Português: 15/02/22

terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Análise do poema "Nihil Sibi", de Miguel Torga

    “Nihil Sibi” é um poema da autoria de Miguel Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, um escritor e médico natural de S. Martinho de Anta em 1907. A sua obra poética em particular aborda temas sociais, como a natureza, a justiça e a liberdade, o amor e a angústia da morte, a condição humana, o papel do poeta na sociedade, e deixam transparecer um sentimento de telurismo permanente entre o ser humano e a terra.
    O título do poema é constituído por uma expressão latina que significa «nada para si» e, neste caso, sugere a ideia de que o poeta é uma figura altruísta, alguém que, tal como uma fonte, não guarda nada para si, antes se entrega inteiramente através da sua arte. Ou seja, indicia que o poeta é alguém cuja obra e produção se destinam ao «outro». A palavra «nihil» significa «nada», enquanto o termo «sibi» é o pronome reflexivo próximo de «se». Deste modo, a expressão completa seria algo próximo de «nada em si» ou «nada para si».
    A epígrafe, entre parênteses, reforça o sentido do título, enfatizando a ideia de que nada retém para si, antes compartilha tudo o que tem através da sua poesia, que constitui um ato de generosidade e altruísmo. Segue-se à epígrafe uma singela quadra de versos brancos e métrica irregular, o que, juntamente com a linguagem simples e clara, aproxima o poema do leitor.
    Este texto abre com uma metáfora que define o poeta como uma fonte: “O Poeta é uma fonte:”. Uma fonte é algo que jorra água incessantemente, símbolo de vida, pureza e renovação. Ao associar a figura do poeta a uma fonte, o sujeito poético sugere que o papel daquele é «dar-se», fazer nascer poesia e originar, de forma espontânea, o canto, partilhando com os outros os seus sentimentos, pensamentos, etc. Ou seja, o poeta é uma fonte de poesia, faz nascer poesia. O verso inicial termina com dois pontos, o que indicia que no(s) seguinte(s) irá explicar / desenvolver a ideia nele expressa.
    De facto, o segundo verso “esclarece” a metáfora inicial, enfatizando o caráter altruísta do poeta, já que ele “Nada reserva para a sua sede”, ou seja, nada guarda para si mesmo. O seguinte confirma claramente que o papel do poeta é dar-se: ele, qual fonte, faz nascer a poesia e origina, desse modo espontâneo, o canto. Claramente, está aqui presente a noção de que o canto é o reflexo da sua abnegação e do seu altruísmo: ele não canta por cantar, antes se entrega e partilha o seu canto.
    O último verso não deixa dúvidas: o poeta está sempre vigilante (“E não dorme”), tem uma postura interventiva e atenta ao que o rodeia e é um ser que se dá ao outro, infatigável (“nem para”). Retomando a metáfora inicial, o poeta é uma fonte que nunca para de jorrar poesia, não dorme, nem para, está em constante processo criativo. A sua atividade – a criação poética – tem, em suma, um caráter permanente e imutável.
    O poema apresenta, pois, o poeta como alguém altruísta e abnegado, isto é, um ser que se dá completamente, nada guarda para si. Esses traços, essa espécie de sacrifício, são necessários para a criação poética, através da qual exprime e partilha as suas emoções, pensamentos e preocupações. O vocabulário usado sugere exatamente essa entrega permanente: «reserva», «dar-se», «não dorme».
    O Mosteiro de Rendufe, mais concretamente o seu terreiro, possui uma fonte granítica de espaldar que ostenta a inscrição latina «Nihil sibi». A Bíblia inicia-se com a referência a uma fonte ou rio no paraíso terrestre que logo se desdobra em quatro (Génesis 2, 0) e encerra no Apocalipse (22, 1) com a fonte originária da vida eterna no quadro da cidade celeste da Nova Jerusalém. No texto bíblico, encontramos também a fonte aberta por Moisés no rochedo do deserto, bem como o encontro de Jesus Cristo com a mulher samaritana junto à fonte de Jacob.
    Miguel Torga, não se sabe se inspirado nessa fonte de Rendufe, usou a expressão latina «nihil sibi» para dar título a este poema, o primeiro de uma obra intitulada igualmente Nihil Sibi, publicada em Coimbra, em 1948. Regra geral, o simbolismo da fonte está associado ao da água: aquela é o símbolo da vida, dado que dela jorra a água sempre necessária à vida. No entanto, a expressão que podemos encontrar no Mosteiro de Rendufe centra o simbolismo na disponibilidade da essência de fonte para dar e não tanto naquilo que dá. A fonte dá e nada guarda para si, pelo que o mais importante é a própria fonte, que está sempre à disposição, humildemente, do «caminhante», não tanto o conteúdo da doação, isto é, a água que dá. A fonte nada guarda para si e nada pede em troca do que dá. O ato desinteressado de dar é a natureza da fonte.
    A obra foi publicada, como já referido, em 1948, apenas três anos após o final da Segunda Guerra Mundial, uma fase em que a Europa estava em fase de recuperação de uma ferida tremenda. O horror descoberto nos campos de concentração nazis, a denominada Solução Final, deixou repleto de sofrimento e de incredulidade o ser humano e suscitou duas grandes questões: 1.ª) como pôde Deus permitir tamanha violência ao Homem; 2.ª) como pôde a humanidade ser capaz de tal atrocidade com o seu semelhante?
    A imagem do poeta metaforizada numa fonte tem uma intenção clara: associá-lo àquele que no mundo tem a função de não deixar morrer a grande mensagem e verdade da vida, presente em toda a obra – existir humanamente. O poeta pode morrer fisicamente, porém permanece vivo através da sua poesia, que não tem fim e vive eternamente.
    Em suma, o assunto do poema, em termos de figurações do poeta, aponta para o seu papel abnegado (enquanto criador de poesia).

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