Português: Análise do capítulo CXV da Crónica de D. João I

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Análise do capítulo CXV da Crónica de D. João I

Contextualização do cerco de Lisboa
 
            O que sucede entre o capítulo XI e este? D. Leonor Teles foge de Lisboa, desloca-se a Santarém, onde se encontra com o genro, D. João de Castela, que depois inicia o trajeto em direção a Lisboa, para a cercar.
            De facto, D. João I de Castela, no intuito de assegurar o direito ao trono da sua mulher, invade Portugal e ocupa a cidade de Santarém, obrigando D. Leonor Teles Menezes a abdicar da regência do reino, exilando-a para um convento.
O primeiro enfrentamento entre as tropas portuguesas e as castelhanas tem lugar no dia 6 de abril de 1384, na célebre Batalha dos Atoleiros. Derrotado nesse combate, que, na prática, nada resolve, graças à ação de Nuno Álvares Pereira, o monarca castelhano dirige-se a Lisboa, cerca a cidade e, com o auxílio da sua marinha, bloqueia o porto da capital e controla o rio Tejo. O cerco constitui uma ameaça muito forte ao governo do Mestre de Avis, dado que, sem o controlo de Lisboa, do seu comércio e da riqueza por este gerada, a resistência a Castela seria extremamente difícil. Já o rei de Castela necessitava da capital portuguesa por razões políticas, visto que nem ele nem a sua esposa tinham sido coroados e, sem esta importante cerimónia, eram apenas pretendentes à coroa.
            No entanto, o cerco da capital portuguesa, que teve a duração de 4 meses e 27 dias, acaba por ser levantado a 3 de setembro de 1384, devido essencialmente a um surto de peste negra que grassa entre o exército castelhano, provocando-lhe inúmeras baixas.
            Quanto ao Mestre de Avis, procurou obter o reconhecimento da sua posição além-fronteiras. Assim, pediu auxílio militar ao rei Ricardo II de Inglaterra, que contava apenas 17 anos, controlado pelo seu regente e tio, João de Gaunt, Duque de Lencastre, que inicialmente se mostrou reticente em conceder a ajuda pedida, mas acabou por enviar para Portugal cerca de 600 archeiros, homens com experiência de combate. 


Título do capítulo
 
            O título do capítulo, à semelhança dos demais, compreende uma espécie de síntese que antecipa o seu conteúdo.
            Neste caso, ficamos a saber que o capítulo CXV vai abordar duas questões: a preparação de Lisboa para o cerco encetado pelos castelhanos e as medidas tomadas para proteger a cidade do mesmo (no sentido de viver o máximo de tempo possível sob cerco).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (ll. 1-7) – Contextualização do episódio a narrar na estrutura global da obra.
 
▪ O narrador, no primeiro parágrafo, dirige-se ao leitor/ouvinte (“que havees ouvido”), convocando-o para o texto e para os acontecimentos que vai narrar:
- referência ao episódio anteriormente relatado: “Nem uu falamento deve mais vizinho seer deste capitulo que havees ouvido” [referência ao capítulo anterior, no qual Fernão Lopes descreveu o acampamento castelhano];
- referência ao assunto deste capítulo: as circunstâncias em que se encontrava Lisboa quando o rei de Castela a cercou (“de que guisa estaca a cidade, jazendo el-Rei de Castela sobr’ela…”);
- os preparativos do Mestre e da população para a defesa da capital (“per que modo poinha em si guarda o Meestre, e as gentes que dentro eram, por nom receber dano de seus emigos”);
- atitudes dos intervenientes: o esforço, a determinação e a coragem demonstrados pelo povo (“fonteza que contra eles mostravom”).
 
 
2.ª parte (ll. 8-118) – Preparativos para a defesa de Lisboa – gentes, medidas sociais e militares tomadas para enfrentar o cerco.
 
Alimentação: no segundo parágrafo, o cronista relata que o Mestre determinou que fosse recolhido o máximo de mantimentos possível e que os trouxessem para dentro das muralhas:
- recolha de víveres (pão, carnes e outros alimentos);
- transporte de gado morto em embarcações desde as lezírias;
- salga dos víveres/da carne.
 
▪ Ainda no segundo parágrafo, Fernão Lopes dá conta da reação distinta das pessoas ao cerco: um grupo decidiu apoiar o Mestre e refugiou-se dentro das muralhas (“muitos lavradores com as molheres e filhos”; “e doutras pessoas da comarca d’arredor”); outro abandonou Lisboa e refugiou-se entre Setúbal e Palmela, levando consigo os seus bens; um terceiro apoiou Castela e deslocou-se para as localidades que estavam sob seu domínio (“e taes i houve que poserom todo o seu, e ficarom nas vilas que por Castela tomarom voz.”).

 
Linguagem e estilo (2.º parágrafo):

- metonímia: refere-se aos habitantes que tomaram partido / apoiaram D. Beatriz e o rei de Castela;

- coloquialismo (“Onde sabee”): uso da 2.ª pessoa do plural e conectores aditivos – cativa e aproxima o leitor dos factos narrados;

- adjetivação expressiva: «grande e poderoso cerco» – intensifica a dimensão e a força do cerco castelhano, sugerindo a valentia e a excecionalidade de quem lhe resistir – exaltação dos Portugueses.

 
▪ A partir do terceiro parágrafo, o cronista relata o que foi feito para defender a cidade de Lisboa:

a. Muros:

- reparação e fortificação dos muros;

- construção de caramanchões de madeira nas torres;

- apetrechamento das torres com armas (lanças, bacinetes, armaduras, catapultas, etc.);

- distribuição da guarda dos muros pelos nobres e burgueses, apoiados por grupos de soldados armados;

- estabelecimento de um sistema de alarme em cada quadrilha: o repicar de um sino lá colocado (sempre que os vigias ouviam tocar o sino, dirigiam-se rapidamente para a secção de uma muralha que estavam incumbidos de proteger, bem como pessoas das outras torres e a restante população;

- colocação de vigias noturnos nas torres;

 

b. Portas da cidade:

- manutenção de 12 das 38 portas da cidade abertas todo o dia, guardadas por soldados;

- controlo apertado das entradas e saídas (por elas não passava ninguém, mesmo conhecido ou «importante», sem que apresentasse uma razão para entrar ou sair);

- distribuição da guarda noturna de algumas portas: as chaves de algumas portas/casas eram guardadas à noite e recolhidas no Paço; outras eram entregues a pessoas de confiança, para as poderem abrir de noite no sentido de passarem os batéis que transportavam mantimentos para a cidade; junto à porta de Santa Catarina havia sempre uma casa destinada ao tratamento dos feridos – uma espécie de hospital de campanha atual, visto que, nessa zona, eram frequentes os confrontos entre portugueses e castelhanos, dado que era a mais próxima do acampamento inimigo.


c. Ribeira:

- construção de duas cercas de estacas (duas estacadas “grandes e fortes”, feitas “de grossos e valentes paus”), uma desde o mar até à cidade e outra junto ao mosteiro de Santa Clara, que não permitiam a passagem de cavalos e homens a pé sem que tivessem de subir para cima delas, o que seria muito perigoso – entre as estacas, havia espaços que permitiam aos batéis abrigar-se, se fosse necessário;

- montagem do acampamento junto a uma das cercas;

- construção de um muro exterior ao acampamento [a barbacã] desde a porta de Santa Catarina até à torre de Álvaro Pais, que não estava ainda concluída.

 

▪ Na defesa da cidade estavam envolvidas todas as classes sociais, cada uma desempenhando um papel específico: os senhores e capitães eram responsáveis pelas bandeiras de S. Jorge; os fidalgos e cidadãos honrados guardavam as muralhas; os clérigos e os frades guardavam as torres que lhes tinham sido confiadas; as moças apanhavam pedras para construir a muralha exterior, cantavam de forma provocatória, ameaçando os castelhanos com o mesmo destino que tiveram o Conde Andeiro e o bispo de Lisboa.

Papel do Mestre de Avis – retrato de um líder (7.º ao 9.º parágrafo)

• Define os responsáveis pela defesa e proteção das muralhas, mas também se envolve pessoalmente na defesa da cidade à noite, inspecionando os muros e torres.

• Dorme pouco, vê todas as suas ordens serem cumpridas de forma diligente, mostrando toda a sua capacidade de liderança.

• É diligente relativamente à organização da defesa da cidade.

• Possui capacidade tática: antecipa os movimentos do adversário.

• Possui capacidade de liderança e de motivação (repartição da guarda dos muros e das portas dos homens de valor e de confiança).

• Mostra ser organizado, preocupado, solidário e cauteloso.

• Pensa em todos os todos os pormenores (por exemplo, a criação do “hospital de campanha”, a proteção da margem do rio, por onde os castelhanos poderiam atacar).

 
▪ A cantiga entoada pelas moças que apanham pedras é uma provocação aos castelhanos, pois alude às mortes do Conde Andeiro e do bispo de Lisboa.
 
 
3.ª parte (ll. 119 a 125) – Conclusão: comentário apreciativo dos acontecimentos relatados, com destaque para a atitude de solidariedade e para a coragem dos intervenientes.
 
▪ Fernão Lopes destaca o caráter excecional da resistência ao cerco, perante a superioridade das tropas castelhanas (o cronista fala em cerca de 31 mil castelhanos e 6500 portugueses, mas é possível que estes números não sejam verdadeiros e constituam uma forma de enaltecer a valentia dos portugueses).
 
▪ Os elogios dirigidos aos castelhanos, exaltando as qualidades do seu rei (“U utam alto e poderoso senhor com el-Rei de Castela…”) e das suas tropas (“com tanta multidom de gentes assi per mar come per terra, postas em tam grande e boa ordenança…”) realçam a coragem e a soberania moral dos portugueses, que os venceriam.
 
Atores / personagens
 
Ator individual – Mestre de Avis (vide caracterização da personagem).
 
Atores coletivos
- Lavradores: classe social caracterizada por diferentes pontos de vista (a favor dos portugueses vs. a favor dos castelhanos) e atitudes (coragem e empenho na defesa da cidade vs. cobardia / fuga).
- Nobres, burgueses e soldados (besteiros e homens de armas): são caracterizados pelo empenho ativo na defesa da cidade (responsabilidade pela guarda de muros e de portas da cidade.
- Raparigas do povo: contribuem para a defesa da cidade (recolha de pedras), articulada com a alegria do canto provocatório, sugerindo um clima de solidariedade, confiança e bem-estar.
- Clérigos: indo contra a vontade do povo, também pegam em armas e lutam.
- Povo:
- o povo de Lisboa manifesta-se contra a influência castelhana;
- é patriota, identificando-se, respeitando e admirando o Mestre de Avis, o que o leva a lutar bravamente contra o inimigo;
- é diligente, rápido e eficaz a cumprir as ordens do Mestre, por exemplo relativamente à recolha de alimentos;
- participa coletivamente na defesa das muralhas; todos participam na defesa da cidade – é a identidade nacional que se está a construir;
- suporta as duras condições do cerco;
- é corajoso, valente e determinado (exemplo: a cantiga das moças);
- mostra-se organizado durante o processo de recolha e conservação de alimentos;
- revela grande prontidão na forma como todos respondem ao toque do sino, enchendo as muralhas;
- é prudente, pois “muitos lavradores com as molheres e filhos, e cousas que tinham” acorrem a acolher-se em Lisboa.
 

 Linguagem e estilo
 
Coloquialismo:

a) Interpelação do leitor / narratário, recorrendo à 2.ª pessoa do plural: “que havees ouvido”;

b) Uso do verbo «ouvir», sugerindo a interação oral (apesar de se tratar de um texto escrito): “que havees ouvido”);

c) Reprodução de cantigas populares;

d) Emprego da frase exclamativa: “Ó que fremosa cousa era de veer!”.

Visualismo e dinamismo:

a) Pormenorização dos factos: 38 portas, etc.:

b) Sensações (visuais, auditivas…);

c) Recurso à enumeração gradativa (bem como do polissíndeto e da conjunção coordenativa copulativa): “lanças e dardos e bestas de torno, e doutras maneiras com grande avondança de muitos viratões”;

d) Emprego da comparação com função de concretização (por exemplo, a comparação entre os portugueses e os filhos de Israel da época do profeta Neemias. Esta comparação visa exacerbar as qualidades dos portugueses que, simultaneamente, cuidavam da defesa da cidade e repeliam os ataques dos inimigos.);

e) Uso abundante de adjetivos;

f) Predomínio de formas verbais no presente e no pretérito imperfeito.
 

Análise de outros capítulos:

    . Capítulo XI.

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