Comecemos
a análise do poema pelo título. O nome “angular” deriva de “ângulo”, portanto
pode referir algo que possui ângulos ou cantos agudos. No caso do poema,
podemos estar a falar da adoção de uma determinada perspetiva sobre as memórias
e experiências do «eu» poético, o que remete para uma visão distinta ou incomum
das suas relações com os seus entes queridos. Por outro lado, pode constituir
uma metáfora que traduz algo que possui uma qualidade distinta ou marcante.
Assim sendo, o título Angular pode ser interpretado como uma metáfora
das várias facetas da memória e da experiência do ser humano, à semelhança do
que sucede com os ângulos, que formam pontos distintos e definidos num objeto.
As memórias e as experiências passadas assumem contornos definidos na vida de
uma pessoa, moldando o seu ser.
Os
mortos estão mortos, pelo que não podem conhecer ou saber novas coisas. Neste
caso, os mortos do sujeito lírico nunca irão saber, nunca irão tomar
conhecimento de que ele ainda está de pé, ainda está ativo, ainda resiste, e
sorri, ou seja, continua a viver apesar da perda dos “seus mortos”. Apesar de
“não vivos”, os entes que partiram continuam presentes na vida do «eu», nomeadamente
em momentos passados que compartilham com eles: “(…) ainda estou de pé e sorrindo
em uma cena perdida / no passado de suas vidas”. É evidente a importância e o
papel da memória na recuperação desse passado e do efeito positivo que tem no
sujeito. São lembranças vivas, multifacetadas, de diferentes cores e tons:
“cores-sombras, vivos, sorrindo / dentro da minha vida”.
De
seguida, o «eu» lírico rememora pequenos gestos ou atos desse passado. O
primeiro é o derramar de café e o som da máquina de escrever da tia, evocadas
de forma sensorial: “ainda sou criança e ouço o tlectlectlec / da máquina de
escrever da minha tia.”. Estas memórias transportam-no de volta ao passado,
concretamente à infância, pejada de figuras familiares e amadas, figuras
femininas sempre: a tia e a avó. É como se os entes masculinos não existissem
ou tivessem sido apagados por não terem marcada tão profundamente o «eu». São
figuras e presenças arrancadas à passagem do tempo, nas suas atividades
quotidianas domésticas, como, por exemplo, a avó, movimentando-se entre a copa
e a cozinha apressadamente por causa da carne que está a assar e, talvez, em
risco de se queimar. É o universo feminino, quotidiano e doméstico, a triunfar
no poema. Não é necessário muito para imaginar a nostalgia que invade o sujeito
poético enquanto rememora uma época em que os seus entes queridos ainda estavam
vivos. A alusão às suas ações, embora simples, carregam uma carga emocional
profunda que se prolonga ao longo do tempo até ao presente.
A
segunda estrofe abre com a referência a outro momento marcante do passado,
caracterizado novamente através das sensações auditivas: a porta do quarto
bate, o que assusta o «eu», que dá um salto, um quadro cai da parede sobre a
escrivaninha, a geladeira esguicha. Atente-se na expressividade da forma verbal
«esguicha», que sugere um jato repentino de algo que é libertado com grande força
da peça de cozinha. São “Ondas. Calor e energia.” que tanto se podem referir à
imagem da geladeira a esguichar, como à forma emotiva, viva e intensa como a
memória atinge o sujeito lírico. O momento da recordação é um momento intenso,
poderoso, que envolve o «eu» numa onda, numa torrente de emoções.
As
memórias e as palavras do passado têm um poder duradouro e energizante. Os
entes mortos não têm consciência do impacto que as suas palavras, as suas
memórias, têm sobre o sujeito poético. Com efeito, eles não sabem, não desejam
ativamente influenciar o sujeito lírico, porém a verdade reside no facto de as
lembranças das suas pessoas e dos seus gestos simples e quotidianos impactarem
fortemente a sua existência. Posteriormente, ele qualifica essas memórias: são
fugazes, ténues, simples (“um sopro”), ecoam no presente (“um eco”), são subtis
(“um traço”) e involuntárias (“um tique”), ou seja, as palavras e as memórias
persistem na sua mente de forma ligeira, mas constante, como um eco distante,
mas persistente. Por outro lado, os versos “da estada / permanente das palavras
que disseram um dia” indiciam que essas palavras ditas no passado por pessoas
como a tia e a avó constituem uma presença constante e marcante na existência
do sujeito poético. Por sua vez, os versos “e eu / rastejo na eletricidade”
configuram a reação do «eu» à presença vívida dessas palavras e memórias, que
têm um poder duradouro e eletrizante, intenso e vivo. O ato de rastejar na
eletricidade pode constituir a evocação de uma sensação (tátil) intensa de ser
envolvido ou consumido pela energia das lembranças.
A
última estrofe configura um retorno ao presente do sujeito poético, que
desfruta do seu café (“Ainda não terminei o café”), enquanto afirma não sentir
saudades do passado que acabou de recordar. A justificação para essa ausência
de tristeza e nostalgia é apresentada logo de seguida: “pois sei que assim que
me levantar desta mesa / vou reviver o mundo em altura e graça”. O «eu»
sente-se perfeitamente capaz de reviver as memórias compartilhadas, no passado,
com os seus entes queridos falecidos, tudo envolto numa imagem de elevação e
leveza (“em altura e graça”). É como se o sujeito poético não sentisse saudades
em razão de as memórias do passado estarem tão integradas na sua existência que
ele pode “reviver o mundo” através delas, o que indicia, por outro lado, que
aceitou a perda dos familiares e que reconhece que as lembranças são uma parte
essencial da sua vida.
O poema
termina com uma nota de afeto e intimidade, no preciso momento em que o
universo, até agora, exclusivamente feminino, ganha um elemento masculino – o tio
–, na cacunda (a parte superior das costas) do qual se senta. É uma imagem
reconfortante, de proximidade física e emocional.
Em
suma, o poema explora a interseção entre o passado e o presente, a importância
das memórias familiares e o modo como estas continuam a ter impacto e a moldar
a vida dos que lhes sobreviveram.