● Contextualização
Após a narração das dificuldades
vividas em Calecute, o Poeta conta o regresso dos marinheiros à pátria. A meio
da viagem, Vénus prepara-lhes uma recompensa, a Ilha dos Amores, onde serão
recebidos pelas ninfas amorosas. Este episódio começa no canto IX e prolonga-se
pelo X, quase até ao final do poema, e constitui uma alegoria, representando o
prémio que, em local ameno e harmonioso, é atribuído aos homens pelo seu
esforço, heroísmo e feitos.
A armada avista a Ilha dos Amores e,
depois de os marinheiros desembarcarem para caçar e abastecer as naus de água
fresca, Camões descreve o contacto com as ninfas.
Tétis explica a Vasco da Gama que a
Ilha é o prémio merecido pelas façanhas realizadas, indicando, também, as
glórias futuras que estão reservadas ao povo português.
● Análise da reflexão
• 1.ª parte (estância 88) – Transição do plano amoroso
para o da reflexão sobre o significado da Ilha dos Amores – o Poeta explica o
significado da Ilha dos Amores: ela representa a imortalidade só atingida por
quem realiza feitos sublimes.
• Como serão os marinheiros recompensados pelo feito de
terem chegado à Índia?
- na companhia das ninfas;
- num ambiente alegre e de prazer;
- usufruindo das maravilhas da Ilha.
• Significado da Ilha dos Amores: a Ilha é uma alegoria da fama e da
imortalidade.
A Ilha constitui o prémio (“O prémio lá no fim, bem merecido”
– est. 88, v. 7) pelos “feitos grandes” e pela ousadia (“Porque dos feitos
grandes, da ousadia” – est. 88, v. 5) da “forte e famosa” (est. 88, v. 6) gente
portuguesa e o reconhecimento pelos “trabalhos tão longos” (“Os trabalhos tão
longos compensando” – est. 88, v. 4), que garantirão aos heróis lusitanos “fama
grande e nome alto e subido” (est. 88, v. 8), honra, fama e glória (“Aquelas
preminencias gloriosas, / Os triunfos, a fronte coroada / De palma e louro, a
glória e maravilha: / Estes são os deleites desta Ilha.”).
• 2.ª parte (estâncias 89 a 91) – Explicitação, em
pormenor, do significado da Ilha.
• Em que consiste essa recompensa?
▪ A fama: “Com fama grande…” (est. 88,
v. 8).
▪ A mitificação: “nome alto e subido”
(est. 88, v. 8).
▪ A imortalidade: o contacto dos humanos com as ninfas
confere-lhes um estatuto divino.
▪ Os prazeres da Ilha são os sucessos, as vitórias alcançadas
por mérito próprio (estância 89).
Trata-se,
em suma, do reconhecimento pelos “feitos grandes”, pela “ousadia” e pelo
esforço. Esta simbologia significa que a fama e a glória estão ao alcance de
qualquer ser humano que se destaque pelos seus feitos e conduta virtuosa.
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• Já na Antiguidade se atribuíam prémios e
recompensas aos heróis.
• Que prémio era esse?
A
imortalidade: os homens subiam ao Olimpo, tornavam-se, assim, deuses,
imortais: “Que as imortalidades que fingia / A antiguidade, que os Ilustres
ama, / Lá no estelante Olimpo, aquém subia / Sobre as asas ínclitas da Fama”.
Os
dois versos iniciais da estância 90 são muito expressivos, pois significam que,
à semelhança do que sucede com a Ilha dos Amores, os deuses da Antiguidade eram
apenas representações simbólicas do prémio que é sempre atribuído àqueles que
norteiam a sua existência pela virtude – a possibilidade de serem imortalizados
pela fama.
• Quem era premiado?
Os homens que realizavam feitos ilustres, grandes ações;
aqueles que percorriam um caminho árduo, difícil, cheio de perigos: “Por obras
valerosas que fazia, / Pelo trabalho imenso que se chama / Caminho da virtude,
alto e fragoso…”. Assim, encontravam o prazer, o deleite, a satisfação: “Mas,
no fim, doce, alegre e deleitoso”.
• A personificação do verso 4 da estância 90 significa
que a Antiguidade fazia subir os homens ilustres ao Olimpo nas asas da Fama.
• Qual é o papel da Fama?
Atribuir a imortalidade.
A estância 91 serve como confirmação desta ideia: a
imortalidade era um prémio dado aos homens, devido aos “feitos imortais e
soberanos” (“Não eram senão prémios que reparte, / Por feitos imortais e
soberanos, / O mundo cos varões que esforço e arte / Divinos os fizeram, sendo
humanos”). Por isso, obtiveram nomes divinos: “Que Júpiter, Mercúrio, Febo e
Marte, / Eneas e Quirino e os dous Tebanos, / Ceres, Palas e Juno com Diana, /
Todos foram de fraca carne humana.”.
• Qual é o objetivo do Poeta com a referência à
Antiguidade?
É uma estratégia para convencer os homens do seu tempo a
seguirem o exemplo dos clássicos. De facto, as figuras da Antiguidade citadas
(Júpiter, Mercúrio, etc.) surgem como argumento do Poeta para convencer os
contemporâneos a alterar a sua atitude, combatendo os vícios, bem como para
conferir importância ao caminho a percorrer para atingir a imortalidade.
A enumeração de nomes próprios dos versos 5 a 8 da
estância 91 indica-nos que antes de serem deuses, logo imortais, todos foram
humanos e mortais. De facto, as divindades começaram por ser humanos, tendo
ascendido ao patamar divino por “esforço e arte” e “feitos imortais e
soberanos”, o que lhes valeu a imortalidade. Assim, o Poeta sugere que os Portugueses
podem e merecem passar pelo mesmo processo de mitificação.
• Expressividade da conjunção «Que» (estância 89, v. 1
e est. 90,v. 1): a conjunção possui, neste caso, um valor de causa. A
finalidade do Poeta é justificar a razão pela qual o episódio da Ilha dos
Amores e a relação entre as ninfas e os marinheiros portugueses são simbólicos,
visto que não existiram. De facto, constituem uma mera representação alegórica
da fama e do reconhecimento dos feitos dos marinheiros, elevando-os à condição
de deuses.
• 3.ª parte (estâncias 92 a 95) – Alargamento da
reflexão a questões políticas, sociais e religiosas.
• Os quatro versos iniciais da estância 92 apontam outro papel
da Fama: divulgar os feitos do herói e conferir-lhe atributos (atente-se na
expressividade da metáfora e da personificação “Mas a Fama, trombeta de obras
tais…”: na Antiguidade, cabia à Fama o papel de dar a conhecer por toda a parte
o herói e os seus feitos. A Fama anuncia os feitos realizados como se fosse uma
trombeta, para que todos possam ouvir, isto é, reconhecer o mérito dos seus
autores. A trombeta é tradicionalmente usada como instrumento para anunciar o
início de uma batalha ou a chegada de uma figura importante.
• Desta forma, prepara a exortação que se segue: o
Poeta (através de uma apóstrofe e de formas verbais no imperativo – «Despertai»
–, da adjetivação – «ignavo», «livre» – e do uso da segunda
pessoa do plural – «vós», «estimais») dirige-se a todos os que
estimam a Fama, que querem ser famosos e incentiva-os a mudar o seu
comportamento, a abandonar o ócio.
• Valor expressivo da apóstrofe «ó vós» (est. 92, v.
5): o Poeta dirige-se aos que desejam ser famosos como os deuses da Antiguidade
Clássica (“Se quiserdes no mundo ser tamanhos”). A Ilha dos Amores é uma alegoria
para a fama, para a honra, para a mitificação.
• Conselhos do Poeta àqueles que querem alcançar a fama
e a imortalidade – vícios a evitar:
▪ Combater a preguiça: “Despertai já do sono do ócio ignavo”
(est.92, v. 7).
▪ Evitar a cobiça e a ambição: “E ponde na cobiça um freio duro,
/ E na ambição também…”.
▪ Evitar a tirania: “… e no torpe e escuro / Vício da tirania
infame e urgente.”.
▪ Promover a igualdade perante a lei, garantindo a
imparcialidade e a justiça: “Ou dai na paz as leis iguais, constantes”.
▪ Impedir a exploração dos mais fracos: “Que aos grandes não
deem o dos pequenos” (antítese).
▪ Combater contra os muçulmanos: “Ou vos vesti nas armas
rutilantes, / Contra a lei dos imigos Sarracenos”.
• Comentários do Poeta:
i) As “honras vãs, esse ouro puro”, obtidas
sem espaço e sem mérito, não dão “Verdadeiro valor” às pessoas.
ii) É melhor merecer a honra e os bens
materiais sem os ter, do que tê-los e não os merecer.
• Quais são os ideais a
perseguir, segundo o Poeta?
- Justiça;
- Igualdade;
- Fraternidade;
- Lealdade;
- Vontade;
- Honestidade.
• Recursos expressivos:
- Hipérbole: “Tomais mil vezes”.
- Imperativo: “ponde”.
- Vocabulário com pendor crítico: “torpe”,
“vício”, “infame”, etc.
• Efeitos dos conselhos do Poeta,
se forem seguidos:
i) O reino será maior e poderoso: “Fareis
os Reinos grandes e possantes”;
ii) Haverá igualdade na distribuição
dos bens: “E todos tereis mais e nenhum menos”;
iii) Todos terão honra e fama: “Possuireis
riquezas merecidas, / Com as honras que ilustram tanto as vidas.”;
iv) O Rei será mais ilustre e
esclarecido, devido ao apoio, aos conselhos sensatos e à lealdade: “E fareis
claro o Rei que tanto amais, / Agora cos conselhos bem cuidados, / Agora co as
espadas, que imortais”;
v) Tornar-se-ão imortais como os seus
antepassados: “Vos farão, como os vossos já passados”;
vi) Serão eternamente reconhecidos
como heróis: “Sereis entre os Heróis esclarecidos / E nesta «Ilha de Vénus»
recebidos.”
• Advertência do Poeta: não há limites para o ser
humano, pois quem quis sempre conseguiu. Só com a força de vontade se alcança a
glória: “Impossibilidades não façais, / Que quem quis, sempre pôde”.
• Expressividade da metáfora “E nesta ilha de Vénus
recebidos” (est. 95, v. 8): neste verso, o Poeta retoma a ideia apresentada na
estância 89 (“Ilha angélica pintada.”). A Ilha simboliza as honras, sendo que,
para as alcançar, para se ser recebido na “Ilha de Vénus”, é necessário adotar
os comportamentos e as atitudes que o Poeta sugere.
● Síntese
O Professor Carlos Reis, in Rimas
e Os Lusíadas (pp. 98 e 99), Leituras Orientadas, Porto Editora, considera
que há a reter desta reflexão as seguintes conclusões gerais:
1.ª) O episódio da Ilha dos Amores
representa a vida sublimada (isto é, exaltada e engrandecida; est. 89). O homem
que se distinguiu pelo seu esforço e pelas suas obras tem direito a uma
existência que, sendo terrena, não se limita (como se pensava na Idade Média)
ao sacrifício para se alcançar a salvação. A vivência amorosa não é, então,
moralmente condenada; aliás, por causa do amor, a condição humana ganha novo
vigor e os homens são elevados ao nível dos deuses.
2.ª) O estatuto sobre-humano a conceder
aos marinheiros manifesta-se do seguinte modo:
▪ Através da submissão das Ninfas aos navegantes, juntamente
com o tratamento concedido a Vasco da Gama, incluindo as revelações que lhe são
feitas acerca das consequências da viagem (est. 10 e seguintes).
▪ Pela comparação dos «varões» (incluindo os nautas) com os
deuses (Júpiter, Mercúrio, etc.) que, antes de serem divindades, foram também
humanos. Isto significa que também os homens podem ascender ao estatuto de
deuses, desde que o mereçam.
▪ Assim, é legítimo aspirar à Fama, se ela for conseguida pelo
esforço e pela superação do «ócio ignavo» (est. 92, v. 7).
▪ A procura da Fama não se coaduna com determinados comportamentos,
nomeadamente a ambição desmedida, a tirania, o culto da injustiça, etc., e que
caracterizam os homens do tempo do Poeta.
▪ O serviço prestado ao Rei (“fareis claro o Rei que tanto
amais”, est. 95, v. 1) tem de ser, então, a preocupação daqueles que, na paz ou
na guerra santa contra os infiéis, merecem ser recebidos na Ilha dos Amores.
Um exemplo deste serviço
desinteressado, que Camões não invoca aqui, mas que surgirá mais adiante, é a
escrita do poema épico como ato patriótico.