Português: Análise do poema "O dia em que eu nasci, moura e pereça"

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Análise do poema "O dia em que eu nasci, moura e pereça"


 Assunto: o sujeito amaldiçoa o dia em que nasceu e manifesta o desejo de que não volte a repetir-se.
 
 
Temas:

- a ligação do nascimento e da morte (verso 1);

- as relações ambíguas com a mãe (verso 8);

- a visão de si próprio com um ser desmesurado, mesmo monstruoso (versos 6 e 7);

- a sensação de desgraça maior (versos 13 e 14).
 
 
Estrutura interna
 
1.ª parte (2 quadras e 1.º terceto): o sujeito poético amaldiçoa o dia em que nasceu, desejando que ele nunca mais volte, e recria um ambiente monstruoso, apocalíptico, que deseja que se materialize, caso o dia do seu nascimento se repita.
 
2.ª parte (2.º terceto): justificação do desejo – o «eu» considera-se vítima do destino, que começou logo no dia em que nasceu: “[…] este dia deitou ao mundo a vida / Mais desgraçada que jamais se viu!”.
 
 
Desenvolvimento do tema
 
• No verso 1, o sujeito poético manifesta um desejo: que o dia em que nasceu desapareça e que não se repita.
 
• Caso esse desejo não se cumpra e ele se repita, deseja que seja um dia horrível, monstruoso.
 
• Assim, enumera uma série de maldições que deverão ocorrer caso [o dia em que nasceu] se repita:

1.ª) Deseja que haja um eclipse, que o sol desapareça e seja um dia de escuridão total.

2.ª) Deseja que o mundo mostre sinais de que vai acabar.

3.ª) Deseja que nasçam monstros.

4.ª) Deseja que chova sangue.

5.ª) Deseja que a mãe não conheça o próprio filho.

Em suma, o «eu» lírico espera que esse dia seja de escuridão total («A luz lhe falte»), tenebroso e monstruoso («nasçam-lhe monstros») e de alienação («a mãe ao próprio filho não conheça»). O cenário que constrói é de violência, sofrimento, morte e terror geral.
 
Estado de espírito do sujeito poético: ao manifestar o desejo de que o dia do seu nascimento não se volte a repetir, o «eu» expressa fúria e revolta, bem como desilusão, caso tal não suceda. O seu tom é exaltado e de fúria, em consonância com o seu estado de revolta e desespero. O «eu» é um ser magoado, mas sem medo. Apresenta-se como um ser de exceção, uma vez que a desgraça o acompanha desde que nasceu. A sua excecionalidade culmina com a hipérbole presente nos dois versos finais do soneto: ele é o ser mais desgraçado que o mundo já viu, o que o deixa irado e revoltado.
 
• O primeiro terceto reflete e a reação das pessoas ao ambiente tenebroso desejado pelo sujeito poético: espanto (por desconhecerem a causa de tal ambiente catastrófico), angústia, medo, pavor, desespero, perante a destruição desejada pelo «eu». A enumeração desta terceira estrofe realça a antevisão que o sujeito lírico tem do ambiente de horror que marcará o dia do seu nascimento, caso ele volte a repetir-se.
 
• No segundo terceto, o «eu» lírico justifica o amaldiçoamento do dia do seu nascimento: dirige-se à «gente temerosa», incentivando-o a não estranhar («não te espantes» - v. 12) o desejo, visto que esse dia trouxe ao mundo o mais desgraçado e infeliz dos seres humanos.
 
Perceção do destino: no último terceto, o sujeito poético conclui que, desde o dia em que nasceu, nunca foi feliz. Assim, refletindo sobre a sua vida, considera-se uma vítima do poder destruidor do destino, que o persegue desde o seu nascimento, sendo, por isso, considerado o causador do seu infortúnio. Em suma, o destino, para o sujeito lírico, o destino constitui:
▪ a causa do seu infortúnio, da sua vida desgraçada;
▪ o elemento com poder destruidor que o persegue;
▪ o obstáculo à sua felicidade.
 
• Representação e autoimagem do «eu»: no poema, o «eu» apresenta-se como um ser «especial», infeliz e egocêntrico. O seu egocentrismo reside no facto de ele considerar que pode impor aos outros a sua tragédia pessoal, arrastando-os para um cenário imaginário de terror e cataclismo.
 
 
Recursos expressivos
 
▪ Ao nível fónico, estamos na presença de um soneto, constituído por duas quadras e dois tercetos, em versos decassilábicos, com rima interpolada e emparelhada nas quadras (abba) e interpolada nos tercetos (cde/cde), consoante (“pereça”/”padeça”), grave (“pereça”/”padeça”) e aguda (“dar”/”tornar”), pobre (“dar”/”tornar”) e rica (“acabar”/”ar”). A métrica, como atrás foi referido, oscila entre o decassílabo heroico e sáfico, o último.
 
▪ Ao nível morfossintático e ao nível semântico, os recursos utilizados estão ao serviço da expressão do desespero do sujeito poético, amaldiçoando-o o dia em que nasceu, pedindo o seu desaparecimento e, caso o seu desejo não seja correspondido, traçando um quadro apocalíptico que gostaria de ver materializar-se nessa data.
Há, em suma, um tom de exagero da desgraça do sujeito, uma «hipertrofia do eu», que pretende impor à própria natureza e à «gente temerosa» a enormidade da sua tragédia, de uma forma violenta: eclipse, monstros, chuva de sangue, lágrimas, o medo, a destruição do mundo.
Esta hipertrofia do «eu», conjugada com uma grande dimensão hiperbólica da afirmação da excecionalidade individual na desgraça, exprime-se através dos seguintes recursos:

. Pleonasmo: «moura e pereça» – exprime o desejo do desaparecimento do dia em que nasceu.

. Inversão: «Eclipse nesse passo o Sol padeça»; «A mãe ao próprio filho não conheça»; «Sangue chova o ar».

. Apóstrofe: «Ó gente temerosa…» – evidencia a distância entre o «eu» e os outros, pois, enquanto estes se mostram temerosos e ignorantes, o sujeito não receia e conhece a causa para o caos.

. Modo conjuntivo para traduzir o desejo de amaldiçoar tudo e o conselho dirigido à «gente temerosa» para que não se espante com o cenário apoclítico.

. Discurso valorativo: «As pessoas pasmadas»; «gente temerosa», «a vida mais desgraçada que jamais se viu».

. Alternância das rimas em a aberto e e fechado nas quadras, sugerindo espanto e dor, e em i nos tercetos como um grito de desespero.

. Anáfora: «não», «não» – intensifica o desejo do sujeito poético.

 
Hipérboles – são a expressão do desejo de maldição, de um ambiente de terror:

. “não o queira jamais o tempo dar”;

. “cuidem que o mundo já se destruiu”;

. “a vida / mais desgraçada que jamais se viu!”: o sujeito poético teve e tem uma vida infeliz e desgraçada, cujo causador é o destino.
 
Adjetivação: «pasmadas», «perdida» – os adjetivos traduzem a reação das pessoas ao ambiente de terror, o seu assombro e medo ao serem confrontadas com ele, sem terem explicações para esse ambiente. Por outro lado, a adjetivação acentua a violência dos acontecimentos e marca a impotência humana face às forças que regem o mundo.
 
Metáfora: «nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar» – traduz o delírio emocional do «eu», apontando algumas das maldições por si imaginadas / desejadas.
 
Determinante demonstrativo «este» (v. 13): traduz a proximidade afetiva entre o sujeito poético e o dia do seu nascimento.
 
Verbo «chover»: este verbo pressupõe um sujeito nulo expletivo. O facto de, no poema, ocorrer com um sujeito simples, aliado ao hipérbato, acentua o caos verificado na natureza, que também se manifesta ao nível da frase que o representa.
 
Conjunção subordinativa causal «que» (v. 13): introduz a causa do desejo expresso no verso 1 – no dia do seu nascimento foi dada à luz a pessoa mais infeliz e desgraçada que o mundo alguma vez viu.
 
 
Conclusões
 
• Esta luta com o destino, a ira, as imprecações, constituem uma revolta falsa e não uma real tentativa de libertação. A violência das maldições, os gritos de desespero, o desejo de morte representam uma espécie de desculpa para a vida, um desejo de encontrar um culpado e a absolvição para a própria derrota.
 
• Camões apresenta, neste soneto, uma imagem engrandecida de si mesmo com que vai compensando a humilhação da derrota: também aqui a poesia é contraditória, oscilando entre a autodepreciação e o narcisismo: vai crescendo em si a consciência de ser diferente; a perseguição do destino, na singular crueldade e estranheza que a caracterizam, acaba por o tornar singular; o afastamento e o desprezo do vulgo exprime-se na epopeia e na lírica. Reconhece-se um ser eleito, grandioso, heroico, genial.
 
 
Intertextualidade com o Livro de Job
 
            Este soneto pode relacionar-se com o capítulo III do Livro de Job, intitulado “As lamentações de Job”, dado que ambos os textos revelam o sofrimento de ambos os «eus». A infelicidade sentida leva-os a amaldiçoarem o dia em que nasceram, recorrendo a imagens e situações sobre a ausência da luz solar e da alegria, embora no texto bíblico não estejam presentes as imagens de terror que é visível na segunda quadra do poema de Camões.
 

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