Português

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Capítulo CXLVIII da Crónica de D. João I


🔺 Título: sintetiza o conteúdo temático do capítulo:
- os factos ocorridos durante o cerco a Lisboa (a falta de mantimentos dos sitiados);
- as consequências psicológicas e sociais decorrentes desses factos (o sofrimento da população).


🔺 Tema: as dificuldades de Lisboa face ao cerco castelhano.


🔺 Estrutura interna

🔼Introdução (do início até "vieram na frota do Porto."): Cerco da cidade → fome → escassez de mantimentos, motivado pela quantidade de pessoas existentes na cidade.

                Os mantimentos existentes na cidade gastam-se cada vez mais depressa, tornando-se escassos, devido ao facto de o número de habitantes da cidade aumentar cada vez mais, porque a ela se recolheu muita gente (lá estavam os habitantes de Lisboa, pessoas que vieram dos arredores, famílias inteiras e os que vieram numa frota do Porto para socorrer a capital).


🔼 Desenvolvimento (desde "E alguns se tremetiam..." até ao antepenúltimo parágrafo, inclusive).

1) Tentativas infrutíferas de superar a situação (até “… mester sobrelo conselho.”).

1.1. Procura de trigo no Ribatejo (desde "E alguns..." até "... cinco mil homens.").

a) Motivos da procura:
- o cerco à cidade;
- a presença de muita gente na cidade;
- a falta de alimentos.

b) Resultados: quase nulos
- a oposição castelhana;
- pouco trigo e raro.

c) Estado de alerta constante entre os portugueses.

                Durante a noite, os sitiados embarcam em batéis e vão buscar trigo ao Ribatejo para abastecer a cidade, correndo enorme perigo, pois são atacados pelos castelhanos. Sempre que os sinos repicam e tocam a rebate, a população vai em socorro das galés. Esta recolha de mantimentos obedece, aparentemente, a um plano prévio, dado que parece existir uma partilha de tarefas e funções distribuídas: há aqueles que vão recolher mantimentos que já estavam prontos (“… ali carregavom de trigo que já achavom prestes, per recados que ante mandavom…”), através do Rio Tejo; há sinais combinados para alertar para os perigos, nomeadamente os decorrentes da presença dos castelhanos, etc.: “ali carregavom”; “Os que esperavam…”; “… repicavom logo por lhe acorrerem.”; “… aguardando quando veesse, e os que velavom, se viiam as galees remar contra lá, repicavom logo por lhe acorrerem…”.
                Apenas uma vez os galés foram tomadas, graças à denúncia de um “homem natural d’Almadãa”, cujo castigo pela traição foi terrível: “el foi depois tomado e preso e arrastado, e decepado e enforcado.” (enumeração, polissíndeto e gradação).
                No entanto, o trigo é tão pouco e raro que não supre as necessidades (atente-se na comparação com o milagre da multiplicação dos pães).


1.2. Expulsão da cidade da gente incapaz, fraca e pobre [("não pertencentes pera defensão", prostitutas, judeus") – desde "Em esto gastou-se..." até "... mester sobrelo conselho."].

a) Consequências da fome: a ausência de esmolas para os pobres.

b) Motivos:
- não podiam lutar / não podiam contribuir para a defesa da cidade;
- consumiam os mantimentos aos defensores.

c) O drama dos expulsos:
- refúgio no acampamento castelhano (1.º momento): “comer e acolhimento”;
- recusa de refúgio por parte dos castelhanos (2.º momento): para “gastar mais a cidade”, o rei de Castela ordena que mais nenhum sejam acolhido e que todos os que tinham sido sejam expulsos do acampamento.

                Inicialmente, os castelhanos recebem bem as pessoas expulsas da cidade, mas, quando percebem que Lisboa beneficia com isso, dado que haveria menos pessoas para alimentar, mandam-nas regressar.
                Todos os que se recusassem a partir seriam açoitados e obrigados a retornar para a cidade. O seu desespero é total, pois certamente não seriam acolhidos de volta, nomeadamente aqueles que tinham saído voluntariamente, já que preferiam ser prisioneiros dos castelhanos do que morrer à fome.

d) O Mestre ordena que se faça o levantamento do pão existente em Lisboa, tendo-se concluído que é muito escasso.


2) Fome da população: carência de pão e carne (desde "Na cidade não havia trigo..." até "...tam presentes tinham?").

a) Valor/preço dos mantimentos: alto e exagerado, dada a sua escassez.

b) Natureza dos mantimentos:
- pão de bagaço de azeitona e dos bolbos das malvas;
- raízes de ervas;
- melaço cristalizado;
- criação de porcos;
- comércio de galinhas, ovos e bois;
- carne das bestas.

c) O drama dos que padecem:
- a animalização das pessoas, que procuram desesperadamente comida no chão;
- a morte;
- os peditórios: as crianças mendigam pela cidade, pedindo comida;
- a falta de leite das mães.

d) O drama dos que morrem:
. a morte provocada pela ingestão de determinados alimentos e de água;
. a morte provocada pela fome.


3) Resistência da população: o patriotismo e a solidariedade da população – apesar da situação extrema de penúria e de desespero, do ambiente de tristeza e de conflitos ocasionais banais, sempre que os sinos repicam, todos se aprestam para enfrentar o inimigo castelhano; por outro lado, consolam-se uns aos outros naquele momento de infortúnio.

                De facto, apesar de famintos e extenuados, são solidários uns com os outros e corajosos contra os castelhanos, continuando a manifestar uma identidade coletiva que os une num propósito comum.
                Mais uma vez, a cidade é apresentada como uma personagem coletiva, um ser só: “Toda a cidade era dada a nojo” (isto é, toda a cidade sofria, tanto os pobres como os ricos – “grandes pessoas da cidade”). Assim, Lisboa é apresentada como um grande corpo coletivo que sofre.


4) Fome e desespero – Tentativas infrutíferas de ultrapassar a situação (desde "Oh quantas vezes..." até "... podia obrar."): recurso a Deus:
- missas;
- preces.

                A população reza, devota e desesperadamente, pedindo a Deus que a ajude, mas, vendo que as suas preces não são atendidas e que a sua dor é cada vez maior, chega a pedir a morte.


5) A incapacidade do Mestre resolver a situação (desde “Sabia, porém…” até “… rumor do povo.”)

                o Mestre e os seus, sabendo que nada podem fazer, sentem-se impotentes e ignoram os lamentos da população.
                Neste passo, aparentemente Fernão Lopes critica a ação de D. João e do seu Conselho, dado que “çarravom suas orelhas do rumor do poboo”, parecendo assim o cronista cumprir a imparcialidade e a neutralidade enunciadas no “Prólogo” à crónica.


6) O desespero da população (desde “Como nom quereis…” até “… per duas guisas.”) – dois inimigos: a fome e o rei de Castela levam ao desejo de morte.


7) Tentativa de superar a fome: corre o boato de que o Mestre irá expulsar da cidade todos os que não tenham alimentos, o que intensifica o desespero das pessoas, transformado em alívio ao saberem que tal não é verdade.


8) Justificação da situação de fome:
- excesso de população (a quantidade de pessoas que se recolheu dentro das muralhas da cidade);
- a falta de alimentos.


                Em suma, a falta de alimentos e o aumento do número de habitantes da cidade de Lisboa durante o cerco castelhano tem como consequências:
. a diminuição das esmolas públicas (ll. 24-25), o que evidencia falta de solidariedade desumanização;
. a expulsão da cidade de todas as pessoas consideradas incapazes de a defender;
. a falta de trigo para vender e consequente subida do preço de vários produtos (trigo, vinho, pão e carne), o que origina a fome entre a população, que come qualquer coisa, e a morte de muitas pessoas;
. o apego à religião constitui uma forma de mitigar todos os sofrimentos vividos.

                Em suma, a falta de alimentos e o aumento do número de habitantes da cidade de Lisboa durante o cerco castelhano tem como consequências:
. a diminuição das esmolas públicas (ll. 24-25), o que evidencia falta de solidariedade desumanização;
. a expulsão da cidade de todas as pessoas consideradas incapazes de a defender;
. a falta de trigo para vender e consequente subida do preço de vários produtos (trigo, vinho, pão e carne), o que origina a fome entre a população, que come qualquer coisa, e a morte de muitas pessoas;
. o apego à religião constitui uma forma de mitigar todos os sofrimentos vividos.


🔼 Conclusão (2 últimos parágrafos): desabafo comovente de Fernão Lopes.

                Fernão Lopes congratula os que viverão no futuro, porque não passarão pelos sofrimentos que Lisboa tem de passar durante o cero.


🔺 Consequências do cerco a Lisboa (síntese):

1. Sociais:
- expulsão dos fracos e não aptos para a defesa da cidade por falta de alimentos;
- a preferência pelo cativeiro dos castelhanos, em detrimento de morrer à fome.

2. Económicas:
- a diminuição / ausência de esmolas;
- a escassez e o preço elevado dos alimentos;
- a impossibilidade de comprar mantimentos, por causa do seu preço elevado.

3. Psicológicas:
- a coragem;
- o choro;
- o desespero;
- o conforto e a solidariedade mútuos.


🔺 Caracterização das personagens

 O povo de Lisboa – personagem coletiva (sente e age como um só): comportamentos e sentimentos diversificados, que evidenciam o agravamento da miséria e do estado anímico:






- o medo da vingança do rei de Castela, caso a cidade caísse nas suas mães
- disponibilidade total, "quando repicavom os sinos";
- coragem: a procura empenhada de alimentos (as idas de homens ao Ribatejo e a sua defesa por parte dos que esperavam), colocando a vida em risco
- defesa corajosa da cidade, ultrapassando a fraqueza humana e revelando um esforço sobrenatural;
- luta pela sobrevivência, procurando comida de forma degradante e bebendo água até à morte e pedindo esmola pela cidade;
- crueldade: a punição do traidor;
- pedido de ajuda a Deus, face à situação de desespero reinante;
¯
- população unida, solidária na desgraça, consciente no risco, sofre no presente e receia o futuro, mas não desiste de lutar e tenciona resistir até ao fim;


 Mestre de Avis – personagem individual:
- governante responsável, infortunado e ativo;
- solidário com o seu povo;
- sofre e resiste com ele;
- sentimentos:
. dor, motivada pelo conhecimento da situação de carência que o povo vive;
. impotência e incapacidade de resolver ou atenuar a gravidade da situação ("veendo estes males a que acorrer nom podia.") e as dificuldades da população;
. sofrimento graças à incapacidade de socorrer a população;
- atos: o Mestre e os do seu Conselho fecham os ouvidos "ao rumor do poboo", não por indiferença ou hostilidade, mas porque lhes eram dolorosas "douvir taaes novas (...) a que acorrer nom podiam";
- assume comportamentos de emergência face à situação extrema que a cidade vive, nomeadamente a expulsão dos que não têm mantimentos para se alimentar, uma forma difícil de atenuar o sofrimento da restante população.



🔺 Linguagem e estilo

. Marcas do estilo de Fernão Lopes:

-» o tom coloquial:
- uso da segunda pessoa do plural: "ouvistes"; "esguardae";
- uso da interrogação retórica: "Como nom querees que maldissessem sa vida e desejassem morrer... da vida aa morte?"; "veede que fariam aquelles que as continuadamente tam presentes tinham?"; “Pera que é dizer mais de taes falecimentos?”;
- uso da exclamação: "Oo quantas vezes... não eram compridas!";

-» a interpelação do leitor:
- uso da interrogação retórica;
- uso da apóstrofe: “Ó geeraçom que depois veo […] de taes padecimentos!”;
- uso da frase imperativa: “Ora esguardae como se fosses presente”;
- uso da interjeição “Ó”;

-» o pormenor descritivo e o visualismo:
- uso da adjetivação, por vezes dupla: "faminto"; "forte e rijo"; "triste e mesquinho"; "desvairados"; "desaventuirada"; "doorosas"; "cruel";
- a comparação concreta para precisar uma ideia abstrata: "assi como é natural cousa a mão ir amiúde onde se a door, assi uus homees falando com outros, nom podiam em al departir, senom em na mingua que cada uu padecia";
- a personificação: "toda a cidade era dada a nojo, chea de mesquinhas querelas";
- paralelismo de construção: "Uus choravom antre si, mal dizendo (...) Outros se querelavom a seus amigos, dizendo...";
- a referência ao valor dos alimentos:
. "Ca valia o alqueire quatro libras, e o alqueire de milho quarenta soldos, e a camada de vinho três e quatro libras.";
. "... e pequena posta de porco valia cinco e seis libras, que eram uma dobra castelã; e a galinha quarenta soldos; e a dúzia dos ovos, doze soldos. E se os almogávaros traziam alguus bois, valia cada uu setenta libras, que eram catorze dobras cruzadas, valendo então a dobra cinco e seis libras; e a cabeça e as tripas, uma dobra...";
. "Andavom os moços de três e de quatro anos...";
- a enumeração gradativa: “Das carnes, […] ua dobra”;
- vocabulário relacionado com os atos de ver (“vede”) e ouvir (“ouvistes”) – as sensações auditivas têm grande relevância na descrição, pois é através delas que o narrador exprime a noção do perigo: os sinos repicam, tocam a rebate, alertando a população, que acorre rapidamente onde é necessário quando os ouve;

-» o realismo descritivo:
. "No lugar u costumavom vender o trigo, andavom homees e moços esgravatando a terra e se achavom alguus grãos de trigo, metiam-nos na boca, sem tendo outro mantimento. Outros se fartavom de ervas e bebiam tanta água, que achavom mortos homees e cachopos jazer inchados nas praças e em outros lugares.";
. "Andavom os moços de três e de quatro anos pedindo pão pela cidade por amor de Deus, como lhes ensinavom suas madres; e muitos não tinham outra cousa que lhe dar senão lágrimas que com eles choravom, que eram triste cousa de ver; e se lhes davom pão como uma noz, haviam-no por grande bem.";
. "... ficados os geolhos, beijando a terra, bradavom a Deus que lhes acorresse...";
. "Os padres e madres viam estalar de fame os filhos que muito amavom, rompiam as faces e peitos sobreles, não tendo com que lhe acorrer senom pranto e espargimento de lágrimas".

-» objetividade:
. os pormenores de caráter económico (“ca valia o alqueire quatro livras; e o alqueire do milho quarenta soldos…”);
. o realismo descritivo relativo à luta pela sobrevivência (“Das carnes, isso meeesmo, havia em ela […] bem mostravom seus encubertos padecimentos.”);

-» subjetividade – a apreciação crítica e emotiva dos factos relatados:
. interrogações retóricas: “Como non lançariam fora a gente minguada […] havia mester sobr’elo conselho?”;
. frase exclamativa na interpelação final às gerações vindouras: “Ó geeraçom de depois […] de taes padecimentos!”;

-» alternância entre
. planos gerais: o grande plano da cidade e dos atores coletivos que nela intervêm (linhas 1 a 5, por exemplo);
. planos de pormenor: a incidência em grupos de personagens e/ou situações particulares (por exemplo, a procura de grãos de trigo, por “homees e moços”);

-» comunicação do narrador com o narratário, isto é, o leitor:
. o narrador apela à leitura de capítulos anteriores, dirigindo-se diretamente aos leitores: “Estando a cidade assi cercada na maneira que já ouvistes”;
. o narrador interpela diretamente o leitor para o aproximar da situação descrita: “Veede que fariam aqueles que as continuadamente tam presentes tinham?”;
. o narrador convoca o leitor para o passado de dor que reporta, procurando fazer-lhe notar que quem nasceu depois daquela provação, tal como ele (leitor), teve sorte;
. o narrador convida os leitores a observar o que se passa em Lisboa: “Ora esguardae como se fosses presente…”.


. Outros recursos

- A elegia comovida.

- A análise psicológica dos que padecem e morrem.

- A sugestão de simultaneidade (apelo final):
. texto/facto narrado;
. facto narrado/leitura.

- As funções da linguagem:
. informativa;
. expressiva;
. apelativa.

- Enumeração, polissíndeto e gradação (“… e forom descobertos per huu homem natural dAlmadãa, e tomados per os Castellaãos; e el foi depois tomado e preso e arrastado, e deçepado e enforcao.”): traduz os castigos infligidos ao homem de Almada que encontrou barcos com trigo, evidenciando a crueldade e a brutalidade da punição.

- A gradação                                             ü intensidade dramática
- A multiplicação do clímax                   þ                   ¯
estrutura trágica

- Os tipos de frase:
- exclamativas            ü sublinham a gravidade e o dramatismo da situação  em que a
- interrogativas          þ população se encontrava.

- Exclamações            ü conferem autenticidade e emotividade à descrição,  tornando-a mais viva e
- Interrogações          þ e suscitando a comoção e a adesão do leitor.

- Arcaísmos: "pero", "ca" (pois, porque), "uus", "nenhuus", "antre", "nojo", "departir", "guisas".

- Comparação:
. "... assi dos que se colherem dentro do termo de homees aldeãos com mulheres e filhos, como dos que vierom na frota do Porto...";
. "... tamanho pão como uma noz...";
. "E assi como é natural cousa a mão ir amiúde onde sêe a dor, assi uns homees falando com outros não podiam em al departir senão em na míngua que cada um padecia": evidencia a necessidade de os habitantes de Lisboa lidarem com a sua dor, através do diálogo com quem comungava do seu sofrimento, tal como a mão o faz através do contacto físico, no caso de padecimentos dessa natureza;
. "... tanta diferença há de ouvir estas cousas àqueles que as então passaram, como há da vida à morte?";
. mester de o multiplicar como fez Jesu Christo aos pães”: reforça o dramatismo, uma vez que só um milagre poderia salvar a cidade.

- Advérbio de modo: "escusamente"; "mui rijamente"; "mui apertadamente"; "à pressa".

- Personificações:
- da cidade de Lisboa;
- “as pubricas esmolas começarom desfalecer”.

- Pleonasmos:
. "colherom dentro";
. "deitar fora";
. "lançarem fora";
. "os a morte privasse da vida".

- Metáforas:
. "rogavam a morte que os levasse";
. "cerravom suas orelhas do rumor do povo.";
. "padeciam duas grandes guerras" (…) sse defender da morte per duas guisas…”: os habitantes de Lisboa enfrentam duas guerras – a guerra (o cerco) contra os castelhanos e a fome resultante do cerco – que impedia que se defendessem quer da morte, quer, por falta de forças, do inimigo;
. "ondas de tais aflições?";
. “Os padres e madres viam estalar de fome os filhos…”: explicita a desgraça das crianças, tal como o que estala parte, morre, também as crianças morriam, privadas de alimentos;
. “… andavom homees e moços esgaravatando a terra”: a metáfora evidencia o desespero das pessoas por causa da fome. Tal como as galinhas esgaravatam a terra em busca dos grãos de milho, também as pessoas, levadas pelo desespero da fome, remexiam a terra como aquelas à procura de algum grão perdido.

- Adjectivação expressiva.

- Apóstrofe: "Oh, geraçom que depois veio, povo bem-aventurado...".

- Hipérbole: "ondas de tais aflições!".

- Eufemismo: “Assim que rogavam a morte que os levasse…” – explicita o desejo de morte, pois é preferível esta aos padecimentos que sofrem.

- Tempos verbais: pretérito perfeito e imperfeito.



🔺 O texto como documento da época em que se insere

1. Pelo conteúdo:
- contexto histórico:
. o cerco da cidade de Lisboa pelos castelhanos.

2. Pela forma:
- o texto como exemplo da fase arcaica da língua:
. grande número de hiatos (encontro de vogais ásperas): doo, veede, door, seer, Meestre, etc.;
. a terminação -om nos nomes (razom, coraçom, etc.), nos advérbios (nom) e na terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo dos verbos da primeira conjugação (esforçavom-se, repicavom, encomendavom, braadavom, çarravom, etc.);
. o uso de conjugações arcaicas: pero (mas), ca (pois, porque);
. a ocorrência de pronomes arcaicos: all (outra coisa);
. o uso da forma arcaica do determinante indefinido (huus, nenhuu, hua) e da preposição (antre);
. a dupla negativa: "nenhuu nom mostrava";
. o uso de arcaísmos: nojo, departir, guisas.


Análise de outros capítulos:

    . Capítulo XI.

    . Capítulo CXV.

Estrutura externa da 'Crónica de D. João I'

. Duas partes.
. Um prólogo antecedendo cada parte.
. Primeira parte: 193 capítulos.
. Segunda parte: 203 capítulos.
. Síntese de abertura de cada capítulo (são relativamente curtos), antecedido(s) de uma síntese inicial que contém, frequentemente, uma intenção explicativa.

      O título da crónica parece apontar para D. João I como o protagonista da narrativa, todavia outras personagens são objeto de realce, como Nuno Álvares Pereira, por exemplo.


Fernão Lopes, cronista do reino

                O rei D. Duarte, em 1434, encarregou Fernão Lopes de ser o cronista do reino nos seguintes termos: “… poer em caronica as histórias dos reis que antigamente em Portugal foram” e registar “os grandes feitos e altos do mui virtuoso e de grandes vertudes El-Rei meu Senhor e padre [D. João I], cuja alma Deus haja.”.
                Em 1454, Fernão Lopes, já de idade avançada, foi substituído na função por Gomes Eanes de Zurara.


sábado, 30 de dezembro de 2017

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

"All Time High", Rita Coolidge

"A honra perdida de Katharina Blum", de Heinrich Böll

     Katharina Blum, empregada em casa de um advogado, durante um baile de Carnaval, apaixona-se por um alegado assaltante de bancos, desertor e assassino e passa uma noite com ele no seu apartamento. No entanto, a polícia tem ambos sob vigilância, o que não impede que ele desapareça sem deixar rasto.
     As forças da autoridade convocam então Katharina para depor sobre as suas relações com Ludwig Götten, mas liberta-a por a considerar inocente de parceria com o criminoso. Entretanto, enquanto o advogado e a sua esposa, conhecida por "Trude Vermelha" por ambos serem considerados comunistas, interrompem as suas férias e acorrem em seu auxílio.
     Um jornalista que trabalha para um jornal sensacionalista chamado simplesmente Jornal debruça-se sobre o caso e escreve uma série de artigos onde altera os factos, distorcendo-os, mente, de forma a dar de Katharina uma imagem de cúmplice de Götten, de uma mulher leviana e insensível. Entrevista pessoas amigas, vizinhas ou familiares (pelo meio causa a morte da mãe da jovem, recentemente objeto de uma intervenção cirúrgica delicada para debelar um cancro, depois de lhe mentir sobre a filha) e distorce as suas palavras sobre Katharina. Trata-se de uma verdadeira perseguição: de terrorista a comunista, passando por criminosa, tudo o 'jornalista' lhe chama.
     No auge da fúria, Katharina procura-o e assassina-o a tiros de revólver.
     Publicada originalmente em 1974, a obra, cuja ação decorre na então Alemanha Ocidental, no pico da Guerra Fria, retrata a paranoia dessa época e as profundas divisões políticas mundiais. Note-se, por exemplo, que o maior insulto dirigido a alguém era apelidá-lo de "comunista". Por outro lado, Böll critica acidamente o jornalismo sensacionalista.

"Werther", de Goethe

     Werther, um jovem inconstante, conhece Carlota, uma jovem comprometida com Alberto, por quem se apaixona irremediavelmente.
     Da evolução da sua paixão trágica dá conta ao amigo Guilherme através de cartas. Desesperado pela impossibilidade de concretizar o seu amor, vai trabalhar para um embaixador, mas rapidamente regressa para o convívio da sua amada. Após um convívio inicial com Alberto, os dois rivais começam progressivamente a esfriar as suas relações. Por outro lado, este faz, cada vez mais, mais alusões ao suicídio.
     Por seu turno, Werther conhece histórias de amores contrariados. Um deles é o de um criado e da viúva para quem trabalha. Afastado dela pelo irmão da viúva, outro criado toma o seu lugar e é anunciado o casamento deste último com a mulher. Porém, o primeiro assassina o rival, porque, já que ela não pode ser sua, não será de mais ninguém. O jovem vê neste caso um espelho do seu, por isso toma o partido do assassino.
     Depois de Carlota pedir a Werther que só a volte a visitar pelo Natal, ele acaba por ir a sua casa uns dias antes da data e, num acesso de loucura, beija-a. A jovem expulsa-o e pede-lhe que nunca mais a procure. Werther pede as duas pistolas a Alberto e quem as dá ao criado do jovem é Carlota, num gesto que, metonimicamente, a aponta como responsável pela desgraça dele.
     Werther suicida-se com um tiro na cabeça, mas a sua agonia prolonga-se por várias horas. Carlota, ao vê-lo, desmaia e está bastante tempo entre a vida e a morte. O funeral tem fraco acompanhamento e nenhum padre o acompanha, dado tratar-se de um suicida.

Partes da 'Crónica de D. João I'

     A Crónica de D. João I foi escrita entre 1434 e 1443, constituindo a terceira e mais perfeita das compostas por Fernão Lopes.
     Impressa pela primeira vez em Lisboa, em 1664, foi deixada incompleta, sendo da autoria do cronista a primeira (o interregno entre a morte de D. Fernando e a eleição de D. João I) e a segunda parte (o reinado de D. João I até 1411), não se sabendo se terá legado manuscritos para a terceira, redigida por Gomes Eanes de Zurara, seu sucessor, conhecida como Crónica da Tomada de Ceuta.

     A primeira parte narra, pois, o período revolucionário, durante o interregno de 1383-1385. A ação está concentrada em cerca de dezasseis meses: da morte do conde Andeiro (dezembro de 1383) à aclamação do Mestre de Avis como rei de Portugal nas cortes de Coimbra, em abril de 1385, passando pelo alvoroço da multidão que acorre a defendê-lo e pela morte do bispo de Lisboa. O que está em causa é a legitimação da eleição de D. João I, consumada em Coimbra, na sequência da argumentação do doutor João das Regras, enquanto desfecho inevitável imposto pela vontade popular.

     A segunda parte compreende o reinado de D. João I, decorrendo entre abril de 1385 e outubro de 1411, e inclui a narração do conflito bélico entre Portugal e Castela, incluindo a Batalha de Aljubarrota, até à assinatura do tratado de paz.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Fontes da obra de Fernão Lopes

1. Fontes narrativas
  • Crónica do Condestabre de Portugal (sobre Nuno Álvares Pereira), anónima, redigida provavelmente entre 1431 e 1436.
  • Tratados dos Feitos de D. João, Mestre de Avis, de Cristophorus (eclesiástico ou doutor em leis).
  • Crónica dos Reis de Castela, de Pero López de Ayala.
  • Crónica dos Feitos de D. Fernando, de Martim Afonso de Melo.
  • Livro de linhagens do conde D. Pedro.
  • Pelo menos cinco narrativas anónimas, referidas pelo próprio cronista e que descrevem a Batalha de Aljubarrota.
     Fernão Lopes recorre a várias fontes (textos históricos anteriores) com o objetivo de:
  • Fundamentar a verdade histórica em documentos escritos;
  • Confrontar os documentos para aferir a verdade dos factos.


2. Fontes documentais
  • Atas de cortes.
  • Documentos das chancelarias.
  • Bulas papais.
  • Bitafes antigos, isto é, epitáfios de sepulturas.
  • Práticas e sermões, procurações.
  • Correspondência epistolar particular e oficial.


3. Fontes orais

     Fernão Lopes socorreu-se ainda de testemunhos de pessoas que assistiram a acontecimentos narrador e que conheceram aqueles que nele participaram. De facto, o cronista teve acesso a testemunhos vivos, isto é, a pessoas que tinham conhecido aqueles tempos, nomeadamente os da crise de 1383-1385.

    A obra de López de Ayala serviu como fonte para 55 capítulos da Crónica de D. Fernando, enquanto a Crónica de D. Juan I foi aproveitada em 70 capítulos da Crónica de D. João I. Já a Crónica do Condestabre é usada quase na totalidade, não tendo sido utilizados apenas 8 capítulos. O cronista português chega mesmo a copiar períodos inteiros destas obras.
     As fontes narrativas dominaram a pesquisa de Fernão Lopes, tendo a consulta de fontes documentais ocorrido, de forma pontual, somente para completar o relato.

     A leitura das crónicas e da demais documentação deve ser feita com grande reserva pelos problemas que reserva. De facto, a redação das obras ocorre entre 1437 e 1443, ou seja, sessenta a setenta anos depois do reinado de D. Fernando (1367-1383) e da regência de D. Leonor Teles (22 de outubro de 1383 a janeiro de 1384). Pelo contrário, López de Ayala (1332-1407) foi testemunha ocular de acontecimentos que tiveram lugar no período a que se reportam as crónicas. Além disso, Ayala desempenhou outras funções além da de cronista: curador do casamento entre o infante D. Henrique e a infanta portuguesa D. Beatriz; chanceler e alferes-mor do rei D. João I de Castela (marido da dita Beatriz); vassalo presente nos juramentos ao Tratado de Salvaterra de Magos; participantes na Batalha de Aljubarrota, do lado castelhano. Um viveu os acontecimentos, o outro ouviu-os contar e leu-os.
     Por outro lado, convém não esquecer que a obra de Fernão Lopes resultou da encomenda feita pela dinastia de Avis, nos primeiros anos da sua vida, quando havia a premência de afirmar o reinado dos novos governantes.
     Outra questão a ter em conta prende-se com o facto de a Torre do Tombo - criada por D. Fernando em 1378 e instalada no castelo de S. Jorge, para funcionar como arquivo dos livros das chancelarias régias - ter sido marcada pela desorganização progressiva com a passagem do tempo, daí que, em 1458, D. Afonso V tenha encarregado Gomes Eanes de Zurara de a remodelar. A sua ação passou pela escolha, nos livros de registos antigos, dos atos dignos de memória e pela sua cópia em novos livros de registo. Por exemplo, os 48 livros de D. João I passaram a apenas 4. Com esta depuração, os antigos livros de registos passaram à categoria de obsoletos, foram esquecidos e acabaram por desaparecer no reinado de D. João III.
     Em suma, só chegou ao nosso conhecimento a informação que os nossos antepassados quiseram que chegasse, graças às triagens e depurações feitas ao longo do tempo por diferentes agentes.
     Por outro lado, se é evidente que, no Prólogo à Crónica de D. João I, afirma que o seu objetivo é contar a verdade dos factos, não o é menos a noção de que há sempre diversas leituras da mesma realidade. Com efeito, as fontes em que nos baseamos refletem habitualmente uma série de circunstâncias e a ideologia dominante e não necessariamente a dita realidade. Além disso, há que ter em conta que se trata de uma narração e representação dessa realidade e não a própria.

"D. João I - um retrato épico"


     Tese de mestrado sobre o caráter mítico de D. João I, da autoria de Luís Miguel Martins Ventura, datado de 2009, pela Universidade Aberta.

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

"Crime e Castigo", de Fiódor Dostoiévsky

     Raskólnikov é um jovem de 24 anos, natural de Petersburgo, pobre e endividado, por isso revoltado contra o «mundo» que planeia um crime contra uma velha agiota (símbolo na obra do capitalismo) para se libertar do seu modo de vida miserável, mas demonstra também hesitação e alguma repulsa por pensar em recorrer ao crime.
     A personagem Marmeládov representa o baixo estatuto dos funcionários públicos: miserável, alcoólico, desprezado pela sociedade, oprimido em casa, procurando, através de um expressão verbal recheada de floreados, o respeito público. Humilha-se ao pedir empréstimos; a filha é prostituta; vende até as roupas da mulher para sustentar a bebedeira; vive numa casa gelada, por isso, no último inverno, a consorte adoeceu e começou a cuspir sangue. Atualmente, esta trabalha de manhã à noite, não obstante a sua educação esmerada, a cultura e a proveniência de boas famílias. Vendo-se viúva e desprezada pela própria família, casou pela segunda vez por necessidade absoluta. Marmeládov, também viúvo, não conseguiu agradar à segunda mulher, foi despedido, errou por várias cidades até assentar ali. Foi nesta cidade que a filha do primeiro casamento se viu na necessidade de se prostituir... e o pai bêbedo. Marmeládov dirigiu-se então a sua excelência Ivan Afanássievitch, que lhe deu emprego. Em consequência, a vida da sua família transformou-se, até que há cinco noites ele retirou todo o dinheiro do baú, saiu de casa e caiu novamente na bebida.
     De volta aos seus problemas, Raskólnikov fica a saber que a senhoria quer dar parte de si à polícia por não pagar a renda. Entretanto recebe uma carta da mãe que aborda diversos assuntos familiares: (1) os maus tratos e as humilhações sofridas por Dúnia, sua irmã, em casa do sr. Svidrigáilov, porque se havia apaixonado por ela e usa a grosseria e o desprezo para mitigar o seu desvario amoroso; a mulher descobre o interesse amoroso dele, mas interpreta a situação ao contrário, como se fosse Dúnetchka a tentar seduzir o patrão, fazendo recair sobre ela todo o odioso da questão e o desprezo da cidade; o problema resolve-se quando Svidrigáilov relata à esposa toda a verdade, relato esse sustentado pelos criados, e a honra é devolvida à família de Raskólnikov; (2) Dúnetchka recebeu um pedido de casamento de Piotr Petróvitch Lújin, conselheiro áulico e parente afastado de Marfa Petrovna, mulher de Svidrigáilov; trata-se de um homem abastado mas muito mais velho (45 anos), bondoso e bem apessoado, direto e um pouco brusco; não será um casamento de amor intenso; Dúnia projeta já que o irmão se torne sócio do futuro marido num escritório de advocacia que este pretende abrir em Petersburgo (até porque Raskólnikov poderá regressar à universidade para retomar o curso de Direito entretanto abandonado); (3) Pulkhéria Raskólnikova, a mãe, poderá, agora que o crédito lhe foi novamente franqueado, enviar algum dinheiro ao filho.
     Raskólnikov não aceita o casamento e faz uma longa digressão sobre as razões que terão levado a irmã a tomar uma atitude tão 'decisiva' na vida que é incongruente com a sua forma de ser e de viver, para concluir que se trata de um sacrifício pessoal em prol de uma melhor existência para a mãe e o irmão.
     A propósito do encontro com uma miúda de 15 / 16 anos bêbeda, acabada de "enganar" (pela primeira vez), reflete sobre a vida degradante que levam as prostitutas: a primeira "asneira", a descoberta por parte da família, a expulsão de casa, as ruas, os chulos e as casas de prostituição, as doenças venéreas / gravidezes, o fim da vida aos 18 / 19 anos.
     Enquanto estudante universitário, Raskólnikov isolava-se de todos, não participava em nada (conversas, divertimentos, convívios), estudava muito, pelo que era respeitado mas não amado pelos colegas. A sua pobreza tornava-o orgulhoso, fechado e desdenhoso. O único amigo que possuía era Razumíkhin, um rapaz bastante alegre, sociável, bondoso, um pouco simplório, mas assaz inteligente. Era pobre (vivia à custa de pequenos trabalhos) e valentão, capaz das atitudes mais contraditórias; nenhuma contrariedade o desanimava.
     Raskólnikov prepara-se para cometer o seu crime e recorda.-se da coincidência de, na altura em que começara a pensar nele, ter ouvido, numa taverna, uma conversa entre dois homens, que consideravam a morte da velha usurária um ato de justiça social. O seu caráter introspetivo leva-o a considerar uma espécie de analogia: figuras como Júlio César e Napoleão Bonaparte foram responsáveis por milhares de mortos, porém a História registou-os como grandes heróis e conquistadores, absolvendo-os dos seus atos. Por que razão ele não o poderia ser também ao eliminar a velha agiota? Assassinando-a, não estaria a fazer um bem à humanidade?
     Como ardil para entrar em casa da velha, Raskólnikov embrulha muito bem um pedaço de madeira e uma chapa de ferro e cose uma alça de pano dentro do sobretudo muito largo para o machado ser transportado sem levantar suspeitas. No meio de grande nervosismo, assassina a velha e está a vasculhar as coisas dela em busca das riquezas, quando ouve um grito ténue. É Lisaveta, a irmã, da morta, que acabara de entrar e que ele também assassina à machadada. Pouco depois dá-se a chegada de um cliente de nome Koch e de um jovem estudante para juiz de instrução, que acabam por desconfiar que algo de suspeito aconteceu porque a porta não está fechada à chave, mas apenas com a tranca, e nenhuma das duas irmãs vem atender. Os dois descem à procura do guarda e Raskólnikov aproveita para fugir, mas, enquanto desce, apercebe-se que os outros vêm a subir de regresso. No último momento, encontra um apartamento em obras, vazio, e nele se esconde até os outros passarem em direção ao cenário do crime. Chegado a sua casa, repõe o machado no sítio e sobe para o seu quarto. Vestígios de sangue permanecem, no entanto, nos fios das suas calças e nas suas meias.
     Cheio de febre e em pânico, Raskólnikov é chamado à esquadra de polícia, mas afinal "só" por causa de uma dívida à sua senhoria. Na esquadra ainda, ouve casualmente uma conversa, através da qual fica sabedor de que as autoridades não possuem pistas sobre o assassino da usurária. Com efeito, tratou-se do crime perfeito. Apesar disso, continua a pensar que a polícia suspeita de si, por isso livra-se dos objetos roubados à velha, escondendo-os num buraco junto a um portão de um prédio. Por outro lado, além do medo de ser preso, ressaltará o sentimento de culpa que o irá assolar e que nenhum livro o ensinou a superar. Matar milhares de seres humanos em nome da humanidade talvez seja mais fácil de superar do que aniquilar um só.
     De seguida, vagueando ao caso, vai ter a casa do amigo de universidade Razumíkhin, que lhe oferece parceria numas traduções que anda a fazer, mas recusa a oferta, bem como o dinheiro correspondente ao pagamento da tarefa. De noite, acometido de febre, sonha que o ajudante de polícia que o recebeu de dia espanca a sua senhoria, Depois desmaia.
     Dias depois, quando desperta da febre, tem ao seu dispor 35 rublos que a mãe lhe enviou e que, de início, rejeita. Fica a saber, por intermédio do amigo, que um trolha é agora o suspeito do assassínio da usurária. Obcecado pelo crime que cometeu, hesita em ir à polícia denunciar-se como autor do crime. A obsessão é tamanha que chega a deslocar-se novamente à casa da vítima. É o desejo de ser punido a despertar na sua psique. Entretanto a irmã e a mãe vêm à cidade e aí permanecem., enquanto Raskólnikov prossegue o seu percurso errático, chegando a despertar suspeitas.
     A chegada de Svidrigáilov, marido da defunta Marfa Petrovna e suspeito de vários atos criminosos, entre os quais pedofilia e a morte da própria mulher, vem perturbar-lhe mais a existência. Em simultâneo, a irmã recebe 3000 rublos da herança de M. Petrovna e termina o noivado com Lujín por causa de um ódio mútuo.
     Raskólnikov confia a família a Razumíkhin e dirige-se à polícia, onde encontra um juiz de instrução - Porfiri - que o confunde por completo ao explicar-lhe um método de investigação "psicológico" que se aplica a si mesmo e ao seu comportamento na perfeição, mas afirmando sempre que não se lhe aplica. Uma surpresa reservada a Raskólnikov - o confronto com o homem que, no dia anterior, o tinha perseguido e chamado assassino - acaba por cair por terra quando irrompe pela sala Nikolai, um dos pintores, que se apresenta como o autor do crime.
     Os acontecimentos sofrem uma reviravolta quando o protagonista conhece Sónia, uma prostituta miserável que acaba por representar a fé ortodoxa e a possibilidade de uma redenção. De facto, ele, um niilista, é confrontado com a leitura de uma passagem do Evangelho de São João, precisamente a que refere a ressurreição de Lázaro. E, de facto, a partir desse momento, o herói parece ressurgir do mundo da solidão, da culpa, da introspeção, do niilismo.
     Entrementes Lujín arma uma cilada a Sónia durante o "banquete" organizado após o funeral do pai, simulando um furto de 100 rublos, procurando despoletar um conflito entre Raskólnikov e a sua família e que ele, Lujín, recuperasse as boas graças da mãe e da irmã daquele. No entanto, acaba por ser desmascarado por Lebeziátnikov e pelo próprio Raskólnikov. Posteriormente, este revela a Sónia ser o assassino de Lisaveta e da velha agiota e ela aconselha-o a confessar.
     A mãe de Sónia, Katerina Ivánovna, em desespero, vai pelas ruas com os filhos mais novos, como "cantores" ambulantes, para obter o dinheiro que lhe falta e que todos lhe negam até que cai, expelindo golfadas de sangue pela boca, e morre, vitimada pela tísica. Svidrigáilov, que entretanto escutou, no quarto contíguo, a confissão do assassinato, trata de colocar os filhos mais novos de K. Ivánovna numa instituição de crianças órfãs, oferecendo-lhes também uma determinada quantia de dinheiro para que tenham o futuro assegurado.
     Raskólnikov recebe a visita do juiz de instrução, Porfíri Petróvitch, que o vem acusar direta e inequivocamente do crime, revelando não acreditar na confissão do pintor, que o terá feito por crença religiosa. Aconselha-o a confessar e assim terá atenuantes quando lhe for aplicada uma pena, contudo ele recusa e vai falar com Svidrigáilov. Este, mais tarde, recebe Dúnia após lhe ter escrito uma carta onde dava a entender que o irmão tinha assassinado a velha agiota e a irmã. Agora, confirma este facto e o modo como ficou a conhecê-lo e propõe-lhe um relacionamento em troca da salvação de Raskólnikov. Ela recusa e ele ameaça violá-la, mas Dúnia saca de um revólver e chega a efetuar um disparo, ferindo na fronte de raspão. Tenta mais duas vezes, mas arma mal o revólver e este não dispara, perante um Svidrigáilov que prefere morrer face à recusa da jovem. Dúnia acaba por atirar a arma ao chão; o homem abraça-a, mas ela, a tremer, diz-lhe não e ele dá-lhe a chave do quarto.
     De seguidam Svidrigáilov procura Sónia e oferece-lhe dinheiro para ela sobreviver, juntamente com Raskólnikov, caso este seja preso e a mulher o acompanhe. Depois dirige-se a casa da noiva de 16 anos e oferece à família 1500 rublos, pois vai partir para a América por um largo período de tempo. Vagueia então por Petersburgo até pernoitar num autêntico antro, no qual o seu sono é interrompido várias vezes por sonhos estranhos. Posteriormente, sai para a rua e suicida-se com um tiro na cabeça, tendo como testemunha um bêbedo.
     Por sua vez, após ter considerado também o suicídio, lançando-se ao rio, Raskólnikov decide entregar-se à justiça, indo despedir-se previamente da mãe e da irmã, continuando, porém, a não considerar o seu gesto um crime, porque se tratou de livrar o mundo de um piolho (um parasita) que explorava centenas de pobres indefesos, comparando o seu ato aos "crimes" cometidos pelos dirigentes das nações, que comemoram com champanhe o derramamento do sangue de milhares de homens. Quando se prepara para confessar o crime a Iliá Petróvitch, este comunica-lhe que Svidrigáilov se suicidou, o que o deixa incrédulo e zonzo e sai sem confessar. No entanto, à saída, encontra Sónia, mortificada. Reentra então e confessa finalmente o seu duplo homicídio.

     O Epílogo situa-nos numa prisão siberiana, um ano e meio após o crime e nove meses depois do encarceramento de Raskólnikov. O processo judicial decorreu célere, pois ele confessou tudo e os juízes concluíram que o crime fora cometido em resultado de loucura temporária, pois o criminosos não tirou proveito do posterior roubo, isto é, não matou por interesse material, para roubar. No entanto, Raskólnikov assume que o crime fora praticado pela sua pobreza e desamparo, pelo desejo de assegurar os primeiros passos na carreira. A sentença foi condicionada por diversas atenuantes: o seu estado doentio e desorientado no momento do crime; o assassínio fortuito e não planeado de Lisaveta; a confissão espontânea do ato; o seu passado humano e caridoso, revelado por Razumíkhin; um ato de heroísmo revelado pela mãe da ex-namorada, já falecida. Resultado: oito anos de trabalhos forçados de segundo grau.

     A mãe adoece e entra num estado de quase loucura, enquanto Rasumíkhin a leva e a Dúnia para morar numa pequena cidade perto de Petersburgo. Sónia segue-o para a Sibéria.
     Dois meses depois da partida, Dúnetchka e Razumíkhin casaram-se, numa cerimónia triste e modesta. Pouco tempo volvido, Pulkhéria Aleksándrovna morre.
     Sónia e o casal trocam cartas uma vez por mês, onde aquela relata secamente os factos ocorridos com Raskólnikov e nada sobre o seu estado de espírito ou projetos, apenas o grande abalo sofrido ao conhecer a nova da morte da mãe: ensimesmamento e indiferença relativamente ao presente e ao futuro. Sónia encontra-se regularmente com Raskólnikov, a quem fornece dinheiro para chá por a comida ser intragável, e trabalha como costureira, tendo conseguido que ele fosse protegido pelas autoridades prisionais. Repentinamente, a notícia de que adoeceu, de orgulho ferido, por a sua consciência não ver no crime qualquer erro ou culpa e não ser capaz de qualquer arrependimento. Enquanto os outros presidiários o odeiam, adoram Sónia, que lhes escreve as cartas destinadas aos familiares..
     Quando Raskólnikov tem alta da enfermaria, é informado que Sónia adoecera e estava de cama, o que o deixa preocupado e pede a alguém que vá saber dela.
     Numa manhã em que vai trabalhar para a margem do rio, surge, repentinamente, Sónia e, subitamente, ele lança-se aos seus pés: ama-a. E é esse amor que os irá resgatar a ambos e fazer encarar os sete anos que faltam cumprir de pena como "apenas sete anos", sem pressentirem que este princípio de felicidade será confrontado com grandes provas futuras.
     Afinal, é o amor que vai salvar estas duas almas infortunadas - um assassino e uma prostituta -, que vai resgatá-las e dar-lhes a oportunidade de uma nova vida.
     

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

"Angústia para o Jantar", Luís de Sttau-Monteiro

     O que levará Gonçalo, um empresário rico e burguês, a encontrar-se para jantar com António, empregado de escritório e pobre, sempre ao dia 15 de cada mês, se nada têm em comum senão terem sido, há mais de 30 anos,  colegas no liceu? Um mero hábito que se adquiriu? Uma forma de mostrar que mantém as amizades de tempos longínquos?
     Gonçalo, de 55 anos, casado com Teresa, tem uma amante, Alexandra, que por sua vez possui o(s) seu(s) amante(s). Seguem-se algumas reflexões do narrador: sobre o provincianismo domingueiro, sobre o machismo (o porteiro que passou a manhã sentado, a ler o jornal, enquanto a mulher varria a casa, limpava e fazia a comida, e come a carne toda, enquanto ela e os filhos apenas batatas fritas).
     Casualmente, num domingo em que ficara só porque Gonçalo, como de costume, janta com a família, Alexandra e António encontram-se num bar e ela, por estar só, leva-o a jantar em sua casa, onde António descobre uma fotografia de Gonçalo e se apercebe de que se trata da amante deste. Os dois acabam por ter relações sexuais, porém, a meio da noite, curada da bebedeira, ela expulsa-o de casa, enojada do que acabara de fazer. Tempos depois, alguém conta a Gonçalo que viu a amante com um homem horroroso num bar e que saíram juntos.
     A sociedade a que Gonçalo pertence caracteriza-se pela hipocrisia, fingimento e vacuidade. As mulheres são, culturalmente, vazias; tudo fazem para manter o seu "status" social e económico, mesmo suportar "com elegância" as amantes dos maridos, quando não são elas que os traem; nada fazem de útil; são sustentadas pelos maridos, sem os quais nada saberiam fazer para se sustentarem a si mesmas.
     O filho de Gonçalo, Pedro, de 24 anos, envolve-se num grupo de contestação ao regime político. O pai só consegue "falar-lhe" através de carta.
     António desloca-se ao apartamento de Alexandra na esperança de voltar a dormir com ela, mas é humilhado e expulso. Com medo, no entanto, que o homem conte a Gonçalo o que se passou, a mulher conta ela mesma ao amante o sucedido. Gonçalo "perdoa-lhe", pois vê ali uma oportunidade para, daí a dois ou três meses, a descartar.
     António sofre de uma doença fatal. Teresa entrega ao filho a carta escrita pelo pai e constata que ela e o filho vivem e sonham com mundos muito diferentes. Alexandre parte em busca de novo amante.
     Gonçalo, para afastar o filho das "ideias revolucionárias" que persegue, decide convidá-lo para o próximo jantar com António, tencionando humilhar, destruir este aos olhos do filho, para que veja quão insignificantes são os "tipos com quem [Pedro] anda metido".
     Durante o jantar, em que Gonçalo tudo faz para conseguir humilhar António aos olhos de Pedro, ficamos a saber a forma como se conheceram: António era gozado, no liceu, pelos colegas por causa do seu aspeto franzino. Um dia vinga-se de um deles atirando-lhe uma pedrada e esconde-se. Os outros alunos acabam por o descobrir, escondido atrás de um muro, fazem uma roda e assistem, em êxtase, à sova que o "apedrejado" lhe aplica. Pouco depois de a sova ter terminado, Gonçalo vem ao seu encontro. No dia seguinte, depois da primeira aula, este sobe ao estrado e afirma que quem voltar a importunar António terá de se haver com ele. Ao refletir, nesse episódio, compreende que Gonçalo o defendeu apenas para pôr à prova a sua força e não por considerar que não se deve abusar de alguém mais fraco.
     No final do jantar, a humilhação de António é total.
     Esta personagem morre, no entanto a secretária de Gonçalo recebe um telefonema de um desconhecido, lembrando-o da necessidade de marcar na agenda o jantar do dia 15. Ele desconfia que será Alexandra a vingar-se de a ter deixado, por isso decide comparecer, fazendo-se acompanhar por uma nova pega, para fingir que a substituiu e nunca mais pensou nela. Porém, afinal, quem está à sua espera é Pedro: "Perdi a batalha. (...) porque estou fora do meu tempo e porque não são as armas que dão a vitória aos vencedores. Quem vence as batalhas é quem está dentro do seu tempo.".

"Kit Carson", Edmund Collier


     Kit Carson é um jovem que vive na ânsia de caçar e viver aventuras nas Montanhas Rochosas. Durante um incêndio, perde o pai na sua juventude e passa a trabalhar na loja de um ferreiro. No entanto, foge daí e junta-se a uma caravana que se dirige para o Oeste. Aí, fica sozinho na cidade de Taos, vivendo miseravelmente, até que se junta a um grupo de caçadores e se torna um caçador experimentado. Numa escaramuça do grupo de Kit com os índios, a sua valentia acaba por lhe granjear o nome de Vih'hui-nis, isto é, Pequeno Chefe, numa grande demonstração de respeito por parte dos índios.
     Pouco tempo depois, Kit casa-se com uma jovem índia chamada Relva Cantante, com quem tem uma filha, Adelina. Entretanto, o negócio da pele de castor entra em decadência, por isso vai trabalhar para um homem de nome Charlie Bent, caçando búfalos e protegendo dos índios a pista de Santa Fé, onde socorre inúmeras caravanas. Nos entrementes, morre Relva Cantante.
     De seguida, ganha bastante dinheiro ao chefiar uma expedição de um homem de nome Frémont e casa com uma mulher, Josefa, em Taos. E, de façanha em façanha, a sua fama vai-se alastrando pelo Oeste.
     Quando os EUA declaracam guerra ao México, Carson participa nela e mais uma vez destacam-se as suas qualidades de bravura e de comando de homens, nomeadamente no episódio da batalha de S. Pascoal.
     Anos volvidos, é nomeado agente para ajudar a estabelecer a paz entre os índios e os colobonos brancos que diariamente se deslocavam para a Califórnia.
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