com a Natureza, que também não cria entidades iguais (como, por exemplo, árvores) “uma ao lado da outra”. Tal sucede porquê? O homem pensa quando cria (neste caso, cria / escreve poesia); a Natureza, não, daí que crie de forma simples e natural.

    O terceiro verso assenta numa comparação entre o sujeito lírico e a mesma Natureza: “Penso e escrevo como as...


    Podes encontrar a conclusão da análise aqui: análise-poemaxiv-o-guardador-de-rebanhos.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Apreciação crítica: análise do quadro "Golconde", de René Magritte


 Plano de texto


Introdução (1.º par.) – Identificação da pintura, do autor e aspetos da obra.


Desenvolvimento: descrição, análise e avaliação:

2.º par.: do cenário;

3.º par.: das figuras humanas;

4.º par.: do tema do quadro.


Conclusão (5.º par.) – Ideia central retirada sobre a pintura.


Introdução

 
Título:
 
Um mundo diferente


    O quadro “Golconde”, pintado em 1953 por René Magritte, poeta surrealista de origem belga, nascido em 1898 e falecido em 1967, representa uma cena intrigante, que rompe com as leis do mundo que conhecemos e nos traz para uma realidade marcada pelo maravilhoso.


Desenvolvimento
Cenário

    A pintura retrata um cenário urbano e tem como pano de fundo um conjunto de prédios alinhados, que preenchem a parte inferior e lateral da tela. Foi engenhosa a ideia de representar, deliberadamente, edifícios monotamente semelhantes: retilíneos, germinados, formando um contínuo. Todas as paredes estão pintadas da mesma cor – castanho claro –, as janelas possuem todas a mesma forma retangular, os telhados exibem o mesmo tom de vermelho. Certo é que a conjugação das cores torna este conjunto arquitetónico harmonioso. Por outro lado, nesta selva de cimento, o céu, pintado com matizes atraentes de azul claro, é o elemento que confere vida à cena representada.


Desenvolvimento
Figuras

    Esta paisagem citadina revela-se claustrofóbica também porque o espaço deixado vazio pelos edifícios é preenchido por dezenas de figuras humanas masculinas que se encontram suspensas no ar, do topo à base da pintura, do primeiro ao mais remoto plano. Não há sinais de movimento, mas as personagens podem ser sempre a mesma figura: um homem de sobretudo preto e com um chapéu de coco também preto. Deste modo, cria-se a ilusão, bem conseguida, de as personagens se multiplicarem infinitamente.


Desenvolvimento
Tema

    Numa das interpretações possíveis, “Golconde” representa, de forma genial, a sobrepopulação das cidades. Efetivamente, podemos nele ver uma crítica bem construída ao facto de as cidades serem lugares claustrofóbicos (daí os prédios) povoados por um número excessivo de pessoas. Assim se sugere que este não é o espaço harmonioso para o ser humano viver. Mais ainda, o facto de todos os homens se assemelharem é um indício preparado com grande subtileza para denunciar que a cidade gera pessoas iguais, monotamente indistintas.


Conclusão

    Concluindo, este é um quadro fascinante que representa uma cena de um mundo diferente do nosso, mas que nos refletir sobre o nosso próprio mundo.

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