Português: Moçambique
Mostrar mensagens com a etiqueta Moçambique. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Moçambique. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Análise do poema "Cinco horas da manhã", de Orlando Mendes



São cinco horas da manhã

Para Maria pilando

Debaixo do cajueiro

E o noivo de Maria

Colimando a machamba

E pensando no Transval

 

São cinco horas da manhã

Para uma velha negra

Abanando o fogareiro

E assando maçaroca

Milho bom! Eh! Milho bom!

Numa voz desnecessária.

 

São cinco horas da manhã

No bazar de piripiri

Manga, coco e mulata

E tetas nuas vertendo

Leite tão branco e puro

Como leite secretado

Por outras tetas mais pudicas

 

São cinco horas da manhã

Nas cartas por escrever

Dos chibalos sonolentos

E nas mãos que dão à terra

A semente sem passado

 

São cinco horas da manhã

No coração confiante

Das mulheres que pariram

E em versos de sangue e nervos

Que latejam o futuro

 

Num canto livre e bravio

Das aves da minha terra

São cinco horas da manhã.

 

Mesmo com nuvens, espessas

Toldando a luz do sol

São cinco horas da  manhã.

 

E até no desespero

De não aceitar o dia

São cinco horas da manhã

Da manhã que irrompe

Com a alvorada ou não

Da noite de incubação.

 

São cinco horas da manhã

Do Rovuma à Ponta de Ouro

São, na coragem que temos

Para sabermos que são.

 
    Este poema, constituído por nove estrofes de versos brancos, é da autoria de Orlando Mendes, poeta moçambicano nascido a 4 de agosto de 1916 e falecido a 13 de janeiro de 1990. A temática central da sua poesia prende-se com a época colonial, pelo que talvez seja possível associar o versilibrismo e a irregularidade estrófica que caracterizam o texto a esse contexto, ou seja, tal como Moçambique estava em processo de descolonização, em busca da liberdade enquanto país, o texto também combate o espaço opressivo enquanto manifestação da liberdade literária.
    A primeira estrofe, uma sextilha, à semelhança das três seguintes, abre com um verso (anáfora) que localiza a «ação» no tempo: cinco horas da manhã, o tempo do fim da escuridão, o limite da madrugada e o início da manhã, o crepúsculo. O que sucede a essa hora? Uma mulher, chamada Maria, pila debaixo do cajueiro, sozinha. A conjugação da forma verbal «são», no presente do modo indicativo, e do gerúndio «pilando» sugerem que se trata de uma ação que está a decorrer ainda no momento em que se lê. As formas verbais seguintes («colimando» e «pensando») reforçam essa ideia. O verso 3 localiza-nos no espaço: Maria pila debaixo de um cajueiro, uma planta abundante em Moçambique da qual se extrai a castanha do caju. É provável que a figura de Maria simbolize um conjunto de Marias que pilam incessantemente, sozinhas, ao amanhecer do dia, perseverantes, com os olhos num futuro mais próspero e menos escuro ( o dia que está prestes a nascer).
    O quarto verso apresenta-nos o noivo de Maria. Ao contrário dela, introduzida trabalhando, ele está simplesmente a observar o terreno (“Colimando a machamba”) à sua frente, “pensando no Transval”), o qual sugere o progresso trazido pelo arado, pela máquina de terraplanagem e não mais o trabalho escravo e manual. Note-se, a este propósito, que, em Moçambique, o trabalho doméstico era executado, maioritariamente, pelos homens, enquanto o rural cabia às mulheres, daí que a figura em destaque seja a feminina trabalhando e não a masculina. O Transval era o nome da região da África do Sul, situada acima do rio Vaal, bem como de uma província situada nessa região, que existia entre 1910 e 1994, cuja capital era Pretória.
    A segunda estrofe introduz uma terceira figura: uma velha negra ocupada com tarefas domésticas na cozinha. O primeiro verso, uma repetição da estrofe anterior, enfatiza de novo a hora da escuridão, da imprecisão e da instabilidade do tempo crepuscular. Além disso, à semelhança da primeira estrofe também, a preposição «para» isola a personagem e a sua atividade. De novo, igualmente, os gerúndios («abanando» e «assando») apresentam-nos uma atividade que está a ocorrer no momento em que o leitor lê o poema e frisa a luta diária e a repetição de pessoas predestinadas à escuridão das suas tarefas e rotinas colonizadas.
    O quinto verso desta estrofe (“Milho bom! Eh! Milho bom!”) coloca-nos perante o pensamento da figura da «velha negra» através do discurso indireto livre, que traduz tanto a voz internalizada da personagem como a voz poética que «diz» o verso. No entanto, no verso 6, o sujeito poético quebra a alegria do anterior, afirmando que tudo foi dito “numa voz desnecessária”: por mais que a figura feminina considere o milho bom, num ambiente crepuscular, negro e sem muita esperança, a sua voz torna-se fraca e quase inaudível.
    A terceira estrofe, uma sétima, volta a repetir o primeiro verso das duas antecedentes. Agora, a ação decorre num bazar, no qual se vendem produtos (piripiri, manga, coco e mulata). Se os outros produtos não acarretam qualquer estranheza, a venda da mulata remete para a prostituição, uma atividade intensa durante o período do colonialismo, constituindo uma das poucas formas de sobrevivência das mulheres mulatas em temos difíceis. Os quatro versos seguintes, centrados ainda nessas mulheres, sugerem uma imagem diferente, uma imagem maternal: “E tetas nuas vertendo / Leite tão branco e puro / Como o leite secretado / Por outras tetas mais pudicas”. No entanto, a presença da preposição «por» e do determinante indefinido «outras» [quando surge antecedido do determinante artigo definido – o, a, os, as –, «outro» é um determinante demonstrativo; quando tal não sucede, possui um valor indefinido, como sucede, por exemplo, em «O Eusébio é de outra equipa.») indiciam que, por mais puras que sejam as tetas nuas que vertem o branco e puro leite secretado, não são tão boas quanto as que são mais pudicas, ou seja, reforça-se a ideia negativa em torno das mulheres prostitutas, mostrando-se que o leite puro se torna impuro quando se trata das mulatas do bazar.
    A quarta estrofe repete o início das anteriores e refere-se a cartas que estão por escrever, provavelmente porque não foram escritas por causa da censura do colonialismo. Por outro lado, a população estava presa ao trabalho forçado, mal pago, quando era pago, ou seja, uma situação de trabalho escravo, definindo a prática do chibalo, portanto. As imagens “chibalos sonolentos” e “cartas por escrever” associam-se, dado que, numa terra sonolenta, presa à escuridão do crepúsculo, o regime colonialista instaura um tempo de sonambulismo numa terra controlada pelos colonizadores, sem ter como se expressar livremente. A própria forma verbal no infinitivo («escrever» – v. 21) acentua a ideia da ação não concluída. Além disso, o adjetivo «sonolentos» contribui para a construção de uma imagem escura e desolada da terra representada pelo poema, visto que o vocábulo traz consigo a ideia do sono e evoca a imagem da noite consigo. Os dois últimos versos da estrofe fecham as imagens da escuridão e da falta de esperança, visto que as mãos que trabalham e proporcionam à terra a sua força de trabalho, a semeiam sem passado, sem apego e respeito pelas tradições, já que o colonizador trouxe consigo a “catequização civilizada e superior” aos “brutos selvagens” do continente. Assim sendo, a semente sem passado representa uma situação infértil às gerações futuras, pois, se o passado não for refletido no presente, o futuro semear não mais existirá efetivamente.
    Na quinta estrofe, o número cinco representa o tempo de uma nova esperança, sugerindo uma imagem e claridade que se opõe à escuridão. Por outro lado, esta estrofe situa-se no centro do poema: antes dela há quatro e depois outras tantas. Deste modo, a mudança de estado evocada pela poesia encontra-se exatamente no meio do poema. Além disso, nesta estrofe ainda é marcada pela imagem do ato de parir, do sangue, de nervos inclinados ao futuro latejante, ou seja, o surgimento de um novo tempo. No segundo verso, o adjetivo «confiante» acopla-se ao nome «coração», o que aponta para o pulsar de algo novo e esperançoso. Ora, esse estímulo é parido pelas mulheres que dão luz às novas esperanças do país: os seus filhos. O verbo «parir» transporta consigo uma ideia de luz, agregada às de pulsação, batimento cardíaco, vida, que se ligam também a «coração», que representa, em suma, o surgimento de um novo momento.
    A metáfora “versos de sangue” (v. 28) quer dizer que a poesia fala dela mesma, ou seja, recorrendo à metapoesia, podemos dizer que tanto as mulheres «pariram» novos filhos para uma nova nação, sem o jugo colonial, quanto a literatura, que, através de uma luta incessante de resistência literária à imposição de formas poéticas e comportamentos provenientes de Portugal, «rasgam», «parem» os seus próprios padrões, e, como se fossem sangue, derramam e contaminam a sua esperança num futuro mais confiante dentro do panorama literário moçambicano. Por sua vez, a forma verbal «latejam» sugere a ideia de pulsação, palpitação de um país e de uma literatura prestes a parir.
    A sexta estrofe introduz outra novidade: o verso que se vinha repetindo ao longo do poema no início, como se fosse um refrão, passa para o fim, dado que agora o foco deixa de estar no tempo crepuscular e passa para a claridade, “no canto livre”. A ideia de liberdade é suscitada logo no primeiro verso a partir da expressão “canto livre e bravio”. Deste modo, estamos na presença de uma liberdade cantada e já não domesticada, uma liberdade feroz e indomável, ideia sugerida pelo adjetivo «bravio». Essa noção é acentuada pela imagem das aves, não umas quaisquer, mas as da terra do «eu» poético.
    A sétima estrofe é introduzida pela conjunção «mesmo», traduzindo uma ideia de que, ainda que o renascer de uma nação e de uma literatura seja um processo difícil, são cinco horas da manhã, isto é, situa-se na transição para um tempo que está por vir. O que transmite essa ideia de dificuldade? Desde logo, a expressão «nuvens espessas», que cria a sensação de uma nuvem pesada, carregada, prestes a chover, a derramar-se sobre a terra. A forma verbal no gerúndio («toldando») reforça a imagem anterior de um clima instável, pesado. Por seu turno, a imagem seguinte opõe-se à claridade trazida pela luz do sol que, entre as nuvens espessas, fica no limite do nascer do dia e do fim da madrugada.
    A oitava estrofe, uma sextilha, sugere a dificuldade da transição e aceitação do dia para uma manhã que irão romper ou não da noite em incubação. A forma verbal «irrompe» revela a violência e o ímpeto da manhã que está por vir, no entanto a alvorada, a primeira manhã, pode surgir ou não da noite de incubação.
    Na última estrofe, o refrão regressa ao primeiro verso, destacando duas cidades: Rovuma e Ponta de Ouro. Estas localidades situam-se nas áreas litorais do país, locais onde a colonização se instalou inicialmente. A forma verbal «São», no presente do indicativo, repete-se três vezes nesta estrofe, anunciando uma certa instabilidade e uma certa falta de ação, dado que a situação de Moçambique, não obstante a independência e a mobilização em favor da nação prestes a nascer – em estado de efervescência –, ainda se encontrava num estado de transição, logo de incerteza, o que justifica a dicotomia claro-escuro que se verifica ao longo do poema.


Bibliografia:
- MADRUGA, Elisalva. Os percursos da literatura moçambicana: da dor à alegria. Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra.
- MOISÉS, Massaud. Guia Prático de Análise Literária. 3.ª edição. São Paulo.
-CRUZ, Clauber Ribeiro. “Cinco Horas da Manhã: a poesia moçambicana e o colonialismo português”.
 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Correção do questionário sobre o conto "As mãos dos pretos"

 1. Por que é que as palmas das mãos e dos pés das pessoas negras são mais claras do que o resto do corpo?

1.1. O Professor considera que a brancura das mãos dos pretos deriva da sua falta de sol.
        O Senhor Antunes da Coca-Cola afirma que a cozedura exterior do corpo dos negros determinou a brancura das suas mãos.
        O Senhor Frias crê o frio da água destinou à brancura apenas as palmas das mãos e os pés dos pretos.
        Um livro sustentava que, vivendo encurvados, os negros mantiveram as palmas das mãos brancas.
        Dona Estefânia afirma as mãos dos negros desbotaram à custa de muitas lavagens.
        A Mãe diz que as mãos dos pretos são iguais às de todos os homens.

2.1. As personagens do texto são o Professor, um homem pragmático; o Padre, um indivíduo frio e indelicado que justifica a realidade por meio da fé; a Dona Dores, uma mulher preconceituosa e racista, que justifica a realidade recorrendo à sua fá religiosa; o Senhor Antunes, uma pessoa de fé, fantasiosa e bem-disposta; o Senhor Frias, um homem crente e imaginativo; a D. Estefânia, uma personagem prática, que explica a realidade a partir da sua realidade; a Mãe, uma mulher carinhosa, bem-disposta, refletida, de crença religiosa e que defende a igualdade de direitos entre as pessoas de «raças» diferentes; o Narrador, um jovem curioso e insatisfeito.

2.1.1. O processo usado é a caracterização indireta, visto que os traços característicos de cada personagem não são apresentados diretamente pelo narrador ou por qualquer personagem, mas inferidos a partir da sua atuação (comportamento e atitudes) e das suas palavras no decorrer da ação.

2.2. A personagem principal é o jovem que narra a ação, isto é, o narrador.

2.3. O narrador trata as as personagens adultas a quem se dirige ou refere pelas fórmulas «Senhor» e «Dona», que representam um tratamento respeitoso característico de relações em que existe, por exemplo, uma hierarquia etária, como é o caso, ou mesmo social e cultural, exemplificada pelas referências ao «Senhor Professor» e ao «Senhor Padre».

3.1. As palavras e expressões são as seguintes: «não sei», «Lembrei-me», «nós não prestávamos», «os pretos eram melhores do que nós».

3.2. No que diz respeito à presença, o narrador é participante e autodiegético, dado que é uma personagem do texto. Quanto à focalização, aquele adota a perspetiva interna da própria personagem que ele encarna.

3.3. As palavras e expressões que demonstram que o narrador tende a exagerar a sua presençã são as seguintes: «Eu», «me», «nós», etc.

4. À semelhança do que sucede, por exemplo, com o conto tradicional popular, este texto não possui grandes marcas temporais, para sustentar a intemporalidade do tema que aborda, concretamente o racismo e a necessidade da sua discussão.

5.1. O espaço físico é a África.

5.2. No que respeita ao espaço social, predomina no conto a classe média colonizadora.

6.1. As palavras e expressões coloquiais do discurso do Senhor Antunes da Coca-Cola são, por exemplo, «resolveram fazer», «Sabes como?», «Pegaram», «enfiaram-no», «Fumo, fumo, fumo», «escurinhos como carvões», «Pois então».

6.2. O registo coloquial confere verosimilhança ao texto.

7.1. De acordo com a mãe do narrador, os pretos existem por decisão de Deus, para haver equilíbrio na humanidade.

7.2. O uso de reticências nessa fala remete para a omissão da consciência de que a criação de Deus pode ter sido um erro, gerador de racismo.

7.3. A referência insistente a Deus constitui uma marca da fé e crença religiosas características das pessoas de «raça» branca, que colonizaram África, e que se tornou bandeira dos Descobrimentos e da colonização.

8.1. Jogar à bola é uma atividade lúdica, de entretenimento, o que significa que as atividades deste género aliviam o sofrimento.

8.2. O choro da mãe significa provavelmente que a memória do sofrimento, por conhecer a escravatura e o racismo, ou por ter sido vítima dos mesmos, é aceite.

9. A moral do conto aponta para a ideia de que as pessoas não valem pelo que parecem ser, mas pelo que são efetivamente e, sobretudo, pelas suas ações e atitudes.

10. A expressão enfática «é que» sublinha o acaso do surgimento da longa reflexão sobre a cor das mãos dos pretos.

11. O diminutivo constitui uma expressão coloquial de intenção pleonástica, no sentido de vincar uma determinada ideia.


Ligações:
    👉 Texto.
    👉 Questionário.

Questionário sobre o conto "As mãos dos pretos"


 1. Toda a ação do conto gira em torno de uma questão. Formule-a.

    1.1. Sintetize cada uma das explicações apresentadas como resposta a essa questão numa só expressão ou frase.

2. Detenha-se nas personagens.

    2.1. Identifique-as e trace um breve retrato de cada uma delas.

        2.1.1. Refira o processo de caracterização de que se serviu para responder à pergunta anterior.

    2.2. Ainda que o núcleo de personagens seja reduzido, como é característica de uma narrativa curta como conto, distinga a personagem principal.

    2.3. Justifique a deferência no tratamento de algumas personagens por parte do narrador.

3. O conto é rico em palavras e expressões que provam a presença do narrador na ação.

    3.1. Faça o levantamento desse vocabulário presente no primeiro parágrafo.

    3.2. Classifique o narrador do conto quanto à presença e à focalização.

    3.3. Transcreva palavras e/ou expressões textuais que demonstrem que o narrador tende, por vezes, a exagerar a sua presença.

4. Explique a (quase) total ausência de marcas temporais.

5. No que diz respeito ao espaço, o conto possibilita uma associação a um espaço físico lato, mas concreto.

    5.1. Identifique-o.

    5.2. Indique o espaço social, atendendo à tipologia das personagens.

6. A linguagem do conto tende, por vezes, para a coloquialidade, quer no que toca ao discurso do narrador, quer no discurso direto.

    6.1. Proceda ao levantamento de palavras e expressões coloquiais do discurso da personagem Senhor Antunes da Coca-Cola.

    6.2.Explique em que medida o registo coloquial enriquece a narrativa.

7. A última personagem que explica a brancura das mãos dos pretos é a mãe.

    7.1. Apresente a razão pela qual, na sua perspetiva, existem pretos.

    7.2. Comente a expressividade da pontuação da segunda frase do discurso da mãe.

    7.3. Explique a referência insistente a Deus.

8. Releia o último parágrafo do conto.

    8.1. Explique a necessidade que o narrador tem de anular a informação da sua fuga com a referência a que foi jogar à bola.

    8.2. Apresente uma interpretação para o choro da mãe.

9. Indique a moral do conto.

10. Na primeira frase do texto surge uma expressão enfática. Identifique-a e comente a sua expressividade.

11. Explique o emprego do diminutivo na expressão «Coisa certa e certinha».


Ligações:
    👉 Texto do conto.

Conto "As mãos dos pretos"


     Já não sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
    Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar sejam quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim mais claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazem e que não deva ficar senão limpa.
    O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
    "Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!".
    Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
    Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse  muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
    Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
    Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
    A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quiser saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela fosse foi mais ou menos isto:
    "Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes por que é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos".
    Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
    Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

in Nós Matámos o Cão Tinhoso

Ligações:
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...