Português

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Conto "As mãos dos pretos"


     Já não sei a que propósito é que isso vinha, mas o Senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando Senhor Padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores do que nós, voltou a falar nisso de as mãos deles serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles, às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
    Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me a não largar sejam quem for enquanto não me disser por que é que eles têm as palmas das mãos assim mais claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazem e que não deva ficar senão limpa.
    O Senhor Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as coca-colas das cantinas já tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de eu lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
    "Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu, fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados e para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum, ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber por que é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!".
    Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
    Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima peta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banho num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse  muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e as plantas dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
    Mas eu li num livro, que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco de Virgínia e de mais não sei aonde. Já se vê que a Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
    Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são sempre mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
    A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão de as mãos de um preto serem mais claras do que o resto do corpo. No dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de se rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quiser saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e mesmo assim a chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela fosse foi mais ou menos isto:
    "Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para as casas deles para os pôr a servir como escravos ou pouco mais. Mas como Ele já os não pudesse fazer ficar todos brancos porque os que já se tinham habituado a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exatamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes por que é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens... Que o que os homens fazem é feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem juízo sabem que antes de serem qualquer coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos".
    Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
    Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.

in Nós Matámos o Cão Tinhoso

Ligações:

terça-feira, 23 de agosto de 2022

I Don't Want To Talk About It, Rod Stewart e Amy Belle


        Há a música e depois isto.

        2004, no Royal Albert Hall.

        Amy Bell: 💞!

A escola do século XIX em imagens – III


Jean-Baptiste Trayer, Escola Primária na Bretanha (1882)

    Neste quadro, encontramos uma representação bastante realista de uma sala de aula na região da Bretanha, França. Trata-se de uma escola em ambiente rural, o que é sublinhado pela presença de uma galinha com os seus pintos na sala de aula, ante a indiferença geral da turma. Do lado oposto, o crucifixo pendurado na parede assinala que esta é, na França laica e republicana de então, uma escola católica.

    Outra característica interessante é tratar-se de uma turma de raparigas. Com a extensão progressiva da escolaridade ao género feminino, os ainda rígidos padrões morais da época impunham, quase sempre, a separação de sexos, uma ideia que a moderna pedagogia desacreditou completamente, mas ainda subsiste em alguns colégios religiosos, assente no mito de que rapazes e raparigas aprendem de forma diferente, pelo que só em turmas separadas é possível levar uns e outros a alcançar o máximo das suas potencialidades.

    Um olhar mais atento dirigido às pequenas alunas permite-nos captar algumas singularidades: enquanto a professora explica algo a uma das meninas, outras fazem os exercícios ou leem a lição. Em primeiro plano, duas meninas puseram de parte o caderno escolar para brincarem com a pequena boneca que uma delas tem nas mãos. Na primeira fila, uma miúda cansada não resiste e adormece em plena aula: ir à escola implicava frequentemente um longo percurso a pé, pelo que muitas destas crianças já chegavam exaustas à sala de aula. Além disso, e ao contrário dos rapazes, a quem não era exigida a participação nas tarefas domésticas, muitas raparigas tinham de ordenhar animais, acender a lareira ou ajudar a mãe a tratar dos irmãos mais novos antes de saírem para a escola.

quinta-feira, 18 de agosto de 2022

A escola do século XIX em imagens – II


Albert Anker, Escola Rural (1894)
 

    Este quadro do pintor suíço Albert Anker pretende representar uma sala de aula de meados do século XIX. Ao contrário do que sucedia em épocas mais antigas, o espaço físico da aula é aqui mais organizado, embora o mobiliário e os materiais pedagógicos disponíveis sejam exíguos. Trata-se de uma escola em meio rural, frequentada por crianças de origem modesta, como se vê pela roupa e calçado que usam.

    A turma é numerosa – na área visível da sala contam-se, sem dificuldade, perto de 40 alunos – e heterogénea, incluindo rapazes e raparigas de diversas idades. Repare-se na separação de sexos e na desigualdade de acesso à educação, mesmo na Suíça, um dos países económica e socialmente mais evoluídos da Europa oitocentista: os rapazes, em muito maior número, ocupam as filas de carteiras ao centro; as raparigas sentam-se em bancos laterais, onde não dispõem sequer de uma superfície para pousar o caderno. Um misto de “sala em U” e “modelo do autocarro” que demonstra como, ao longo da história da Educação, estes conceitos, que se pretendem simplificadores e unificadores, assumiram e assumem diversas nuances…

Fonte: Escolapt

sábado, 13 de agosto de 2022

2022: Portugal arde a vapor

 

    O que se aprendeu com 2017? Nada!

    O que se fez para preparar o futuro? Nada!

    O que se fez a sério? Nada!

Os iletrados continuam a mostrar-se na imprensa


     A falta de preparação dos jornaleiros em Portugal continua a manifestar-se insistentemente. Qualquer pessoa frequenta um curso e sai de lá escritora, mesmo que desconheça as regras mais básicas da língua.
    No caso deste excerto, o que mais se destaca é o facto de o escriba não saber que, quando inserido numa oração subordinada substantiva completa, o pronome pessoal se coloca ANTES da forma verbal. Assim sendo, deveria ter escrito «que [...] se encontravam numa festa».
    Verdade seja dita, porém, que nada disto importa, não é, senhor ministro João Costa?

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

A escola do século XIX em imagens – I

    O primeiro quadro da série faz-nos recuar até ao século XVII e a uma sala de aula que eventualmente faria as delícias de alguns pedagogos pós-modernos. Mas também por aqui se percebe que as ideias destes pouco ou nada nos trazem de novo.


    O ambiente na sala é caótico ou, numa leitura mais moderna e otimista do que aqui se observa, cada um aprende ao seu ritmo: uns estudam atentamente, outros põem a conversa em dia; este dorme, outros brincam, aquele lá ao fundo faz palhaçadas empoleirado em cima de uma mesa.

    Existem não um mas dois professores na sala, o que demonstra que o par pedagógico não é uma invenção contemporânea. A pedagogia não é diretiva: os professores não dão aula, esclarecem dúvidas aos alunos que querem aprender. Mas a divisão do trabalho deixa algo a desejar: enquanto a professora cumpre a sua tarefa, o seu parceiro entretém-se com alguma coisa que tem entre mãos…

    No século XVII, eram raras as escolas que não pertencessem a instituições religiosas. Haveria escolas laicas, geridas por particulares ou comunidades locais, mas a noção de escola pública era inexistente. A sala de aula era um espaço desorganizado, sem mobiliário específico, onde se misturavam crianças e jovens de diversas idades e níveis de conhecimento: dificilmente reconheceríamos nesta imagem os conceitos atuais de turma ou de sala de aula. Não havia qualquer controlo sobre a formação académica dos docentes, as matérias lecionadas ou as práticas pedagógicas usadas.
    Eram os filhos das classes trabalhadoras que frequentavam escolas como esta: antes de se afirmar a moda dos colégios internos de elite, alta nobreza e alta burguesia recorriam geralmente a aulas particulares para o ensino dos seus rebentos. Nada que surpreenda: também nos dias de hoje, os mais ativos propagandistas da escola do século XXI raramente a escolhem para a educação dos seus próprios filhos…
Fonte: escolapt

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Morreu Ana Luísa Amaral


1956 - 05.08.2022

 

Google anuncia alternativas mais baratas aos diplomas universitários

    Esta iniciativa da Google é só o início de um caminho de uma estrada que já vem sendo construída há muito. Começou a ser construída com Bolonha. A intenção de levar o maior número possível de pessoas para as universidades obrigou a baixar o nível dos conhecimentos, naturalmente. As universidades tornaram-se empresas, algumas internacionais, com o fito do lucro. Impuseram propinas obscenas que obrigam a contrair empréstimos que endividam os jovens para a vida. Com isso, afastaram todos os alunos que não têm dinheiro, ao contrário do que diziam ir fazer. Reduziram o número de professores de contrato permanente e contrataram tarefeiros, para os administradores poderem ter vidas de grande fausto - lucrar o máximo com o mínimo de custos. As universidades começaram a separar-se, não pela qualidade e mérito dos que lá entram, mas pela riqueza das suas famílias. Esse sistema aplicou-se em seguida às escolas: se as universidades já não podem ensinar certos conhecimentos porque os cursos têm menos anos e menos cadeiras, passa-se o conhecimento em falta para as escolas. Sobrecarrega-se o ensino básico e secundário. O sistema escolar começa a abrir brechas o que obriga a baixar-lhe o nível para que não seja um falhanço. Aposta-se nas soft skills: as emoções, os trabalhos de grupo, os consensos, o optimismo tóxico, a amizade, a inclusão em versão, não emancipadora, mas miserabilista. Os alunos já não querem seguir cursos de ciências que obrigam a trabalho metódico, esforço e desenvolvimento de skills, não-soft. Os políticos, coniventes com estas manobras mercantilistas, habituam-se a servir-se da ciência como garante das suas políticas: arranjam postos em universidades, encomendam teses de mestrado e doutoramento, contratam especialistas por amizade e não por mérito - no caso das energias e do ambiente, é mato. Na saúde, as farmacêuticas também. Descredibilizam o estudo universitário e o valor de um curso. Tal como os que estão nas empresas que controlam as universidades, não têm respeito nenhum pelo conhecimento: afinal, uns e outros estão nos cargos tendo estudado nas universidades dos pais, tios, amigos dos pais e tendo feito o percurso sempre amparados por cunhas e não por mérito e saíram-se muito bem na vida. São bajulados pelos jornalistas e pelos parasitas. Acham-se excecionais e acima dos outros em esperteza. E assim corre a vida. Entretanto, são cada vez menos os que são capazes, ou sequer querem, seguir um curso universitário. Se é das humanidades, esses indivíduos que gerem a política e as universidades há muito que os convenceram que são cursos sem sentido para os problemas do mundo e se são de ciências, os estudantes já não os valorizam porque dão trabalho, são caros, ganha-se mal para o investimento que se fez e na prática acreditam cada vez mais que a ciência é um conhecimento sem verdade por estar nas mãos de interesses políticos e económicos (o que não é mentira) , de maneira que a opinião do cientista não tem mais valor que a de outro qualquer. As universidades, entretanto, são locais de censura de ideias e proliferação de opiniões do google e, como se lê neste artigo, amanhã um diploma de uma universidade ou um diploma do Google valem exatamente o mesmo, só que o do Google é muito mais barato. Tudo isto -a decadência da universidade e com ela, a decadência pela busca do conhecimento- por causa da cegueira de uns e da ganância de outros. Portanto, temos que nos preparar para o fim do progresso científico-tecnológico como o conhecemos e para a ascensão da superstição e crendice como há séculos não se via e se pensava ter ultrapassado.

    Daqui a umas dezenas de anos voltamos à situação de ninguém ser capaz de ler os hieróglifos egípcios ou os textos gregos antigos ou construir matemática complexa ou outro conhecimento qualquer complexo.


    O seu programa de certificados poderia mudar o que os empregadores procuram nos futuros trabalhadores.

    Em 2019, o salário anual médio de um trabalhador a tempo inteiro com mais de 25 anos de idade era de cerca de 66.000 dólares, se tivessem uma licenciatura. Com apenas um diploma de liceu, desceu para cerca de $39.000. Mas esse aumento de salário não sai barato.

    Desde 1985, o preço de um diploma de licenciatura mais do que duplicou (ajustando-se à inflação) e em 2019, mais de 50% dos estudantes declararam ter contraído dívidas para financiar os seus estudos universitários, sendo o montante médio a norte de 35.000 dólares. Um em três com mais de 50.000 dólares de dívida.

    Pagar isto já é difícil para os licenciados, mas para os milhões de ex-alunos que desistem antes de obterem um diploma, é quase impossível.

    A Google anunciou recentemente planos para lançar um trio de programas de certificados alternativos aos diplomas universitários. Estes programas são inteiramente online, levam seis meses a concluir e são concebidos e ensinados por funcionários da Google.

    Os inscritos podem optar por formação para um trabalho como analista de dados, gestor de projecto, ou designer de experiência de utilizador. Todos os três postos são muito procurados, de acordo com a Google e as pessoas que os ocupam ganham um salário médio de pelo menos 66.000 dólares por ano.

 

Fonte: ipbeatrizja

Morreu Jô Soares


 1938-05/08/2022

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