Português: Bruna Beber
Mostrar mensagens com a etiqueta Bruna Beber. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Bruna Beber. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Análise do poema "Angular", de Bruna Beber

    Comecemos a análise do poema pelo título. O nome “angular” deriva de “ângulo”, portanto pode referir algo que possui ângulos ou cantos agudos. No caso do poema, podemos estar a falar da adoção de uma determinada perspetiva sobre as memórias e experiências do «eu» poético, o que remete para uma visão distinta ou incomum das suas relações com os seus entes queridos. Por outro lado, pode constituir uma metáfora que traduz algo que possui uma qualidade distinta ou marcante. Assim sendo, o título Angular pode ser interpretado como uma metáfora das várias facetas da memória e da experiência do ser humano, à semelhança do que sucede com os ângulos, que formam pontos distintos e definidos num objeto. As memórias e as experiências passadas assumem contornos definidos na vida de uma pessoa, moldando o seu ser.
    Os mortos estão mortos, pelo que não podem conhecer ou saber novas coisas. Neste caso, os mortos do sujeito lírico nunca irão saber, nunca irão tomar conhecimento de que ele ainda está de pé, ainda está ativo, ainda resiste, e sorri, ou seja, continua a viver apesar da perda dos “seus mortos”. Apesar de “não vivos”, os entes que partiram continuam presentes na vida do «eu», nomeadamente em momentos passados que compartilham com eles: “(…) ainda estou de pé e sorrindo em uma cena perdida / no passado de suas vidas”. É evidente a importância e o papel da memória na recuperação desse passado e do efeito positivo que tem no sujeito. São lembranças vivas, multifacetadas, de diferentes cores e tons: “cores-sombras, vivos, sorrindo / dentro da minha vida”.
    De seguida, o «eu» lírico rememora pequenos gestos ou atos desse passado. O primeiro é o derramar de café e o som da máquina de escrever da tia, evocadas de forma sensorial: “ainda sou criança e ouço o tlectlectlec / da máquina de escrever da minha tia.”. Estas memórias transportam-no de volta ao passado, concretamente à infância, pejada de figuras familiares e amadas, figuras femininas sempre: a tia e a avó. É como se os entes masculinos não existissem ou tivessem sido apagados por não terem marcada tão profundamente o «eu». São figuras e presenças arrancadas à passagem do tempo, nas suas atividades quotidianas domésticas, como, por exemplo, a avó, movimentando-se entre a copa e a cozinha apressadamente por causa da carne que está a assar e, talvez, em risco de se queimar. É o universo feminino, quotidiano e doméstico, a triunfar no poema. Não é necessário muito para imaginar a nostalgia que invade o sujeito poético enquanto rememora uma época em que os seus entes queridos ainda estavam vivos. A alusão às suas ações, embora simples, carregam uma carga emocional profunda que se prolonga ao longo do tempo até ao presente.
    A segunda estrofe abre com a referência a outro momento marcante do passado, caracterizado novamente através das sensações auditivas: a porta do quarto bate, o que assusta o «eu», que dá um salto, um quadro cai da parede sobre a escrivaninha, a geladeira esguicha. Atente-se na expressividade da forma verbal «esguicha», que sugere um jato repentino de algo que é libertado com grande força da peça de cozinha. São “Ondas. Calor e energia.” que tanto se podem referir à imagem da geladeira a esguichar, como à forma emotiva, viva e intensa como a memória atinge o sujeito lírico. O momento da recordação é um momento intenso, poderoso, que envolve o «eu» numa onda, numa torrente de emoções.
    As memórias e as palavras do passado têm um poder duradouro e energizante. Os entes mortos não têm consciência do impacto que as suas palavras, as suas memórias, têm sobre o sujeito poético. Com efeito, eles não sabem, não desejam ativamente influenciar o sujeito lírico, porém a verdade reside no facto de as lembranças das suas pessoas e dos seus gestos simples e quotidianos impactarem fortemente a sua existência. Posteriormente, ele qualifica essas memórias: são fugazes, ténues, simples (“um sopro”), ecoam no presente (“um eco”), são subtis (“um traço”) e involuntárias (“um tique”), ou seja, as palavras e as memórias persistem na sua mente de forma ligeira, mas constante, como um eco distante, mas persistente. Por outro lado, os versos “da estada / permanente das palavras que disseram um dia” indiciam que essas palavras ditas no passado por pessoas como a tia e a avó constituem uma presença constante e marcante na existência do sujeito poético. Por sua vez, os versos “e eu / rastejo na eletricidade” configuram a reação do «eu» à presença vívida dessas palavras e memórias, que têm um poder duradouro e eletrizante, intenso e vivo. O ato de rastejar na eletricidade pode constituir a evocação de uma sensação (tátil) intensa de ser envolvido ou consumido pela energia das lembranças.
    A última estrofe configura um retorno ao presente do sujeito poético, que desfruta do seu café (“Ainda não terminei o café”), enquanto afirma não sentir saudades do passado que acabou de recordar. A justificação para essa ausência de tristeza e nostalgia é apresentada logo de seguida: “pois sei que assim que me levantar desta mesa / vou reviver o mundo em altura e graça”. O «eu» sente-se perfeitamente capaz de reviver as memórias compartilhadas, no passado, com os seus entes queridos falecidos, tudo envolto numa imagem de elevação e leveza (“em altura e graça”). É como se o sujeito poético não sentisse saudades em razão de as memórias do passado estarem tão integradas na sua existência que ele pode “reviver o mundo” através delas, o que indicia, por outro lado, que aceitou a perda dos familiares e que reconhece que as lembranças são uma parte essencial da sua vida.
    O poema termina com uma nota de afeto e intimidade, no preciso momento em que o universo, até agora, exclusivamente feminino, ganha um elemento masculino – o tio –, na cacunda (a parte superior das costas) do qual se senta. É uma imagem reconfortante, de proximidade física e emocional.
    Em suma, o poema explora a interseção entre o passado e o presente, a importância das memórias familiares e o modo como estas continuam a ter impacto e a moldar a vida dos que lhes sobreviveram.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Análise do poema "As avós e as tias", de Bruna Beber

    O poema, constituído por versos curtos que lhe imprimem um ritmo vivíssimo, abre com uma metáfora clássica (“Durante toda a minha caminhada / pela bola”), que representa a vida enquanto viagem pelo planeta e sugere uma perspetiva sobre as coisas decorrente da experiência e aprendizagem feita. A referência à Terra reflete a diversidade de perspetivas sobre as coisas: uns chamam-na “terra” e outros “água” (neste caso, por a superfície do planeta ser constituída maioritariamente precisamente por água), o que parece indiciar a noção de que a realidade pode ser interpretada de formas diversas, dependentes da perspetiva de cada pessoa.
    De seguida, associa a forma redonda da Terra a uma memória da juventude: a de um amigo do colégio que apelidaram “balofo”, certamente por causa do seu excesso de gordura corporal. Atente-se no uso irónico do advérbio de modo “carinhosamente”, pois estamos na presença de um epíteto que nada tem de carinhoso nem para o alvo nem para os autores. Por outro lado, estamos perante uma espécie de tradição escolar juvenil: a atribuição a colegas de escola de epítetos, alcunhas, umas vezes traduzindo, de facto, relações de amizade e carinho, outras enquanto forma de humilhação, ou, como se dirá hoje, “bullying”. É da natureza humana distribuir apelidos pelos seus semelhantes. Seja como for, quer interpretemos o “balofo” como apelido carinhoso, quer como depreciativo, estes versos indiciam a importância das relações interpessoais e das memórias afetivas ao longo da vida.
    Do seu percurso de vida, resulta um processo de aprendizagem do «eu» poético: a vida é feita de incertezas, porém há uma certeza que tem e que gostaria de partilhar com os outros, nomeadamente com as gerações futuras diretas – “os seus filhos”. Deste modo, os versos parecem traduzir a ideia de que a transmissão do conhecimento e da experiência aos vindouros é um legado, uma herança extremamente valiosa(o).
    Mas, afinal, que certeza é essa? Todo o ser humano possui ou já possuiu uma toalha bordada. É evidente que esta referência configura uma metáfora que traduz a importância das pequenas coisas, ou gestos, que possuem pouco valor material, mas enorme valor sentimental e cultural. Estamos, pois, no campo da tradição e da herança familiar. Note-se que, numa entrevista concedida em 2022, a poeta afirmou que desconhece o conceito económico de herança, ou seja, bens, imóveis, fortunas materiais, e que nunca herdou nada. No entanto, acrescenta, na sua família existe aquilo que chama “a mística dos objetos de carinho”: “Fui criada recebendo, não sem controle e num intervalo de tempo que não prevê facilidades, um rádio de pilha de um avô aqui, um reloginho de uma avó acolá, um cinzeiro que meu pai já me repassou em vida (…) Enfim, desde que nasci recebo objetos que têm ou tiveram importância para alguém que ajudou a me criar. Amigos e amigas também fazem isso comigo, namoradas já fizeram. Parece que as pessoas ficam à vontade para confiar em mim suas memórias e elas podem ficar tranquilas porque nunca vou jogar fora aquela toalhinha que ganhei quando tinha sete anos ou aquela lâmpada de pisca-pisca de Natal de 92. Assim, herança para mim é confiança.” As palavras da própria escritora dispensam mais considerandos.
    Voltando ao poema, atente-se na referência “pela bola – há quem /a diga achatada”, uma alusão evidente àqueles que acreditam no terraplanismo, uma nova indireta às diferentes crenças e perceções que as pessoas têm do mundo e da realidade. Por outro lado, os versos “É importante / que seus filhos / passem pros deles / essa verdade” enfatizam a importância de transmitir e preservar a cultura e as tradições familiares, passando-as às futuras gerações. Mesmo aqueles que não possuem filhos aos quais possam passar a “toalha bordada” continuarão a tê-la, isto é, continuarão a possuir as suas tradições e legados familiares e culturais. O facto de alguém não possuir filhos a quem legar a sua “toalha bordada” não invalida a importância ou o significado da herança cultural, pois existirão sempre objetos que testemunharão uma experiência e identidade compartilhadas. O legado transcende a procriação e as conexões familiares, pois há elementos compartilhados que nos unem como seres humanos.
    Deste modo, podemos concluir que a toalha bordada constitui uma metáfora para a herança cultural, por mais singela que seja, que é passada de geração em geração. A toalha é um elemento tangível e concreto, alfo concreto, um objeto que pode ser tocado e visto e que incorpora em si histórias, memórias e significados que transcendem a materialidade. Desta forma, o «eu» poético enfatiza a importância de o ser humano preservar e compartilhar as suas tradições e cultura, algo que já é indiciado pelo título – “As avós e as tias” –, que aponta desde logo para o conceito de família e ancestralidade, sugerindo que as tradições culturais são transmitidas por figuras maternas. Afinal, as “toalhas bordadas”, os trapos, são tipicamente associados ao universo feminino, estando o masculino totalmente ausente.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Análise do poema "A violência", de Bruna Beber

    O «eu» poético abre o poema exprimindo o seu desejo insistente e constante de expressar o seu amor profundo pelo «tu»: “vontade constante / de dizer te quero tanto”. Estamos na presença da expressão de um sentimento profundo e intenso.
    Por vezes, o sujeito poético distrai-se dessa vontade, todavia o contacto físico da pessoa amada, o seu abraço, trazem-no de volta ao desejo inicial, evidenciando, assim, a força e o poder desse contacto íntimo. Não podemos descartar a sensação de segurança e carinho que um abraço transporta para a pessoa que o recebe.
    Por outro lado, esse gesto de afeto tem um enorme efeito no «eu» poético, configurando um momento de transcendência. De facto, a presença física e o contacto com a pessoa amada são tão importantes e poderosos que o mundo desaparece, nada mais importa. O facto de, nessa ocasião, “o mundo não tem [ter] membros superiores” sugere que há um desapego desse mundo físico, que, sem eles, não pode intervir ou interferir.
    É, então, que se atinge o clímax da relação entre o «eu» e o «tu», concretamente através do beijo: “e então me beija.” É o ápice da união física e emocional entre ambos, o momento supremo. Segue-se a alusão a uma possibilidade ou hipótese: o «eu», se quisesse, poderia cometer os atos mais violentos (“matar”) sob a influência do amor intenso. A antítese entre o afeto expresso nos versos anteriores e estes dois últimos pode traduzir, na esteira, por exemplo, de Petrarca ou Camões (“Amor é um fogo que arde sem se ver”), os efeitos contraditórios do amor, ou ser o símbolo de um amor tão intenso que pode destruir.
    Enigmaticamente, o sujeito declara-se possuidor de muito ar, sugerindo talvez ima sensação de plenitude, o resultado da intensidade emocional experimentada. Subitamente, ele sente “na ponta dos dedos / a coragem de dizê-la”, ou seja, encontra coragem para, finalmente, expressar a vontade manifestada inicialmente, o seu amor, através da “ponta dos dedos” (da escrita?).
    O título – “A violência” – parece, pois, apontar para violência, a intensidade, do sentimento amoroso, bem como para a luta interna do «eu» travada entre a vontade de expressar sentimentos e emoções intensos e o receio de o fazer, isto é, para o impacto que aqueles / aquelas têm em si, tanto física como emocionalmente. O amor, recorrendo novamente a Camões, é um sentimento intenso e contraditório, mas, ainda assim, desejado pelos corações humanos.

domingo, 28 de abril de 2024

Análise do poema "Água suja", de Bruna Beber

    O título do poema aponta, desde logo, para algo desagradável. De facto, o grupo nominal «água suja», nomeadamente o adjetivo, sugere sujidade, impureza, poluição, uma imagem visualmente desagradável que constitui uma metáfora da degradação da vida e/ou do ambiente. Note-se que a água, tradicionalmente, representa a pureza ou a purificação. Basta pensar no simbolismo do batismo cristão ou da lavagem de roupa ou outros objetos. No entanto, nesta composição poética perde esse significado, essa essência.
    Apesar de se tratar de um poema muito breve (o título, seguido de quatro versos), a sua interpretação está longe de ser «fácil». O primeiro verso aponta para o futuro («Ano que vem»), mas com que sentido? Algo que vai acontecer ou que se espera que aconteça? Ou estaremos perante a ideia do adiamento de algo? Ou, ainda, sugerirá a esperança depositada em algo ou alguém?
    O segundo verso não é menos complexo: «fantasia de carne». O nome «fantasia» aponta para a ideia de imaginação, ilusão, mas o que significa aqui o outro nome («carne)? Tratar-se-á de uma imagem representativa do corpo humano? Ou será da realidade crua e visceral? Por outro lado, essa «fantasia de carne» é «de sol temperada». Temperar carne ao sol significa curá-la ou secá-la ao sol. Se assim for, estaremos na presença de uma alusão a uma tradição cultural, algo que não é incomum na poesia de Bruna Beber. Porém, o último verso acrescenta outro tempero: o ódio. Deste modo, temos uma fantasia de carne, temperada de sol com ódio. Ou seja, há aqui um contraste entre o simbolismo do sol – vida, energia, calor – e do ódio, um sentimento carregado de negatividade, porém, a estrela e o sentimento surgem associados. Convém também ter presente que o ódio é um sentimento poderoso e extremamente destrutivo.
    Associando o verso final ao título, podemos inferir que o poema aborda a deterioração de algo que é / era puro, ou que o tempo transforma ou afeta as nossas experiências e perceção das coisas e do mundo que nos rodeiam.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...