Português

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Almeida Garrett foi o introdutor do incesto na literatura portuguesa

"Maria afasta-se do que a familia espera dela no momento em que, mesmo na incerteza da sobrevivência de D. João, esta se junta com Manuel de Sousa Coutinho...".
     Maria casou com D. João (um clássico entre os alunos mais desatentos) e «juntou-se» a Manuel de Sousa, seu pai. Note-se para a modernidade da temática do incesto introduzida em pleno Romantismo, bem como da antecipação das relações amorosas não formalizadas: «juntar».  

O aprofundamento da análise psicológica

            A psicologia de William James, difundindo o conceito de corrente da consciência, revelando a existência de recordações, pensamentos e sentimentos fora da «consciência primária», e a psicanálise de Freud, fazendo emergir da sombra as estruturas ocultas do psiquismo humano, impulsionaram poderosamente essa nova espécie de romance - o romance das profundidades do eu.
            A desvalorização da diegese, acompanhada de um singular aprofundamento da análise psicológica da personagem, caracteriza particularmente o chamado romance impressionista de James Joyce e de Virgínia Woolf. É muito possível que, no romance impressionista, tenha atuado como poderoso estímulo o desejo de reagir contra o cinema mudo, semelhantemente ao que sucedera na pintura, onde o impressionismo representara uma reação contra a fotografia. O cinema, na verdade, podia traduzir um enredo movimentado e rico de peripécias, mas não conseguia apreender a vida secreta e profunda das consciências. É esta vida recôndita que o romance impressionista procura devassar, através do ritmo narrativo extremamente lento, tão peculiar de Virgínia Woolf, e através da técnica do monólogo interior, tão cultivada por James Joyce. Virgínia Woolf esforça-se cuidadosamente por exprimir, de modo subtil, minudente e não deformador, os estados e as reações da consciência, embora tais conteúdos subjetivos, muitas vezes, pareçam e sejam absurdamente fragmentários e incoerentes. O homem não se preocupa apenas com as suas relações pessoais, com a maneira de ganhar dinheiro ou de adquirir um lugar na sociedade: «uma larga e importante parte da vida consiste nas nossas emoções perante as rosas e os rouxinóis, as árvores, o pôr do sol, a vida, a morte, e o destino». O romancista tem de se ocupar destes estados fluidos, nostálgicos e iridescentes, razão por que, segundo Virgínia Woolf, os romances «que se escreverem no futuro, hão de assumir algumas das funções da poesia. Dar-nos-ão as relações do homem com a natureza, com o destino, as suas imagens, os seus sonhos. Mas o romance dar-nos-á também o riso escarninho, o contraste, a dúvida, a intimidade e a complexidade da vida».
            O Ulisses de James Joyce constitui uma das tentativas mais audaciosas até hoje realizadas no domínio romanesco para apreender a «intimidade e a complexidade da vida» de que fala Woolf. O seu enredo, no sentido tradicional do vocábulo, é mínimo: limita-se a ser a história de tudo o que acontece, no dia 16 de junho de 1904, a Leopold Bloom, um judeu de Dublin. E tudo o que acontece a Bloom não sai fora dos limites habituais da vida estereotipada de um burguês daquela época - acompanhar um enterro, passar pela redação de um jornal, entrar numa taberna, frequentar um prostíbulo... O Ulisses é o romance destes acontecimentos anódinos e de todas as reminiscências caóticas, das reflexões, das frustrações e das raivas de Leopold Bloom, mas faz ascender este trivial acervo de matéria romanesca a um plano de significações simbólicas e esotéricas, pois o romance está modelado segundo a Odisseia, existindo um paralelismo estrito entre as figuras e os acontecimentos do Ulisses e daquele poema homérico.

O romance contemporâneo e a desvalorização da diegese

            Com o Simbolismo, o romance aproximou-se dos domínios da poesia e esta aproximação implicou não só a fuga da realidade quotidiana, física ou social, mas também uma nítida desvalorização da diegese. As descrições da realidade trivial, o estudo minucioso e atento dos meios, a representação dos pequenos atos da vida humana, etc., constituíam para os simbolistas uma tarefa tediosa e desprovida de interesse artístico. Os aspetos evanescentes, subtilmente imprecisos e incoercíveis da realidade, idealmente traduzíveis através da poesia ou da música, não podem ser expressos, segundo a estética simbolista, mediante a estrutura narrativa e discursiva do romance.
            (...) São numerosos, com efeito, os indícios de que germinava já na penúltima década do século XIX uma nova conceção do romance - um romance fundamentalmente preocupado com o desvelamento da subtil complexidade do eu, intentando criar uma nova linguagem capaz de traduzir as contradições e o ilogismo do mundo interior do homem. Parece-nos que, numa história do romance moderno, merece muita atenção o convite que Bergson, no seu Essai sur les données immédiates de la conscience (1889), dirigiu aos romancistas para que estes criassem um romance de análise dos conteúdos ondeantes, evanescentes e absurdos da consciência: «Se agora algum romancista ousado, despedaçando a teia habilmente tecida do nosso eu convencional, nos mostra sob esta lógica  aparente um absurdo fundamental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração infinita de mil impressões diversas que já deixaram de existir no momento em que as designamos, louvamo-lo por nos ter conhecido melhor do que nós nos conhecemos a nós próprios. [...] ele [o romancista] convidou-nos à reflexão, pondo na expressão exterior alguma coisa dessa contradição, dessa penetração mútua, que constitui a própria essência dos elementos expressos. Encorajados por ele, afastámos por um instante o véu que tínhamos interposto entre a nossa consciência e nós. Voltou a pôr-nos em presença de nós próprios». A voz do mais representativo pensador europeu do final do século XIX proclamava assim a necessidade de o romancista romper com a herança naturalística e realista, ao mesmo tempo que apontava um novo caminho a seguir: a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana.

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

As Misteriosas Cidades de Ouro - Episódio 4: "À deriva no mar infernal"

Conjugação do verbo "abster"

     "Abster" é um verbo composto pelo prefixo "abs-" e pelo verbo "ter".
     Os verbos compostos conjugam-se de acordo com o paradigma de flexão do verbo que está na sua base (neste caso, ter), mantendo-se o resto da forma inalterado.
     Assim:
          . eu abstenho (presente do indicativo)
          . eu abstive (pretérito perfeito do indicativo)
          . eu abstinha (pretérito mais-que-perfeito do indicativo)
          . vós abstereis (futuro do indicativo)
          . tu absterias (condicional)
          . etc.

Agradar a gregos e a troianos

     A expressão agradar a gregos e a troianos quer dizer agradar a todos, incluindo pessoas com características distintas; agradar a dois partidos opostos.
     Páris, príncipe troiano, raptou Helena, rainha grega, esposa de Menelau, o que deu origem à famosa Guerra de Troia entre gregos e troianos, conflito que teve a duração de 10 anos e terminou com a destruição da cidade de Príamo. O facto decisivo que esteve na base da vitória grega foi a construção do célebre cavalo de Troia, uma ideia de Ulisses (Odisseu).

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

O casamento de Maria de Noronha e D. João de Portugal

"Maria afasta-se completamente do que a família quer para si porque ela acha que cometeu um pecado a gostar doutro homem enquanto ainda era casada com D. João. E por isso vai para um convento o que a leva a afastar-se mais ainda da opinião da sua família."
     Estas versões alternativas das obras literárias são sempre um poço de criatividade. 

terça-feira, 6 de agosto de 2019

"Entra e sai de amor", Altay Veloso

Análise de "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade


            O poema “No meio do caminho”, composto por uma quadra e uma sextilha, num total de 10 versos, alternando versos rimados (ABAA) com brancos (o sexto, por exemplo), foi publicado pela primeira vez no número 3 da “Revista de Antropofagia”, em julho de 1928. Posteriormente, integrou o livro Alguma Poesia, datado de 1930.
            Começando pelo título, este remete para um espaço (“No meio do caminho”), antecipando o imprevisto: a pedra.
            O texto é caracterizado pela redundância e pela repetição. De facto, se as eliminássemos, a composição seria a seguinte: “No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas”. As pedras simbolizam os obstáculos ou problemas com que as pessoas se confrontam durante a sua vida, descrita, metaforicamente, como um “caminho”. Por outro lado, as pedras, enquanto obstáculos, podem impedir o indivíduo de prosseguir o seu percurso, isto é, os problemas podem impedi-lo de avançar na vida.
            Os versos 5 e 6 transmitem uma sensação de cansaço por parte do sujeito poético e do acontecimento que ficará sempre na sua memória. Assim, as pedras também podem indicar um acontecimento relevante e marcante para a vida de uma pessoa.
            Há autores que fazem uma interpretação biográfica do poema, associando-a a um drama familiar do poeta. De facto, em 1927, Drummond de Andrade foi pai de um menino que sobreviveu apenas meia hora. Entre janeiro e fevereiro desse ano, foi-lhe encomendada a escrita de um poema para o número 1 da “Revista de Antropofagia”. Imerso na sua tragédia pessoal, o escritor enviou este poema.
            O crítico Gilberto Mendonça Teles sublinha o facto de a palavra “pedra” conter as mesmas letras do vocábulo “perda”, um fenómeno de hipértese. Mera coincidência ou recurso intencional?


segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Ser ou não ser

     «Maria [de Noronha] não sabe o que quer, ela acha que só é o que a família quer que ela não seja.»

     Brilhante!

quarta-feira, 31 de julho de 2019

"Fim", de Mário de Sá Carneiro

            Este poema, constituído por duas quadras de rima interpolada e emparelhada (abba / cddc), data de 1916 e foi escrito na capital francesa.

            O texto gira em torno de um tema que se pode sintetizar do seguinte modo: encontrar sentido apenas na morte e através dela. O sujeito poético confere à sua morte e ao seu funeral o tom grotesco que lhe rira a dignidade, como para mais achincalhar-se.

            Começando a análise pelo título, nota-se nele uma espécie de humor satânico que se estende a toda a composição. O sujeito poético expressa o desejo de o seu post-mortem, o seu funeral, a sua morte, ser celebrado com grande euforia e espetáculo: marcado pelo bater de latas, berros, pinotes e palhaços, desejo esse que sugere uma autorridicularização. É uma sugestão irreverente que deixa escapar um profundo autodesprezo. Por outro lado, a performance circense de palhaços e acrobatas conota uma alegria no encontro com a morte.

            As ideias de teatralidade e representação são conferidas pela presença precisamente dos palhaços e acrobatas, típicas figuras do espetáculo circense, que resume a faceta de clandestinidade, de transgressão incutida na excentricidade do último desejo, o de um funeral à moda andaluza. Esta arte de rua, marginal, constitui também o tema de “Partida de Emigrantes”, um triplico de Almada Negreiros. Num dos quadros, os saltimbancos de rua dominam a cena do cais representado. A sua presença representa a transgressão, a marginalidade que pode ser ignorada, desprezada e ostracizada, mas não suprimida, porque existe. No poema em análise, o sujeito lírico, na última jornada da sua existência, transforma o que deveria ser um cerimonial triste e pesaroso, de acordo com as convenções ocidentais, numa festa de rua, dominada pelo clima de festa, provocatória. O fim é celebrado e transformado numa comemoração de vida, a pretexto da morte, e acompanhado por artistas marginais com quem comunga o mesmo sentido transgressor. Isto significa que o conceito tradicional de funeral não é o enunciado no texto: um funeral é uma cerimónia caracterizada por uma atmosfera grave e de pesar, mas neste caso é manifesto o desejo do «eu» de que o seu seja um momento de festa e de folia.

            O ato caricato de transportar o caixão sobre um burro sugere a irreverência diante da morte e traduz também uma ideia de escárnio pelo próprio fim. Além disso, tem os enfeites à moda da Andaluzia, que devem ser vibrantes, vistosos.

            Quanto ao burro, no texto simboliza a obscuridade. Note-se que, na Índia, o animal serve de montaria para divindades funestas, como Nairrita, guardião da região dos mortos, o que só confirma a ideia de que o poema aponta para a figura do fim.

            A figura do palhaço, para Chevalier e Gheerbrant, é a representação do rei assassinado. Simboliza a inversão da compostura régia nas suas palavras e atitudes. A majestade é substituída pela irreverência; a soberania pela ausência de toda a autoridade; o temor pelo riso; a vitória pela derrota; as cerimónias sagradas pelo ridículo; a morte pela zombaria. O palhaço é como o reverso da medalha, o contrário da realeza, a paródia encarnada.

            Por um lado, a composição remete para um deboche numa ocasião cercada de solenidade; por outro, as atitudes a que ele incita traduzem uma celebração pela sua morte, como se se tratasse de um benefício para o mundo, talvez para si mesmo. O corolário do cortejo reside na sua exigência de que o caixão seja transportado sobre um burro, um claro menosprezo do seu próprio funeral, revelando, deste modo, a pouca importância atribuída a si mesmo e à sua vida. Deste modo, ele revela-se uma pessoa excêntrica, caprichosa e determinada, sendo que, no momento em que manifesta o seu desejo, o seu estado de espírito é exaltado e quase febril.

            Em suma, a estruturação mental do poema é clara. De facto, o sujeito poético deixa um conjunto de indicações bastante precisas sobre:
● o tipo de funeral: à andaluza;
● o meio de transporte para o levar à sua última morada: um burro;
● as ações a desempenhar pelos acompanhantes da sua cerimónia fúnebre: bater em latas, romper aos berros e aos pinotes, fazer estalar chicotes no ar;
● os participantes e responsáveis pela animação do evento: palhaços e acrobatas.

A nota final é clara: esta é a sua vontade expressa, pois a um morto nada se recusa.


Bibliografia:
- Neusa Sorrenti, “Mário de Sá Carneiro, poeta: um Narciso entre Eros e Tânatos”;
- Carlos Ferreira, Mário de Sá Carneiro: Do Percurso do Poeta às Práticas no Programa de Português do Ensino Secundário.

"As Misteriosas Cidades de Ouro": capítulo I


     Para ativar as legendas automáticas, basta clicar no respetivo botão.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...