Português: 03/10/21

domingo, 3 de outubro de 2021

Retrato / Caracterização de Aquiles

             Aquiles é o protagonista da Ilíada. Ele é filho de Tétis, deusa do mar que o tornou invulnerável (exceto no calcanhar, por onde o segurou) ao mergulhá-lo no rio Estige quando era bebé, e de Peleu, um homem mortal.

            Trata-se do maior guerreiro do exército aqueu e o líder dos Mirmidões, que combatem ao lado dos Gregos contra os Troianos. Nas palavras de Maria Helena da Rocha Pereira (in Estudos de História da Cultura Clássica, 6.ª ed., p. 173), “Aquiles [é] o herói modelo, nobre e valente, mas impulsivo […]”. De facto, Aquiles é uma personagem que encerra em si as características de um extraordinário combatente, o maior dentre os Aqueus, mas as suas falhas de caráter impedem que haja com humanidade, nobreza, compaixão e integridade. É um homem orgulhoso que se deixa cegar pela raiva quando esse orgulho é ferido, como se comprova através do conflito que mantém com Agamémnon, que o leva a abandonar a guerra, juntamente com os seus Mirmidões, enquanto o comandante grego não se desculpar. Mais do que isso, a cólera é tão grande que pede aos deuses que provoquem a derrota do rei grego e do seu exército, isto é, do seu próprio povo, dos seus companheiros. O seu sentido de honra pessoal inviabiliza qualquer acordo e apenas a perda de um amigo – Pátroclo – o demove da sua ausência da batalha.

            A sua inação e a retirada da guerra condicionam o desenrolar dos acontecimentos. O que o move é o desejo de honra e glória, granjeadas no conflito bélico, desejo esse que é tão intenso que a personagem prefere morrer coberto de glória a regressar a casa, são e salvo e em paz, com a garantia de uma vida longa.

            De início, Aquiles parece possuir um sentido agudo de ordem social que se manifesta quando revela a sua preocupação com a desordem que grassa no acampamento grego; uma praga mortal instalou-se no exército e o protagonista quer conhecer a razão. Por outro lado, estamos na presença de alguém que, por vezes, desrespeita as normas sociais. É o que sucede quando decide convocar uma assembleia do exército logo no início do poema, algo que estava reservado apenas a Agamémnon. Essa reunião permite-lhe ficar a saber o motivo da praga, no entanto, com isso, faz instalar a desordem entre os Aqueus quando é revelado que o culpado da doença é o próprio Agamémnon. Deste modo, é a tentativa do líder dos Mirmidões de devolver a ordem ao acampamento que, em última análise, causa maior desordem. A sua raiva é tão grande que quase tenta matar o líder aqueu, o que não consegue somente porque Atena o impede.

            Note-se que Aquiles não abandona a guerra e os companheiros sem motivo. De facto, Agamémnon exige que o filho de Tétis lhe entregue Briseida, o seu prémio de guerra, e Aquiles vê nesta exigência um paralelo com o rapto de Helena por Páris, comparando-se a Menelau. Assim sendo, na sua ótica, o conflito entre si e Agamémnon é tão justificado quanto a guerra contra os Troianos. Mesmo depois de o chefe aqueu concordar em lhe devolver Briseida juntamente com vários presentes, Aquiles mantém-se irredutível, o que indicia que um dos seus maiores defeitos é o orgulho excessivo. A oferta de Agamémnon, na perspetiva do filho de Tétis, não compensa a afronta e o insulto públicos que acredita ter sofrido.

            Aquiles norteia a sua vida por um código heroico claro, no entanto, quando se afasta da guerra, começa a questionar a glória individual, principiando a desenvolver-se a noção de que o lar, a família e o indivíduo são igualmente importantes para a sociedade e para o herói. Esta visão surge concretizada, no poema, na figura de Heitor. Estes conceitos só se tornam mais efetivos após a morte de Pátroclo e o encontro com Príamo. Ele sente que é sua obrigação vingar o passamento do amigo e reconhece as suas insuficiências enquanto seu protetor.

            Durante a maior parte da obra, as ações de Aquiles são guiadas pela sua cólera. A sua batalha junto ao rio Escamandro evidencia toda a sua ferocidade, impiedade e fúria insana no campo de batalha. O próprio deus do rio, confrontado com os seus excessos, como a mutilação de corpos dos inimigos, o censura e acusa de crueldade excessiva e desproporcionada. No fundo, Aquiles está a tentar vingar a morte de Pátroclo matando o máximo de soldados troianos que conseguir, como se todos fossem culpados do sucedido. A fúria e a violência cruel do filho de Peleu encontram o seu término com a morte de Heitor e a mutilação do seu cadáver e são definitivamente sanados aquando do encontro com Príamo.

            A consequência mais evidente do abandono da guerra por parte de Aquiles é o facto de estar longe da vista do leitor durante a maior parte da Ilíada. Estamos na presença do herói bélico por excelência, no entanto não pega numa arma em mais de 80% dos versos do poema. Esta opção por parte de Homero talvez tenha a ver com o objetivo de o poeta querer enfatizar o momento em que o filho de Tétis retorna ao campo de batalha para tirar a vida a Heitor, como vingança pela morte de Pátroclo.

            Por outro lado, desde cedo – mais precisamente desde o canto inicial – nos apercebemos do drama que atinge o protagonista da obra. Num certo sentido, Aquiles está sempre do lado oposto do resto do mundo, incluindo a própria mãe, neste caso porque têm desejos diferentes para a vida do líder dos Mirmidões. Quando o filho lhe relata a ofensa de Agamémnon, fica claro que a roda do Destino foi posta em funcionamento e dela não haverá possibilidade de fugir. Aquiles parece já ter decidido que prefere viver uma vida curta motivada pela busca da glória individual, mas Tétis não se conforma com isso: “Quem dera que junto às naus estivesses sentado sem lágrimas / e sem sofrimento, visto que curta é a tua vida, sem duração! / Agora será rápido o teu destino e mais do que todos os outros / sofrerás. Para um fado cruel te dei à luz no nosso palácio” (I, vv. 415-418). Atente-se neste passo: “[…] mais do que todos os outros / sofrerás”. Ele parece indiciar que, para Homero, o herói deverá ser capaz de sentir/suportar mais dor do que o comum dos mortais. Os próprios deuses, como se verifica pelas palavras de Tétis, não escapam ao sofrimento e à dor. Outros exemplos são dados por Afrodite, deusa grega do amor, e Ares, a divindade da guerra, ambos feridos por simples mortais.

            Aquiles combate para alcançar a glória pessoal, porém afasta-se da guerra pelos motivos conhecidos. Quando Agamémnon, desesperado, no Canto IX, envia uma embaixada, constituída por Ajax e Ulisses à sua tenda, prometendo-lhe várias riquezas se ele reconsiderar e refregar à refrega, o filho de Tétis recusa. Porquê? Porque deixou de acreditar na guerra. É isso que transparece na seguinte fala, dirigida a Ulisses: “Igual porção cabe a quem fica para trás e a quem guerreia; / na mesma honra são tidos o cobarde e o valente: / a morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança” (vv. 318-320). Deste modo, quando Aquiles regressa à guerra, não o faz já motivado pela procura da glória, mas por um motivo pessoal e íntimo: a dor causada pela morte do amigo Pátroclo. Nas palavras de Frederico Lourenço, na introdução à sua magistral tradução da Ilíada (p. 18), “[…] se, por um lado, quando o herói máximo comete o seu máximo feito (matar Heitor), o heroísmo «tradicional» já deixara de lhe fazer sentido, há, por outro lado, como que uma reinvenção do conceito de heroísmo no ato de matar na plena consciência de que a morte da vítima acarreta a morte de quem mata. Às vezes parece que morrer, na Ilíada, é muito mais importante do que viver.”

Análise do Canto XXIV da Ilíada

             A Ilíada termina de modo semelhante ao que começou. De facto, Príamo atravessa as linhas inimigas para suplicar a Aquiles o corpo do seu filho, tal como Crises, no Canto I, se dirigiu ao acampamento grego, para que lhe fosse restituída a sua filha. No entanto, ao contrário do que sucedeu com este último, a prece de Príamo é atendida de imediato. A invocação, pelo rei de Troia, do pai do herói grego cria um vínculo momentâneo entre ambos. Aquiles sabe que está fadado a não regressar a casa, o que significa que, em breve, Peleu será o pai desolado que Aquiles fez de Príamo ao assassinar-lhe o filho e profanar o corpo. Essa súbita consciência de que o seu próprio progenitor está condenado a sofrer aquilo que Príamo sofre agora aplaca a cólera de Aquiles e emociona-o.

            É preciso ter consciência, porém, de que o vínculo entre Aquiles e Príamo é momentâneo, dado que, na essência, nada se alterou, desde logo porque Agamémnon, se deparasse com o rei de Troia no acampamento, logo o faria prisioneiro. Os próprios Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, tal como Hermes recorda ao velho rei. O destino de Troia está traçado: a cidade está fadada a cair às mãos dos Gregos, como nos recorda Andrómaca ao ver o corpo sem vida de Heitor. Não obstante todos estes factos, nomeadamente a certeza de que Aquiles e Príamo continuam a ser inimigos, a verdade é que a sua animosidade se torna, agora, mais nobre e respeitosa.

            Este último canto do poema exemplifica a mudança operada na personalidade de Aquiles. De facto, o herói surgiu, de entrada, como uma figura colérica, temperamental, orgulhosa, egoísta e impulsiva, contudo, no momento em que a obra finaliza, revela empatia, compaixão e simpatia pelo outro. Ao longo da Ilíada, o narrador mostra-nos um Aquiles incapaz de pensar em alguém mais do que em si próprio e nos seus problemas, guiado pelo orgulho e pelo rancor. Estes traços de personalidade são tão vincados que o filho de Tétis parece indiferente à sorte do seu povo, que parece condenado à derrota sem a sua presença no campo de batalha. Nada o abala nem demove, exceto a morte de Pátroclo. Contudo, este acontecimento não o torna melhor pessoa; pelo contrário, a sua raiva é mais forte do que nunca e a sua crueldade e desumanidade não explícitas a partir do momento em que põe fim à vida de Heitor e profana o seu corpo. NO entanto, o encontro com um Príamo despedaçado pela dor e a lembrança do seu pai, Peleu, humaniza-o, levando-o a corresponder positivamente ao apelo do rei dos Troianos, devolvendo-lhe o corpo do filho, e indo mais além inclusive, ao conceder uma trégua de doze dias na guerra, para que em Troia se proceda adequadamente às exéquias fúnebres do seu herói. Note-se que, neste passo e nestas decisões de Aquiles, não existe qualquer interferência por parte dos deuses, facto que confirma a tal humanização da personagem.

            Atente-se, todavia, que este “novo Aquiles” pode não ser duradouro, tendo em conta a sua reação quando Príamo lhe sugere que regresse a casa em paz, mas sem glória, algo que o grego considera um insulto. Há que ter em conta, porém, que o traço da raiva e da cólera não é exclusivo do líder dos Mirmidões, dado que até o próprio Príamo afirma que preferia que tivesse morrido qualquer um dos outros filhos no lugar de Heitor; Hécuba declara, em fúria, que gostaria de comer o fígado de Aquiles.

            Esta mudança operada em Aquiles enfatiza a importância que a cólera da personagem assumiu ao longo de todo o poema. Este não se conclui com a morte do herói aqueu nem com a queda de Troia e a derrota dos Troianos, mas com o apaziguamento da cólera. A ênfase é posta no lado das personagens, nas suas emoções e sentimentos, e não na guerra e nas suas peripécias. Como se explica esta opção de Homero? Por um lado, o público contemporâneo do autor estaria familiarizado com a história; por outro, o leitor de qualquer outra época fica a conhecer, desde cedo na obra, o desfecho da ação. Assim sendo, o suspense acerca da mesma desaparece a partir das primeiras páginas. Além disso, o motivo que condiciona o evoluir dos acontecimentos é a cólera de Aquiles, pelo que fará todo o sentido que a obra finalize quando o conflito que a iniciou se resolve. Deste modo, o tema central do poema parece ser a evolução pessoal do protagonista – Aquiles.

                        Por outro lado, a história tem uma estrutura circular, como já foi aludido anteriormente. Assim, o apelo de Crises pela devolução da sua filha encontra equivalência no retorno do corpo de Heitor a seu pai – o primeiro apelo (e a resposta negativa ao mesmo) inicia o conflito e o segundo encerra-o.

            A Ilíada finaliza com os funerais de Heitor, uma forma de concluir a história com um momento de dignidade e de honra não só dedicado ao herói troiano, mas, no fundo, de todos os que pereceram durante a guerra.

            O que resta do conflito bélico, nomeadamente o seu desenlace, a queda de Troia, o estratagema usado para tal ou a morte de Aquiles são relatados noutros textos, como, por exemplo, a Odisseia.

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