Português: 11/04/23

terça-feira, 11 de abril de 2023

Mudam-se os tempos, mudam-se os presentes


Marian Kamensky

Análise do capítulo X de Amor de Perdição

  Síntese dos capítulos anteriores
 
Capítulo V
 
            Em casa de Teresa, celebra-se o seu aniversário; em simultâneo, a jovem prepara-se para se encontrar com Simão. Este e Baltasar encontram-se e enfrentam-se. O fidalgo regressa a casa de João da Cruz, que lhe explica a dívida que tem para com o seu pai, Domingos Botelho. É por esta razão que o ferrador, antes de acolher Simão, tinha recusado assassinar o jovem a pedido de Baltasar.
 
Capítulo VI
 
            Dá-se nova emboscada noturna de Baltasar e de dois criados seus a Simão, que está acompanhado por João da Cruz e pelo cunhado deste, quando se vai encontrar com Teresa. O confronto é violento: os criados de Baltasar são mortos e Simão é ferido.
 
Capítulo VII
 
            Simão recolhe a casa de João da Cruz e, enquanto é tratado ao ferimento, troca cartas com Teresa, cujo pai a encerra num convento. A fidalga fica isolada do mundo e, no convento, apercebe-se de intrigas que existem entre as religiosas.
 
Capítulo VIII
 
            Maria trata Simão e torna-se sua confidente. O jovem fica a saber que Teresa se encontra no convento e decide resgatá-la. Em simultâneo, apercebe-se de que a dedicação de Mariana é um verdadeiro sentimento amoroso.

Capítulo IX

            Simão continua a ser protegido por João da Cruz e por Mariana e vai recebendo cartas de Teresa. Enquanto isso, Tadeu de Albuquerque trata da mudança da filha para um convento do Porto. Simão é informado pela sua amada e envia-lhe uma carta por Mariana, que se prontifica para a entregar.


Contextualização do capítulo
 
            O capítulo X é um dos mais extensos do Amor de Perdição e ocupa um lugar destacado na ação, visto que encerra um primeiro momento da novela com o assassínio de Baltasar e a posterior prisão de Simão, determinando o sentido irreversível da ação, já que a condenação do fidalgo ao cárcere leva à separação definitiva dos amantes.
            A partir deste momento, inicia-se, no capítulo seguinte, uma segunda parte da novela: a perdição de Simão e de Teresa. De facto, ele é preso na Cadeia da Relação do Porto, de onde partirá para o degredo e para a morte, enquanto Teresa é encerrada no convento de Monchique, no Porto, e ali morre


Estrutura do capítulo
 
1.ª parte: Encontro de Mariana e Teresa no convento de Viseu (ll. 1-104).
 
2.ª parte: Acontecimentos vividos em casa de João da Cruz (ll. 105-218).
 
3.ª parte: Deslocação de Simão a Viseu e morte de Baltasar (ll. 219-343).
 
 
1.ª parte: Encontro de Mariana e Teresa no convento
 
1. A crónica de costumes – a crítica – Diálogo inicial
 
            No início do capítulo, a propósito da ida de Mariana ao convento para entregar a Teresa uma carta de Simão, o narrador retoma a crítica aos comportamentos dos padres e à vida conventual. Que aspetos são criticados?
 

a) O comportamento devasso e libidinoso do padre e o não cumprimento do voto de castidade / do celibato.

Quando Mariana chega ao mosteiro, o padre capelão tece comentários libidinosos para a madre prioresa sobre a figura da jovem: “Que boa moça! – tornou ele, com um olho nela e outro no raro…”; “… mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele todo da rapariga.”

b) A mundaneidade das freiras.

i) as aspirações amorosas e o ciúme pela atenção que o padre dá a Mariana (que não se coadunam com a sua condição de religiosa): “… a ciumosa prioresa se estava remordendo.”; “E retirou-se com o coração mal ferido, e o queixo superior escorrendo lágrimas… de simonte.”;
ii) a vaidade;
iii) os vícios da bebida e do tabaco: “… disse o padre capelão […] praticando com a prioresa sobre a salvação das almas e de umas ancoretas de vinho do Pinhão, que ele recebera naquele dia e do qual tinha engarrafado um almude para tonizar o estômago da prelada.”; “… o queixo superior escorrendo lágrimas de simonte”.

c) Os roubos dentro do convento (diálogo entre Mariana e Teresa).

“Eu não posso escrever-lhe, que me roubaram o meu tinteiro…”.

 
            Neste passo, avulta a caracterização de Mariana, que será desenvolvida ao longo do capítulo, noutros momentos.
            Assim, a filha de João da Cruz revela-se discreta e resoluta, resistindo aos avanços do padre capelão, a quem responde com firmeza, segurança e indiferença, atitude que leva o religioso a aludir ao seu «mau génio».

2. Diálogo entre Mariana e Joaquina
 
            No diálogo com Joaquina e perante a curiosidade desta, Mariana conserva-se leal a Simão, não esclarecendo o assunto que a levou a visitar o convento e a desejar falar com Teresa.

3. Diálogo entre Mariana e Teresa
 
3.1. Caracterização de Mariana
 
            Mariana, uma mulher do povo, simples e bonita, constitui-se como uma intermediária discreta, o elo de ligação entre Simão e Teresa, daí ter ido ao encontro desta no convento de Viseu para lhe entregar uma carta do académico.
            O diálogo travado entre ambas evidencia a nobreza de caráter e os sentimentos da filha do ferrador: o amor por Simão e o sofrimento que suporta em silêncio por esse amor (dado que não é correspondido) (“Se eu fosse amada como ela…” – esta oração subordinada adverbial condicional demonstra, por outro lado, que a personagem tem consciência de que é impossível concretizar esse seu amor e mostra o seu ciúme); o respeito (as formas de tratamento: “Vossa excelência”, “minha senhora”); a dedicação, a abnegação, a generosidade, o orgulho e a dignidade, ao recusar a oferta de Teresa de um anel de ouro como pagamento pelo seu «ofício» (“A receber alguma paga há de ser de quem me cá mandou. Fique com Deus, minha senhora, e oxalá que seja feliz.”).
            Consequência do seu amor, Mariana sente ciúmes da beleza de Teresa: “Não lhe bastava ser fidalga e rica; é, além de tudo, linda como nunca vi outra!”
            Durante o caminho de regresso a casa, Mariana saltita entre a lealdade a Simão (a preocupação em não esquecer nenhuma palavra de Teresa) e o ciúme pela fidalga (era amada e bela). Os conselhos que dá a Simão e as suas intervenções no diálogo entre este e João da Cruz evidenciam o seu desejo de o proteger. Intuitiva, acredita nos maus pressentimentos do seu coração. Mais perspicaz do que o pai, ou mais atenta, não se deixa enganar por Simão e sabe que ele irá ao encontro de Teresa. Perante isto, resta-lhe o conforto da religião.
            Mariana revela abnegação ao auxiliar Simão a comunicar com Teresa, ainda que o amor que os une lhe cause sofrimento.
            Por outro lado, sente-se inferior a Teresa, tanto social como fisicamente, embora seja ela própria uma mulher atraente, como se comprova pela forma como se dirige a Teresa e pelos seus pensamentos.
            Ela revela-se também bastante perspicaz ao identificar imediatamente Teresa, sem a conhecer, e na forma como se relaciona com ela.

 
3.2. As recomendações de Teresa
 
            Teresa, conhecedora do caráter do amado, recomenda a Simão “que não se aflija” e, sobretudo, que não a procure, que não vá ao seu encontro. De facto, dado o caráter impulsivo do académico, a jovem receia que ele se exponha ao perigo e intui que possa cometer “uma loucura com resultados funestos”, o que, de facto, vem a suceder, comprovando-se, assim, que a fidalga o conhecia muito bem.

3.3. Relações entre as personagens
a) Simão e Teresa: amor correspondido, mas contrariado.
b) Simão e Mariana:
- Simão Mariana: amizade, estima;
- Mariana Simão: amor não correspondido.
c) Teresa e Mariana:
- Teresa Mariana: respeito e agradecimento;
- Marian Teresa: rivalidade e ciúme.
 
3.3.1. Simão – Teresa – Mariana
 
            Este diálogo põe em evidência um triângulo amoroso que pode ser representado da seguinte forma:
            Este esquema mostra que a relação entre Simão e Teresa é de reciprocidade, ou seja, de modo simples, o académico ama a filha de Tadeu Albuquerque e esta ama-o também, não obstante o facto de se tratar de um amor proibido por ódios familiares.
            No que diz respeito a Mariana, esta ama o filho de Domingos Botelho, mas não é correspondida. Apesar disso, e mesmo sabendo que iria conhecer Teresa, a sua «rival», o que a deixa apreensiva, desconfortável e até ciumenta, coloca o seu amor e a sua lealdade por Simão em primeiro lugar e a tudo se presta para o fazer feliz e para a ajudar, mesmo que isso signifique a sua felicidade ao lado de Teresa e, por consequência, a sua infelicidade.

3.3.2. Teresa e Mariana
 
            Este é o único passo da obra em que Teresa e Mariana se encontram e dialogam, de forma contida, emotiva e reservada. As duas possuem origens sociais diferentes, o que é visível no facto de Mariana tratar a fidalga com deferência e formalidade (“Sim, minha senhora.”), no entanto há algo em comum entre ambas e que as une: o amor a Simão e a preocupação de o proteger de si mesmo e dos outros. A postura das duas caracteriza-se pela determinação, pela honra e pela abnegação por amor, traços que as enquadram no campo das heroínas românticas.

 
2.ª parte: Acontecimentos vividos em casa de João da Cruz
 
1. Diálogo entre Simão, João da Cruz e Mariana
 
1.1. Caracterização de Mariana – discurso e atitudes
 
            O discurso de Mariana neste passo da obra está repleto de presságios negativos relativos ao destino de Simão: “– É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa!”; “– Até ao Juízo Final…”).
            Por outro lado, as suas atitudes estão alinhadas com esse discurso prenhe de presságios, visto que, preocupada, fica atenta aos passos e movimentos de Simão, apercebendo-se da sua saída.
            Mais tarde, chora e reza por ele, antecipando uma desgraça, que se vem a confirmar posteriormente quando ele assassina Baltasar: “ajoelhou orando com o fervor das lágrimas”.

1.2. Caracterização de João da Cruz

            João da Cruz é um homem inculto, rude e “rústico”, com uma visão conservadora dos papéis sociais do homem e da mulher. Estes traços da personagem são confirmados pelo seu discurso, como se pode comprovar pela linguagem simples e popular que usa (“que o levem trinta milhões de diabos!”), pelos provérbios e sabedoria popular (“D’hora a hora Deus melhora.”), pelas imagens (“Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona d’água”) e pelas metáforas (“quatro homens, que são quatro dragões”). Esta rudeza manifesta-se ainda na forma como se dirige à filha, mandando-a calar.
            Note-se que o discurso desta personagem corresponde ao modo como Camilo Castelo Branco abordou a questão da linguagem e do estilo na obra: diálogos espontâneos e vivos.
            Essa visão conservadora de João da Cruz é exemplificada pelo facto de considerar que o amor por uma mulher não justifica os riscos que Simão está disposto a correr por causa do sentimento por Teresa. No entanto, mostra-se solidário e bondoso com o filho de Domingos Botelho e coloca a sua coragem e valentia ao seu dispor, dispondo-se a tudo para o ajudar, colocando-se em perigo quando, por lealdade, tenta facilitar-lhe a fuga.
            A sua visão do amor e dos relacionamentos amorosos é igualmente conservadora, visto que considera que o amor de Simão por Teresa é exagerado e fá-lo perder a razão e o discernimento, visto que, na sua opinião, a um fidalgo rico como ele não faltarão mulheres belas e com dote. E acrescenta que, se o destino assim o quiser, Teresa será sua.

1.3. A carta de Simão
 
1.3.1. Funções da carta
 
            De acordo com o professor Carlos Reis (in Leituras Orientadas, Porto Editora), o aluno contemporâneo terá dificuldade em compreender o significado da carta numa história de amor, dado que atualmente trocamos mensagens de forma rápida e direta, nomeadamente através de telemóvel e das redes sociais. Todavia, na época em que Simão e Teresa viveram não existia sequer telefone e muito menos internet. Por outro lado, os dois amantes estavam proibidos de contactar entre si, pelo que a carta era a única forma de contacto entre ambos e, mesmo assim, com grande dificuldade. Por isso, na comunicação epistolar entre Simão e Teresa verifica-se o seguinte:

A carta é uma espécie de diálogo escrito à distância, em que a mensagem chega diferida, ou seja, muito depois de ter sido escrita. Repare-se no que escreve Simão no final da carta: “À hora em que leres esta carta…”.

As cartas entre Simão e Teresa são cartas de amor, existindo nelas uma subjetividade intensa e um confessionalismo muito forte; as personagens expressam os seus sentimentos e o estilo mostra o seu estado de espírito.

A carta é um objeto material. Escrever uma exigia papel, tinta e uma certa privacidade (por vezes, no convento, Teresa é impedida de escrever a Simão; chegam até a roubar-lhe o tinteiro).

A carta é um documento que atesta a relação entre duas pessoas. O narrador apoia-se nas cartas para contar a história, sublinhando assim a sua suposta veracidade.

As cartas trocadas entre o par amoroso revelam o seu mundo interior e a forma como vivem o amor que os une. Por outro lado, tornam mais presente o drama vivido por eles e, assim, desperta o leitor para a injustiça contra eles cometida.


1.3.2. Análise da carta
 
1.º) Através da carta, Simão confessa emoções intensas e autênticas, como se estivesse a fazer uma confissão final.
 
2.º) A carta, num tom de despedida, inicia-se com a frase “Considero-te perdida, Teresa.” De facto, a clausura no convento ditou a separação dos amantes.
 
3.º) A carta é dominada pelas ideias de perda e morte: “O sol de amanhã pode ser que eu o não veja. Tudo, em volta de mim, tem uma cor de morte. Parece que o frio da minha sepultura me está passando o sangue e os ossos.” Claramente, Simão parece antecipar a sua morte.
 
4.º) Inconformado com a possibilidade de viver sem Teresa, Simão deixa-se arrastar pelo sentido da honra e pelo desejo de vingança: “Poderia viver com a paixão infeliz; mas este rancor sem vingança é um inferno.”
 
5.º) Os ciúmes de Baltasar cegam-no e anuncia desde já a sua intenção de matar o primo de Teresa: “Ficarás sem mim, Teresa; mas não haverá aí um infame que te persiga depois da minha morte. Tenho ciúmes de todas as tuas horas.” É a consciência de que esse ato – o de assassinar Baltasar – o levará à perdição que faz com que a ideia de morte perpasse toda a missiva.
 
6.º) Por outro lado, a morte constitui a única possibilidade de realização do amor, dado que não é possível na terra: “Hás de pensar com muita saudade no teu esposo do Céu, e nunca tirarás de mim os olhos da tua alma…”. Assim sendo, para Simão, o amor supera os limites terrenos e pode realizar-se num plano espiritual. Deste modo, o sentimento amoroso é sacralizado, na esteira do Romantismo.
 
7.º) Simão tem consciência dos efeitos diferidos da sua carta: ele pensa que Teresa só lerá a carta quando ele tiver morrido: “Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo…”.
 
8.º) O amor de Simão e Teresa é, pois, associado ao sofrimento, à dor, ao sacrifício, à desgraça, à perda e à morte. É uma espécie de religião – a religião do amor –, como se deduz das palavras do próprio filho de Domingos Botelho: “Tu deras-me com o amor a religião, Teresa”.
 
9.º) A linguagem da carta está cheia de imagens de tristeza, de dor e de morte, como se pode confirmar pelos seguintes exemplos:
. “Uma cor de morte”;
. “O frio da minha sepultura”;
. “A minha paixão não se conforma com a desgraça”;
. “Só o receio de perder-te me mata”.
 
10.º) A carta, em suma, é dominada por dois grandes temas: 1.º) a vivência do amor como proibição, por causa dos ódios entre as famílias de Teresa e Simão e da consequente separação a que os amantes são obrigados; 2.º) os efeitos da separação por causa da ausência da pessoa amada: a perdição – a morte que o fidalgo prevê ao longo de toda a missiva.
 
11.º) Importância da carta: esta missiva permite conhecer o estado emocional de Simão antes de se dirigir a Viseu e antecipa o desenlace trágico da relação amorosa entre o fidalgo e Teresa, repetindo a ideia de morte (atentar no campo lexical de morte).
 
1.4. Simão não consegue terminar a carta por causa da profunda emoção que a inunda (“Não o deixaram continuar as lágrimas…”) e da entrada de Mariana com a ceia, cujo discurso está prenhe de presságios negativos, que apontam para a ideia de morte: “– É a última vez que ponho a mesa ao senhor Simão em minha casa!”; “… parece que não o tornarei a ver…”; “– Até ao Juízo Final…”. As suas atitudes estão em consonância com esses presságios, visto que ela fica atenta aos passos de Simão, apercebendo-se da sua saída: “Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a fresta, lateral à porta da varanda, se abriu, e a voz de Mariana lhe disse…”. Depois da partida do fidalgo, a filha do ferrador, que antes lhe tinha pedido que não fosse ao encontro de Teresa (“– Não saia esta noite, nem amanhã.”), chora e reza por ele (“ajoelhou orando com o fervor das lágrimas”), antecipando a desgraça que se aproxima.
         Anteriormente, desesperada por o não conseguir demover da sua intenção, Mariana vai contar ao pai as intenções do fidalgo. João da Cruz tenta também dissuadi-lo e oferece-se para o acompanhar quando não o consegue. Simão diz-lhe, então, que mudou de ideias e desistiu de se deslocar a Viseu de imediato. O ferrador acredita no jovem, mas o instinto de Mariana fá-la desconfiar e aconselha o pai a vigiá-lo. De facto, às onde da noite Simão é surpreendido por Mariana saltar a varanda do seu quarto.
 
1.5. No momento em que é surpreendido por Mariana, Simão reflete sobre a dedicação da filha do ferrador, que considera o seu “anjo da guarda” e é guiada pelo amor por si. Por outro lado, o fidalgo tem consciência de que deveria seguir os conselhos de prudência que antes ela lhe tinha dado.
 
1.6. Note-se que, no capítulo IV, Simão considerara Teresa como “o seu bom anjo”, o que mostra a faceta de herói romântico do jovem. De facto, perceciona tanto Teresa como Mariana como anjo(s), por causa da influência que ambas têm na sua maneira de ser e de viver. Assim, idealiza a amada por ela ser capaz de o fazer mudar a sua maneira de agir e a controlar a sua impulsividade e instinto violento e Mariana por zelar incondicionalmente pelo seu bem-estar.
 
 
3.ª parte: Deslocação de Simão a Viseu e Morte de Baltasar
 
1. Efeito das referências temporais: enquanto Simão espera, junto ao convento, o narrador dá-nos várias referências temporais – “Era uma hora”, “quatro horas”, “quatro horas e um quarto”, “quatro horas e meia”, “momentos depois”. Esta pormenorização e concentração do tempo sugerem o progressivo aumenta da angústia e da ansiedade de Simão e o aumento da tensão, até ao confronto com Baltasar.
 
2. Relação entre a alvorada e o estado de espírito de Simão: a relação entre estes dois aspetos é, simultaneamente, de semelhança e de contraste. Assim, inicialmente, a natureza apresenta cores associadas ao fogo (“O horizonte passara de escarlate…”; “A púrpura, da aurora, como lavareda enorme…”), que espelham o ódio de Simão por Baltasar e a violência latente em si. Mais tarde, o dia inicia-se “alvacento”, cheio de “partículas de luz”, exibindo “as maravilhas do repontar dum dia estivo”, traços que contrastam com o estado de alma do protagonista.
 
3. A chegada da comitiva e o encontro entre Teresa, o seu pai e o seu primo é-nos dada pela perspetiva de Simão.
 
4. Caracterização de Baltasar: Baltasar é um homem vaidoso e caprichoso (“… bem-composto de figura e caprichosamente vestido à castelhana…”); arrogante e prepotente pela forma como repreende o tio, culpando-o pela ousadia de Teresa, e como encara a figura da mulher, totalmente submissa ao homem (“Se meu tio a obrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la agora submissa, e ela não se julgaria autorizada a escolher marido.”).
 
5. Caracterização de Tadeu de Albuquerque: Tadeu surge em cena bastante emocionado (“Tadeu enxugou as lágrimas…”), frágil e debilitada, amparado por Baltasar (“… encostado ao braço de Baltasar Coutinho.”; “O velho denotava quebranto e desfalecimento a espaços.”). Visado pelo sobrinho no que diz respeito à educação de Teresa, procura convencê-la a reconsiderar a relação com Simão (“– Queres ir para tua casa, e esquecer o maldito que nos faz a todos desgraçados?”).
 
6. Caracterização de Teresa: Teresa, perante o último apelo do pai, mantém-se inabalável, digna e decidida a conservar e defender o seu amor por Simão (“– Não, meu pai. O meu destino é o convento. Esquecê-lo nem por morte. Serei filha desobediente, mas mentirosa é que nunca.”).
 
7. Confronto entre Simão e Baltasar
 
7.1. Diálogo entre Simão e Baltasar
Vivo, tenso, intenso, emotivo e violento e de poucas linhas, retrata os insultos e ofensas trocados entre ambos, que culminarão no assassinato deste (“infame”, “assassino”, “parvo”, “vilão”, “cobarde”, “sem dignidade”).
A linguagem usada pelas personagens traduz a tensão do momento:
. o campo lexical da área conceptual do insulto (“infame”, “assassino”, “parvo”, etc.);
. a alternância entre o tratamento por “vós” e “tu” (“sua senhoria”, “tu podes”), salientando a pretensa superioridade de Baltasar;
. as frases exclamativas e interrogativas.
Funcionalidade do diálogo: fazer avançar rapidamente a ação.
 
7.2. Caracterização de Baltasar
Baltasar é o anti-herói, movido pela mesquinhez, pela vaidade e pela prepotência.
É por isso que é dele, num discurso agressivo, que partem os insultos, as ameaças dirigidos a Simão, o seu rival.
Ao ser acusado de cobardia por Simão (“Reputo-o tão cobarde, tão sem dignidade…”), sente a sua honra posta em causa e, por isso, enfurece-se e ataca o fidalgo, que lhe desfere um tiro mortal na cabeça (“… Baltasar tinha o alto do crânio aberto por uma bala que lhe entrara na fronte.”).
Trata Simão por tu, ao contrário deste, que se mostra digno e superior ao tratá-lo por “Sua Senhoria”.
Em suma, Baltasar é uma figura arrogante, prepotente (“– Já fora da minha presença!”) e hipócrita; irónica (quando se dirige a Teresa, por exemplo. “– Fala comigo, prima Teresa? – disse Baltasar, risonho.”); insultuosa, agressiva e violenta (“– Infame, e infame assassino!”; “Baltasar Coutinho lançou-se de ímpeto a Simão. Chegou a apertar-lhe a garganta nas mãos…”).
 
7.3. Simão, o herói romântico
 
            A partir de uma figura real, Camilo Castelo Branco compõe uma personagem, Simão Botelho, o protagonista da novela, que preenche os requisitos do chamado herói romântico.
            Quais são os principais traços do herói romântico?

O herói romântico possui um caráter excecional – apresenta-se como um ser excecional, fora do comum, marcado pela individualidade.

Rejeita as normas e convenções sociais, sobretudo quando elas contrariam os seus valores e as suas crenças, colocando-se à margem e assumindo uma atitude de rebeldia.

Por isso, o herói romântico é rebelde e enérgico, lutando por ideais em que acredita, sejam eles de amor, pátria ou religião.

Defende os direitos do indivíduo associados ao Liberalismo e ao Romantismo: liberdade, igualdade, fraternidade, justiça, etc.

Frequentemente, o herói romântico possui uma personalidade instável, dividida entre forças opostas, como, por exemplo, as normas da sociedade e os impulsos que levam à sua revolta contra essas normas.

Assim sendo, o herói romântico é uma figura que tende para o conflito e a rebeldia, o que o conduz à perdição e à morte diversas vezes.

Vive numa crise interior e torna-se melancólico e introspetivo.

É atormentado por uma grande insatisfação, que resulta do facto de não concretizar as suas aspirações, e morre, física ou espiritualmente.

O herói romântico é vítima do destino e age motivado por um amor intenso: “o académico ponderou supersticiosamente os ditamos do coração da moça…”; “O destino há de cumprir-se… Seja o que o céu quiser.”

            Que características possui Simão que fazem dele um herói romântico?

            Os traços do herói romântico, no Amor de Perdição, estão, sobretudo, concentrados na figura de Simão Botelho. Convém ter presente, no entanto, que esses traços só fazem sentido quando observados no contexto da relação com Teresa e, em segundo plano, Mariana:

Nos capítulos I e II, Simão é caracterizado pela rebeldia e pelo caráter conflituoso e violento, como é exemplificado pelo episódio de pancadaria na fonte.

Por outro lado, nesse passo da obra revela também o seu conflito com a família, nomeadamente quando “zomba das genealogias”. Além disso, coloca-se à margem da sociedade, cujas regras não aceita, e revolta-se contra as injustiças sociais, as convenções de honra e as “falsas virtudes” dos pais.

O amor por Teresa fá-lo mudar o seu comportamento (“maravilhosa mudança nos costumes…”).

É um idealista apaixonado, com veia poética (cf. carta escrita a Teresa).

A busca de um amor ideal, mas contrariado pelas famílias de ambos, acentua o caráter conflituoso do herói romântico. É esse amor exacerbado e o caráter conflituoso que, em última análise, o levam à perdição.

Simão é movido por valores como a honra, o amor, a coragem e a retidão: “Eu hei de fazer o que a honra e o coração me aconselharem.”.

Simão é um ser de exceção, visto que é dotado de nobreza de caráter e dignidade e de qualidades morais incomuns (por exemplo, o sentido de justiça e honra). Estes traços são exemplificados pelo facto de se recusar a fugir após assassinar Baltasar. Em alternativa, assume o seu crime e é preso.

Rege a sua vida por princípios e ideais elevados, como a liberdade e a justiça (não aceita que outros determinem o curso da sua vida nem que contrariem o seu amor) e a igualdade (trata João da Cruz e Mariana como seus iguais).

Simão é marcado pela fatalidade e compreende que os seus objetivos de vida foram frustrados, caindo numa profunda melancolia e acabando por morrer.

Por outro lado, é um homem determinado que se move por amor, o qual se torna um sentimento absoluto, visto que se enamora por Teresa e a ama incondicionalmente, e impelido pela força do destino: “O destino há de cumprir-se… Seja o que o Céu quiser.”. O diálogo breve com João da Cruz (“– Está perdido! – tornou João da Cruz. / – Já o estava.”) mostra que Simão compreendeu que não foi o homicídio de Baltasar que determinou a sua perdição, mas que esta já estava traçada desde que se enamorou de Teresa, por causa dos ódios familiares. Este desenlace fatal havia sido antecipado pelo narrador logo no início da novela quando apresentou ao leitor a frase que sintetiza o percurso do nosso herói: “Amou, perdeu-se, e morreu amando”.

 
7.4. Teresa, a heroína romântica
 
            Teresa confirma, neste capítulo, que exemplifica a heroína romântica, desde logo por se tratar de uma personagem bonita e de estirpe social elevada (é fidalga), dotada de temperamento forte e determinado, bem como de uma maturidade invulgar para uma jovem de 15 anos então. Esses atributos fazem com que estejamos na presença de uma figura que foge ao modelo das jovens da sua idade e da sua condição social. Mais: ela desobedece repetidamente à vontade do pai, pondo, assim, em causa o pundonor de Tadeu de Albuquerque, isto é, o orgulho social que a obrigaria a rejeitar Simão e o seu amor, por causa do ódio entre as famílias de ambos. Deste modo, Teresa corresponde perfeitamente à coragem, à energia e à rebeldia da heroína romântica.
            À semelhança do que sucede com Mariana, Teresa é caracterizada pela impotência e pela fatalidade / pelo destino. A impotência decorre da sua condição de mulher numa sociedade em que o machismo impera e os homens se enfrentam e destroem por orgulho e egoísmo. Por outro lado, o destino e a fatalidade marcam a sua existência e conferem-lhes o estatuto de heroínas vítimas de um amor infeliz.
            Tanto Teresa como Simão dão corpo ao conflito com as normas sociais e familiares vigentes e à mudança social que ocorreu no século XIX.
 
8. Consequências do homicídio de Baltasar: a separação definitiva de Teresa e Simão e a perdição de ambos.
 
 
Simbologia dos espaços interiores

Mosteiro: simboliza a clausura, o aprisionamento (a janela com grades), causador(es) de sofrimento; de dentro pode ver-se o espaço exterior, simbolizando a liberdade de que não se pode usufruir.

Janela com grades: representa a separação de Teresa e Simão, causada pelo aprisionamento da fidalga num convento (cuja “libertação” só será conseguida com a morte).


 
Crítica social
 
            O episódio do homicídio de Baltasar configura uma crítica à Justiça, pois Simão, após a morte do rival, é convidado a fugir pelo meirinho-geral, por ser filho do corregedor (Domingos Botelho).

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