Português: 25/12/21

sábado, 25 de dezembro de 2021

Caracterização / Retrato de Agamémnon

    Irmão de Menelau, Agamémnon é o comandante-chefe do exército aqueu e, simultaneamente, o rei de Micenas, tendo herdado o reino do seu pai. A sua comunidade espera que ele, enquanto monarca, estabilize a sociedade, julgue e arbitre as disputas e presida às assembleias. Quer Ulisses quer Nestor, dois dos seus comandantes, esforçam-se por manter a autoridade de Agamémnon entre os soldados, pois reconhecem que o apoio a Agamémnon constitui a única forma de garantir uma política e ordem social efetivas.
    No entanto, apesar de ser efetivamente o rei e detentor de um grande poder e uma posição social única e privilegiada, esta personagem não é necessariamente a mais qualificada para governar. Neste contexto, o velho, experiente e sábio Nestor desempenha um papel fundamental enquanto seu conselheiro, tanto mais que Agamémnon tem um temperamento irascível e um orgulho bem acentuado de deixa que as suas emoções súbitas e descontroladas influenciem a tomada de decisões muito importantes e críticas. É, por isso, que os conselhos de Nestor assumem uma relevância tão grande, como é demonstrado logo no início do poema, quando o velho conselheiro o insta a não «roubar» Briseida (o prémio de guerra) a Aquiles. Como sabemos, o rei dos Micenas não o escuta, dando assim início a uma série de acontecimentos que terá consequências trágicas, nomeadamente a morte de centenas de soldados aqueus. Os seus erros quase custam a vitória dos Aqueus na guerra.
    Por outro lado, usa o seu poder para intimidar os outros e obter o que quer. Por exemplo, ele sacrifica a sua filha pra conseguir vento favorável para os barcos que enviará para Troia. De facto, se é verdade que estamos na presença de um grande guerreiro, não o é menos que não é um grande rei: magoa a própria família, comete muitos erros, ignora os seus comandantes e os conselhos dos mais próximos e quase perde a guerra, tudo por causa do seu orgulho e da sua teimosia. Mesmo depois de perceber os elevados custos da sua postura e das suas atitudes, apenas oferece reparações e não desculpas sinceras e sentidas.
    Para compreender o Agamémnon que encontramos retratado na Ilíada, é importante recuar no tempo, até às origens. Ele é irmão de Menelau, o rei de Esparta, que desposou a mulher mais bela de todas, Helena. Quando esta fugiu com Páris, Agamémnon reuniu um poderosíssimo exército no sentido de auxiliar o irmão a resgatá-la, dando, assim, início à guerra de Troia. Ele é casado com Clitemnestra, a irmã gémea de Helena, com quem teve quatro filhos, dentre os quais se destaca Ifigénia, a mais velha de todos. Reza a lenda que, quando Agamémnon se preparava para navegar em direção a Troia, se deparou com ventos desfavoráveis. Perante tal dificuldade, para ganhar o favor dos ventos, sacrificou Ifigénia, o que lhe valeu a inimizade e o ódio da esposa, com consequências futuras trágicas para si próprio.
    Voltando ao presente, embora seja um grande guerreiro, não é o líder mais inteligente. Por exemplo, antes do Canto I, tomou Criseida como prémio de guerra e fez dela sua concubina. No entanto, Crises, o seu pai, um sacerdote de Apolo, demanda a sua restituição, mas o rei dos Gregos recusa, o que tem como consequência o envio de uma praga sobre o exército aqueu que provoca a morte de muitos soldados. Mesmo aconselhado por figuras experientes e sábias como Nestor e Ulisses, Agamémnon mantém-se obstinado. Só mais tarde anui, apenas sob uma condição: exige, em troca, que Briseida, o prémio de Aquiles, lhe seja dada em substituição de Criseida. O líder dos Mirmidões não concorda e resiste, mas acaba por ceder, pois o rei dos Aqueus é, afinal, o seu líder. Esta obstinação e a afronta a Aquiles é um erro monumental que quase lhe custa a vitória na guerra. Apenas no Canto IX Agamémnon toma consciência do seu erro e cede, devolvendo Briseida a Aquiles, afirmando que nunca lhe tocou. Esta decisão salva a guerra para os Gregos.
    Por outro lado, existem momentos que evidenciam que a sua conduta relativamente aos seus comandantes está longe também de ser a mais adequada. Por exemplo, não aceita os conselhos de Nestor, como já foi notado, apesar de mais do que adequados às circunstâncias, e «agride-o» citando a sua idade avançada enquanto impeditiva da condição de soldado. Este traço alia-se a outra deficiência de caráter: a não assunção das suas responsabilidades, procurando sempre culpar outro(s) pelas suas falhas, seja um soldado, seja Zeus ou o próprio Destino. Estas características possibilitam concluir que Agamémnon, em muitos momentos, não é digno do título que ostenta. Ele é um grande guerreiro, forte e hábil, mas não um grande rei; toma decisões erradas, é injusto por vezes, arrogante e orgulhoso. Mais: não alcança as limitações do poder. Se disso tivesse consciência, jamais ofenderia Aquiles ao exigir, absurdamente, Criseida, ou aceitaria devolvê-la ao pai, quando este o solicita. No seu pensamento, a restituição da cativa a Crises equivaleria a uma perda de prestígio e até de autoridade. Além disso, parece não alcançar que um rei não pode submeter-se às suas emoções e desejos, nem compreender que o poder e a autoridade vivem de mãos dadas com a responsabilidade e que o bem comum, de todos, deve sobrepor-se aos desejos pessoais.
    Ao longo do poema, Homero contrapõe as figuras de Agamémnon e Aquiles, indiciando os aspetos que os aproximam e os que os afastam. No que diz respeito às diferenças, Aquiles é muito apegado e protetor daqueles que ama, porém, em contraponto, bastante cruel para com quem se lhe opõe ou é seu inimigo. Por seu turno, como já foi dito, Agamémnon vive preocupado essencialmente consigo mesmo e com as suas questões, não hesitando em fazer uso do seu poder e da sua autoridade ou em manipular quem necessitar para obter o que pretende. Faz constantemente da assunção da responsabilidade pessoal, procurando responsabilizar outros pelas suas falhas e omissões. No final da obra, a adesão do leitor dirige-se a Aquiles e não a Agamémnon-
    Não obstante o mundo que os separa, há traços que os aproximam. Por exemplo, ambos possuem um caráter orgulhoso, até obstinado. Quando Aquiles se retira da guerra, a morte que se abate sobre o exército grego é consequência tando da arrogância e obstinação do rei dos Aqueus como do orgulho e teimosia do líder dos Mirmidões. Todavia, mesmo aqui existem aspetos que os diferenciam. Assim, fica claro que o orgulho de Aquiles desperta somente quando é ferido pela exigência de Agamémnon, ao passo que este não perde uma oportunidade para exibir o seu e fazer os demais sentirem os respetivos efeitos. Nesta sequência, convém, de novo, recordar a sua exigência de ficar com a maior parte dos saques, apesar de correr menos riscos físicos durante as batalhas, e insiste em liderar o exército contra os Troianos, não obstante o facto de ser Menelau, seu irmão, o verdadeiro ofendido, pois Helena era sua esposa.
    Em suma, Agamémnon é o comandante supremo da expedição a Troia, o líder arrogante e prepotente que acaba por se retratar quando erra, mesmo que mais tarde do que cedo. É um guerreiro mais competente do que Menelau, mas também um carniceiro cruel e desumano no campo de batalha.

"O Nascimento de Cristo", de Albrecht Altdorfer


 

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