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domingo, 23 de outubro de 2022

Análise do poema "O baile", de Gonçalves Dias


    O poeta, para tratar o motivo da saudade romântica, escolhe o ambiente de baile.
    Temos duas situações:
        => Descrição do ambiente, não exterior, mas interior do salão, marcado pelo brilho e aspetos sensoriais: odores, perfumes, música, etc. As personagens são concebidas em termos medievais: donzela e trovadores. Também os instrumentos são medievais, uma das principais características do Romantismo europeu: valorizar os elementos captados pelos sentimentos, música, multidão, festa, prazer, etc.
        => Solidão do poeta romântico. O sujeito da enunciação é romântico e a sua atitude é de contemplação e não de participação. Consegue fazer uma correspondência entre o que vê e o que se passa no íntimo de cada um e essa correspondência não existe: o exterior é de alegria e prazer e o interior de choro e aflição. Tudo isto causa no poeta grande tristeza e solidão. Tudo aquilo é falsidade, enquanto a morte é o que há de mais definitivo.
    Temos, neste tipo de poesia, três vetores importantes:
        => ritmo ágil e vigoroso;
        => métrica variada;
        => linguagem precisa.
    Estes três vetores dão uma enorme força à poesia de G. Dias e através deles se faz uma organização das sugestões do mundo exterior num sistema coerente de representações plásticas e musicais. Isto tem a ver com o apelo do aspeto sensorial. É uma poesia universal pelos temas, mas consegue ser particular pela expressão dos sentimentos: solidão, contemplação do mundo, apelo à eternidade e procura da verdade.

Análise do poema "Se se morre de amor!"


     Contrapõe o amor-sedução dos balões de baile, do qual não se morre, a um outro tipo de amor tão intenso, que pode levar à morte, porque tudo é imenso e definitivo. É um amor-paixão.
    Quando duas almas se encontram e ficam juntas, vivem num êxtase de felicidade; se se separam, morrem, porque a morte é a única coisa que pode compensar a separação. Há um tipo de amor que não conduz à morte e outro tão intenso que conduz à morte pela sua intensidade.
    Estes poemas são semelhantes e ambos têm um tema romântico e universal: amor e saudade.
    Gonçalves Dias, que estudou em Lisboa, segue os modelos portugueses de Garrett, nos poemas de amor e saudade, e de Herculano, nos livros e poemas religiosos. É um poeta essencialmente romântico, mas está muito vincado a uma forma neoclássica, a uma certa impregnação da cultura e sensibilidade neoclássica. Por isso, é equilibrado e contido e com marcas europeias a nível da linguagem.

Análise do poema "Ainda uma vez - Adeus!", de Gonçalves Dias

     É o poema mais expressivo da obra, onde reflete sobre os seus sentimentos.
    Houve obstáculos que provocaram o seu afastamento da amada. Ele ainda lutou, mas desistiu, porque a luta causaria escândalo. Prefere ser infeliz e ficar sozinho, mas salvar a honra da amada; prefere ser ele a sofrer e dar-lhe oportunidade a ela de tentar ser feliz, deixando-a casar-se. Mas foi tudo inútil, porque nem ela nem ele foram felizes e a culpa foi dele.
    Apela à compaixão dela, mas não ao amor ou saudade. É um tema universal, do amor marcado pela sensibilidade e dor.

Conclusões sobre Iracema


    1.  A abertura do romance é de caráter poético, o que se mantém ao longo de todo o romance, mas não num tom tão forte como nos primeiros capítulos. Esse tom poético caracteriza um determinado clima, como a referência a coisas objetivas, e caracteriza as personagens e seu discurso. Há quem considere que esta obra é o exemplar mais perfeito da prosa/do poema. Esse caráter poético é progressivamente substituído por um adensar da intriga, a partir da caracterização de Iracema e Martim. Iracema é corajosa, fiel, dedicada. A caracterização positiva de Iracema vai no sentido da idealização do índio. Pelo contrário, Martim é caracterizado por uma duplicidade e orgulho excessivo.

    2. Cor local: é uma característica romântica. Mas aqui ela é vaga e é-nos dada pelos atos das personagens e sua descrição: descrição do espaço; adivinhar o pensamento das personagens e uma certa fatalidade. Essa cor local é dada por uma expressão imagética e metafórica que aproxima o leitor do ambiente descrito.

    3. Retorno às origens: a origem do Brasil assenta numa simbiose do índio com o europeu. Do índio, o brasileiro recebeu a afetividade e sensualidade, dadas não de modo exótico, como acontecia no período colonial e no Barroco; do europeu, recebeu a saudade e a melancolia.

    4. Subjetividade: também é uma característica romântica. Como exemplo desta subjetividade temos o eterno conflito do herói entre o anseio e a norma. É esta caracterização negativa de Martim que vai provocar a idealização do índio, que surge pela imposição dos cânones românticos e pela própria visão de Alencar. Esta idealização está presente no discurso do narrador, discurso e descrição das personagens e da natureza que as envolve. Se o caráter do índio é idealizado, logo há um predomínio do elemento índio, embora na fundação do Brasil haja um predomínio do elemento europeu. O herói acaba por ser o índio. Há um autor que diz que é importante a referência ao índio, porque num país mestiço era preciso criar uma raça heroica e era necessário criar a dimensão de um tempo heroico.

    5. Natureza: a natureza está sempre presente para que se crie um ambiente verdadeiro: descrição da flora, fauna e costumes que podem aparecer como cenário ou símbolos. Esta ambiência é ainda dada pela linguagem e atitudes das personagens.

    6. O romance é também a expressão da nacionalidade, que resulta da simbiose de diversos fatores: escolha do momento histórico no passado; escolha de uma lenda da fundação do Ceará; uso de uma língua específica índia, expressão de uma cultura e de um ambiente; estrutura da narrativa organizada segundo uma visão índia de ver a vida; descrição da natureza, costumes e crenças e a valorização do índio. Porquê o índio e não o preto, por exemplo? É que o índio é livre, verdadeiramente americano, capaz de encarnar um mundo poético e heroico. Sendo livre e americano, afirma-se a nacionalidade de raízes legitimamente americanas; enquanto que o negro era escravo e não era filho da terra.

    7. Personagens e sua significação: o romance começa com um cenário equilibrado, de felicidade, em que surge um elemento que perturba de tal modo a paz inicial que dá origem a uma nova raça.
    O índio é valente, corajoso, hospitaleiro, dedicado tanto aos amigos (ex.: Poti) como ao amor (ex.: Iracema); tem ainda a capacidade de desvio. Eles têm regras que os regem, mas conseguem desviar-se delas, como acontece com Iracema, que assume esse desvio e perde. O índio perde sempre e a sua cultura é absorvida.
    O branco é marcado pela fé católica, pela honra que, por vezes, o faz oscilar; pela nobreza de sentimentos; pela força dos compromissos sociais e culturais e pela saudade, sempre presente.

    8. Três vetores são essenciais na criação de Iracema:
  • Necessidade de construir um poema, sabendo que na tradição literária, a forma poética é a forma por excelência de narrar as origens da nacionalidade.
  • Integração da língua índia, que se torna fundamental na construção da nacionalidade.
  • Intuito nacionalista: Alencar sente necessidade de se desenvolver uma literatura específica do Brasil, o que é também um dos itens do Romantismo.

sábado, 22 de outubro de 2022

Análise do capítulo XXXIII de Iracema


     Aqui termina a analepse, retomando os elementos do primeiro capítulo: jandaia, um homem - Martim -, uma criança e um cão. Martim volta ao Brasil quatro anos depois e funda a cidade do Ceará.
    Alencar, que se limita quase sempre a contar a história, vai deixando, por vezes, algumas pistas no ar.
    Em relação à predestinação da raça, refere-se à separação das tribos índias e à emigração, traço do caráter brasileiro. Essa predestinação é um dos elementos do Romantismo. Alencar contou, nesta obra, uma lenda que termina neste capítulo com a fundação da cidade do Ceará e com a cristianização do índio. É igualmente importante o nascimento do primeiro cearense: o filho de Iracema e Martim, com predomínio do elemento europeu. Uma prova disso é o facto de, no fim, a indianização do europeu ser substituída pela cristianização do índio, que é definitiva e concreta.
    Em relação a Iracema, no fim, Martim muda radicalmente: marca-o a saudade e a culpa. O fim do romance tem um caráter definitivo: "Tudo passa sobre a terra.", principalmente a alegria. Este final também pode ser entendido como um desabafo ou desalento do autor em relação a Martim, que teve na sua mão a hipótese de ser feliz e não a aproveitou. Este capítulo pode ainda ter outra interpretação, ao nível da ação dos portugueses: a incapacidade de tomar decisões concretas no momento certo e a inadaptação que caracterizam Martim, símbolo do domínio português.

Análise do capítulo XXXII de Iracema


     Iracema perdera de tal forma as suas energias que nem o encontro com o marido consegue reanimá-la. Estamos quase no término da intriga: Iracema morre, apesar da esperança que a reanimou com a chegada de Martim; fisicamente já não consegue recuperar.
    Martim, antes de chegar até Iracema, vem marcado pelo receio de encontrar no olhar de Iracema um sentimento de culpa. Ele sente medo de enfrentar a coragem e fidelidade dela. Apesar de a jovem nunca lhe atribuir qualquer culpa, ele sente-se culpado. Esta é a primeira preocupação que atinge o seu íntimo, só depois de lembrando se ela ou o filho estarão bem.
    A morte de Iracema é descrita em moldes românticos: morre nos braço da pessoa que ama (Martim). O capítulo termina com a justificação do topónimo Ceará: canto da jandaia.

Análise do capítulo XXXI de Iracema

     Caubi parte acedendo ao pedido da irmã, que não quer que ele assistia à tristeza que a invade. Porém, Caubi percebe a verdadeira razão do seu pedido.
     Temos ainda a descrição de todo o sofrimento que ela passa para alimentar o filho e do doloroso método que põe em prática para puxar o leite. Assim, além de estar só, sofre a dor de não poder alimentar i filho.

Análise do capítulo XXX de Iracema


     Relato do isolamento de Iracema e sua angústia. Nasce o filho de Iracema, que é fruto do seu sofrimento e dor.
    Ainda neste capítulo, aparece Caubi, que vem visitar a irmã e logo se apercebe da sua tristeza.

    Em Iracema, podemos ver a necessidade ou obrigação de escrever um romance nos moldes do Romantismo. Mas a obra tem um significado mais amplo: o Romantismo defendia o retorno às origens e o regresso ao início da nacionalidade. Na Europa, significava o regresso à Idade Média. No Brasil, não existia esse período. Assim, Iracema surge como símbolo da nacionalidade do Brasil. Na opinião de Alencar, isto fundamenta-se na simbiose do índio com o europeu. Sendo assim, o verdadeiro elemento brasileiro tinha características índias e portuguesas. Ou seja, há certos traços característicos do elemento brasileiro que são indígenas - capacidade de dedicação e coragem - e europeus - sentimento de saudade. Os sentimentos indígenas são sentidos num nível de intensidade muito elevado. A nacionalidade brasileira recebe elementos de ambas as culturas, com sobreposição de uma das partes: os elementos indígenas caracterizam um herói marcado pela fidelidade e coragem. Nessa origem, temos a oposição entre a sensibilidade que caracteriza Iracema e a racionalidade da "virgem loura". É essa sensualidade que vai caracterizar o elemento indígena.
    Mas, neste romance, há vários elementos românticos: a subjetividade, que faz parte do eterno conflito que marca o herói romântico - anseios e normas do europeu. Entre o índio e o europeu há uma recolha desequilibrada de elementos, porque, pelo menos a nível estrutural, há predomínio do elemento índio - fidelidade de Iracema e sabedoria de Poti - por imposição dos cânones românticos.
    Os objetivos de Alencar em relação a Iracema foram:
        - construção de uma alegoria, de algo simbólico da origem da nacionalidade;
        - construção de um romance que fosse ao mesmo tempo um poema. Esse caráter poético é marcado pela idealização do índio, da natureza, que é dada pelo discurso do narrador e pela descrição da natureza e das personagens.

Análise do capítulo XXIX de Iracema

     Luta entre pitiguaras e outras tribos que se unem aos franceses. Isto é um referente histórico, porque, de facto, houve tribos que lutaram ao lado dos portugueses e outras ao lado das potências estrangeiras.
    O fim do capítulo é significativo, porque narra o nascimento do filho de Iracema e Martim, que, no fundo, é um símbolo da vitória do elemento colonizador, ou seja, do português.

Análise do capítulo XXVIII de Iracema


     Dá-se a explicitação do que já se vinha adivinhando. No capítulo anterior, as conclusões eram tiradas a partir de indícios; aqui são casos concretos. Iracema não acusa Martim; fala com ele e expressa-lhe o que sente, mas não o acusa. Ela tem consciência da dualidade de Martim, quando refere a "virgem loura", que há já muito tempo não aparecia. Ele tem ainda um caráter de prenúncio da fatalidade que se aproxima e nela se adivinha a disponibilidade para o sacrifício maior, que é a sua morte. Apesar de tudo, ela quer evitar a culpa e o remorso de Martim e aceita tudo como acontecimentos naturais, sem intervenção dele. Aceita os sacrifícios como algo que deve fazer, mas nele já se adivinha um sentimento de culpa, pois não consegue responder a Iracema e apenas a beija.

Análise do capítulo XXVII de Iracema


     Dá-se o regresso de Martim, que procura viver de novo um período de felicidade muito efémero. Ele possui um conceito diferente de amor e amizade: são instrumentos e não um fim. Vive em função do passado e do futuro (saudade e esperança de rever o que deixou) e não em função do amor e amizade presentes. Nele, o mais importante não é o amor nem a amizade, mas sim a ausência, solidão e daí a necessidade que ele tem de se afastar. Isto é irónico, porque ele não reconhece os sacrifícios que o amigo e a esposa fizeram, adotando uma atitude de indiferença.
    O fim é muito simbólico: prenúncio do desfecho trágico da história; fim da felicidade de Iracema e Martim.

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Análise do capítulo IV do Sermão de Santo António aos Peixes


             Este capítulo pertence ainda à Confirmação, iniciada no capítulo anterior e compreende as repreensões em geral dos peixes.

            A frase inicial (“Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões”) funciona como uma charneira que liga dois momentos do sermão: o anterior, onde se louvaram as virtudes dos peixes (caps. II e III), e o posterior (caps. IV e V), no qual se apontarão os seus defeitos. Esta transição é vincada pelo conector «porém», que possui um valor adversativo e, assim, marca o contraste entre os dois momentos da obra. O orador acrescenta, logo de seguida, que as repreensões são feitas com o intuito de agitar as consciências dos homens e os fazer refletir sobre os seus atos (“Servir-vos-ão de confusão”), ainda que não sirvam para corrigir as atitudes e os comportamentos (“já que não seja de emenda”). Outro conector a ter em conta é «Antes […] que», de valor temporal, que indicia a já considerável extensão do sermão e o provável cansaço do auditório, pelo que era essencial manter o seu interesse.

            Note-se que Padre António Vieira dá início às repreensões dos peixes, seguindo o método usado para os louvores: do geral para o particular. Quer isto dizer que, no capítulo IV, apresentará os vícios gerais dos peixes e, no V, tratará dos casos particulares.

            Qual é a primeira repreensão feita pelo orador? A ictiofagia:

- Os peixes comem-se uns aos outros;

- Os peixes grandes comem os pequenos, por isso, para alimentar um grande, são precisos muito pequenos.

            Tendo em conta o caráter metafórico e alegórico do Sermão, a primeira repreensão – e o tema central do capítulo, como se verá a seguir – é a exploração do homem pelo homem, mais especificamente a dos pobres e indefesos (os pequenos) pelos poderosos, isto é, detentores de poder financeiro, social, institucional, etc. (os grandes), ou seja, a antropofagia social.

            Este escândalo é intensificado pela circunstância de serem os grandes que comem os pequenos, daí que “como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil para um só grande.” A hipérbole (“não bastam cem pequenos, nem mil”) traduz a voracidade com que os peixes se comem e a gula / voracidade dos grandes. E a situação fosse a inversa, isto é, se os pequenos comessem os grandes, o mal seria menor, visto que “bastara um grande para muitos pequenos”. Resumidamente, os homens mais poderosos subjugam e exploram os mais fracos e vulneráveis. Se quiséssemos, como fazem os alunos por vezes, questionar a importância do estudo deste sermão, poderíamos chamar a atenção para a sua atualidade: não é muito difícil encontrar casos, hoje em dia, de empresários sem escrúpulos que exploram os “seus” trabalhadores (três exemplos: em 2021, foi notícia a exploração de trabalhadores estrangeiros numa exploração de Odemira; alguns funcionários da Amazon eram forçados a urinar em garrafas de água, durante os turnos, para cumprirem as metas da companhia; estima-se que, em 2016, existiam 40, 3 milhões de pessoas vítimas de escravatura moderna, das quais 62% eram vítimas de trabalho forçado, sendo que, no caso de Portugal, estaríamos a falar de cerca de 26 000 indivíduos nestas circunstâncias), políticos prepotentes e envolvidos na prática de crimes, a discriminação de pessoas de outras etnias, credos, sexualidade, etc.

            De seguida, o orador recorre às palavras de Santo Agostinho (argumento de autoridade) para comparar a atitude que critica nos peixes com o comportamento dos homens: “Os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que se comem uns aos outros.” É a antropofagia social: os homens poderosos exploram os pobres e indefesos.

            O escândalo maior – que causa o espanto de Padre Vieira – é o facto de os homens se comerem uns aos outros, sendo todos irmãos e vivendo no mesmo elemento. Qual é a causa deste facto? A resposta é clara: as “más e perversas cobiças”.

            Estilisticamente, no primeiro parágrafo há a destacar, desde logo, a reiteração do verbo «comer», sugerindo, quando se refere ao ser humano, a exploração do ser humano pelo seu semelhante (metáfora). Por outro lado, a antítese entre «grandes» e «pequenos» representa os homens com poder, que exploram e agridem o seu semelhante, como “lobo do próprio homem”. Ainda neste parágrafo, Vieira recorre à gradação: começa por apresentar o vício (o facto de se comerem uns aos outros), depois explicita a sua gravidade e as suas consequências: “não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande”.

            A finalizar o primeiro parágrafo, Vieira estabelece um paralelismo entre a sua atitude e a de Santo Agostinho, cujas palavras e exemplo constituem um argumento de autoridade:

Santo Agostinho
pregava aos homens
exemplificava nos peixes

 

António Vieira
prega aos peixes
exemplifica nos homens

            Neste sentido, o orador incentiva os peixes a observarem o que se passa na terra através de uma apóstrofe (Vieira simula que está a dirigir-se aos peixes quando, na verdade, fala para os homens, no sentido de os alertar para a desumanidade e a exploração praticada pelos colonos), mas eles olham para o Sertão, onde vivem os Tapuias, uma tribo que praticava o canibalismo, o que significa que os peixes interpretaram literalmente as forma do verbo «comer». Ele pretende que olhem para a cidade, espaço que considera um «açougue», onde “muito mais se comem os brancos” (embora os Tapuias sejam canibais, não comem tantos homens como os brancos se exploram entre si), o que constitui uma denúncia da antropofagia social: os homens exploram e vivem às custas uns dos outros. Deste modo, os peixes observarão nos homens os seus próprios defeitos, nomeadamente o modo como se comem, isto é, se exploram entre si. A repetição da expressão «para cá» confere vivacidade ao discurso e realça o facto de o orador se encontrar no local onde a corrupção ocorre. Como o Sermão é alegórico, na verdade, Vieira está a dirigir-se aos humanos: sabendo que, ao referir-se ao vício de se comerem uns aos outros, os colonos pensariam que se estava a referir aos rituais antropófagos dos índios, o orador esclarece-os que se está a referir aos brancos. Estilisticamente, Vieira faz uso de várias formas verbais que apelam à visão (“vejais”, “olhai”, “vedes”), algumas no imperativo, para apresentar os factos de modo mais vivo, para confrontar os ouvintes com a realidade que está a descrever, isto é, para demonstrar a «carnificina» (metáfora) que ocorre nas cidades, onde os homens se exploram (metáfora «comem») numa escala muito superior à que é praticada pelos verdadeiros canibais do Sertão, os Tapuias. Por outro lado, constitui uma forma de impressionar e emocionar o auditório. Além disso, para captar os ouvintes e criar neles um forte visualismo, além do imperativo, Vieira socorre-se do vocativo/da apóstrofe (“peixes”), do advérbio com valor de negação «não» e da repetição da interrogação retórica. Regressando ao verbo «comer», ele é usado no sentido literal (por exemplo, em “Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros?”, dado que esses índios eram uma tribo antropofágica) e metafórico com o sentido de explorar (“Muito mais açougue é o de cá, muito mais se comem os brancos”). De seguida, através do paralelismo – verbo «ver» + (quantificador) determinante demonstrativo + verbo no infinitivo (“vedes todo aquele andar”), da anáfora (“vedes”), da enumeração e da gradação (“bulir”, “andar”, “concorrer”, “cruzar”) e da antítese (“subir e descer”, “entrar e sair”) –, o texto adquire um ritmo rápido, sugerindo o bulício da cidade, o desconforto provocado pela falta de “sossego” e “quietação”, em suma, a vasta dimensão da antropofagia social: “Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer, e como se hão de comer”.

            Depois desta generalização, Vieira centra-se num caso particular: o de alguém que acabou de morrer. É a exemplificação do orador para o que atrás referira. Este exemplo mostra como os familiares e os amigos do morto recente procuram “despedaçá-lo e comê-lo”: os herdeiros, os testamenteiros, os legatários, os acredores, os oficiais dos órfãos, dos defuntos e dos ausentes, o médico que “o curou ou ajudou a morrer” (atente-se na ironia), o sangrador, a mulher, o coveiro, “o que lhe tange os sinos” e “os que, cantando, o levam a enterrar”. Todas as figuras enumeradas mostram grande indiferença e insensibilidade, pois ignoram e são completamente indiferentes a esse momento trágico e pensam apenas em se apoderar e aproveitar dos bens do defunto. Neste contexto, assume grande relevância de novo a polissemia do verbo «comer», com vários significados (aproveitar, malfazer, usufruir, roubar, extorquir, enganar, ludibriar, mentir), de acordo com a(s) figura(s) da enumeração. Por outro lado, a enumeração e a anáfora acentuam a ideia de que o homem que acaba de morrer é saqueado por todos os que se querem apoderar dos seus bens.

            Qual é a conclusão? “[…] enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra e já o tem comido toda a terra.” Esta metáfora joga com o duplo sentido da palavra “terra” (trocadilho): na primeira ocorrência (“o não comeu a terra”), refere-se a sepultura (onde o corpo do defunto foi depositado), enquanto, na segunda (“já o tem comido toda a terra”), a palavra refere-se à sociedade e insinua a rapidez e a intensidade com que o ser humano é explorado.

            Este primeiro exemplo evidencia a crueldade da situação e o quão mórbida e inaceitável que ela é, porém o orador “desculpa” aqueles que tiraram dividendos do morto, porque, para ele, pior são aqueles que exploram, sem escrúpulos, os vivos: “Já se os homens se comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de sentimento.” É o caso dos inúmeros Job (personagem bíblica cuja riqueza – material e espiritual – despertou a inveja do diabo, que lhe retirou tudo, à exceção da sua alma, que se manteve fiel a Deus, e cujo modelo de sofrimento, perseguição e resignação reforça o caráter paradigmático do caso apresentado) que povoam a terra.

            Para confirmar com mais veemência a crueldade humana, Padre António Vieira ilustra a sua tese com mais um exemplo: é o caso de um homem perseguido pela justiça perversa e viciada, um “desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes” e que é explorado por vários: o meirinho, o carcereiro, o escrivão, o solicitador, o advogado, o julgador, sendo sentenciado e executado antes mesmo de ser julgado. O orador sublinha a crueldade dos homens, comparando os corvos e os homens, para concluir: “São piores os homens que os corvos.” Esta comparação enfatiza a gravidade do comportamento dos seres humanos quando é confrontado com o das aves necrófagas, dado que estas apenas se aproveitam de outros seres já mortos, ao contrário do que fazem aqueles.

            Qual é a relação entre ambos?

Semelhanças

 

Diferenças

. Os corvos devoram outros animais.

. Os homens aproveitam-se de outros homens.

 

. Os corvos comem os animais mortos.

. Os homens aproveitam-se de homens vivos.

            De seguida, Padre António Vieira, num tom mais violento e interventivo, mostra toda a sua indignação pela maldade dos homens através do contraste entre os grandes e os pequenos.

Peixes grandes

Peixes pequenos

. Comem os pequenos.

. Têm “o mando das cidades e das províncias”.

. Nunca se contentam: “devoram e engolem os povos inteiros”.

. São comidos “de qualquer modo”, “um por um, ou poucos a poucos”.

. São “o pão quotidiano dos grandes” – são comidos quotidiana e indiscriminadamente.

. Padecem (sofrem).

            O que mais espanta e indigna o orador é que “os grandes que têm o mando das Cidades e das Províncias” não se contentam em comer os pequenos um a um, antes devoram os povos inteiros, como se devora o pão. Há uma diferença entre o pão e os outros comeres:

Pão

Outros comeres

. come-se todos os dias.

. carne: há dias de carne;

. peixe: há dias de peixe:

. frutas: comem-se em diferentes meses do ano.

            Tal como o pão é um alimento quotidiano e se “come com tudo”, também os pequenos “são o pão quotidiano dos grandes” e “com tudo e em tudo são comidos”. A metáfora “São o pão quotidiano dos grandes.” associa os pequenos ao pão, aos mais desprotegidos e vulneráveis. Tal como o pão é acompanhamento regular de outros alimentos, também os mais frágeis são constantemente explorados pelos mais poderosos. Deste modo, a metáfora traduz a ganância e a avidez dos poderosos e a fragilidade dos mais fracos, que estão continuamente expostos ao “apetite” voraz dos primeiros. Neste contexto, a citação do Antigo Testamento (“Qui devorant plebem meam, ut cibum panis.”) traduz a repulsa de Vieira por haver homens que exploram outros como se “tragassem” um pedaço de pão. Por outro lado, como sucede frequentemente ao longo do sermão, a transcrição bíblica confere autoridade à argumentação do pregador (o mesmo efeito é obtido com a referência a figuras bíblicas como, por exemplo, Santo Agostinho, Santo António, etc.) e enfatiza a condenação deste tipo de atitudes – isto é, o facto de os homens poderosos dominarem e explorarem os mais fracos –, que Deus e o texto sagrado reprovam totalmente. Atente-se na anáfora e na gradação em “[…] com tudo, e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo, nem fazendo ofício, em que os não carreguem, em que os não multem, e que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devorem […]”, que apresentam as ações dos “grandes”, isto é, dos que exploram e humilham, num crescendo de violência, sugerindo a voracidade e a brutalidade com que os poderosos exploram e oprimem os mais fracos. Virando-se novamente para os peixes, o pregador acusa-os de se comportarem e terem os mesmos defeitos que acabara de apontar aos homens: os grandes comem os pequenos aos cardumes, de dia e de noite, “às claras e às escuras”. Outra forma de o pregador reforçar a sua argumentação passa pela personificação dos peixes e pela simulação da sua anuência ao que ele diz em resposta à sua pergunta (“Parece-vos bem isto, peixes?”): “Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não […]”. Da mesma forma que assegura o castigo divino para os homens que cometeram as maldades e injustiças, adverte os peixes que serão castigados caso persistam nos mesmos erros. Para comprovar isto, evoca o testemunho proveniente da experiência de vida e sabedoria dos mais velhos (“Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado…”), que assistiram à exploração dos índios brasileiros pelos colonos portugueses, que, “em vez de governar e aumentar o (…) Estado”, o destruíram e se “fartavam em comer e devorar os pequenos”.

            Por tudo isso, o orador faz uma advertência: ninguém – grande ou pequeno – está imune de ser «comido» por outro ainda maior. O mesmo se passa com os peixes, como o comprova o exemplo do xaréu, que, “correndo atrás do bagre”, como o cão atrás da lebre (comparação), não se apercebe do tubarão, que o engole de uma vez. Este exemplo fundamenta, portanto, o conselho do pregador, pois qualquer poderoso (“grande”) pode passar facilmente de predador a presa de outros “peixes” maiores. Por outro lado, enfatiza a ideia de que os grandes comem os mais pequenos, sendo a sua superioridade relativa e condicional. Segue-se uma citação de Santo Agostinho (“Praedo minoris fit praeda maioris”, ou seja, “O que aprisiona o mais fraco torna-se presa do mais forte.”), que mostra que os homens devem ter consciência de que mesmo aqueles que exercem o seu poder sobre alguém mais fraco são, mais tarde ou mais cedo, dominados ou oprimidos por alguém mais poderoso. Já antes o orador se referira aos homens que exploram os mais fracos no Brasil, isto é, que eram aí “grandes”, e que, quando viajam para Portugal, encontram cá outros maiores “que os comem também a eles”. O mesmo se passa com os peixes, como mostra a seguir e já vimos.

            Nesta sequência, dirige um conselho aos peixes que pode funcionar como remédio para a ictiofagia / antropofagia social: zelar pelo bem comum – “mais repúblicos e zelosos do bem comum, que este prevaleça contra o apetite particular de cada um”, ou seja, aconselha-os a que haja menos egoísmo e mais altruísmo; o bem comum deverá prevalecer sobre os desejos individuais. Além disso, apela à união dos peixes contra os seus inimigos (“tanto inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e pertinazes”), isto é, os pescadores, que os perseguem incessantemente com as suas armadilhas: redes, nassas, linhas, anzóis, fisgas e arpões; canas e “cortiças armas ofensivas”. Não lhes bastarão tantos e tão armados inimigos de fora para ainda se guerrearem entre si, “comendo-vos uns aos outros?” Este passo pode ser interpretado como uma alusão à guerra ofensiva dos holandeses na colónia do Brasil e um apelo aos Portugueses para os combater: “Cesse, cesse, já, irmãos peixes…”. Dito de outra forma, para além de os peixes correrem muitos perigos, de dia e de noite, e como têm muitos inimigos “de fora”, é necessário cessar esta “perniciosa discórdia”, para que haja paz, vivendo “muito quietos, muito pacíficos e muito amigos”. Por este motivo, Padre António Vieira incentiva à moderação e à benquerença entre os peixes, recordando-os da forma como escutavam a pregação de Santo António: “Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos, grandes e pequenos, quando vos pregava S. António?” A evocação desta lenda em torno do santo reforça o apelo que o orador dirige aos peixes: se lhes foi possível ouvir o santo com devoção e atenção, eles serão capazes do mesmo comportamento pacífico e fraterno, que limitará o seu “apetite particular” e os impedirá de se comerem uns aos outros.

            De seguida, Vieira contra-argumenta: é necessário explorar o trabalho dos outros para sobreviver, só têm esse meio de subsistência. Neste passo pode ler-se uma alusão à escravatura no Brasil. Porém, de imediato rebate essa ideia, lembrando que os bens do mundo chegam para todos e dá o exemplo do dilúvio e da arca de Noé, os predadores (os animais da terra e do ar) não devoraram as suas presas e sobreviveram com o alimento que lhes era dado, por imperativo de conservação e aumento da espécie. Deste modo, os peixes devem seguir o seu exemplo, sendo que Vieira pretende mostrar que o ser humano não necessita de explorar e oprimir o seu semelhante para sobreviver (por exemplo, através da escravatura), antes pode e deve encontrar outra forma de se sustentar.

 
            Segue-se a segunda repreensão aos peixes: a ignorância e a cegueira, que os faz serem pescados e perderem a vida. O orador usa a ironia para criticar a falta de discernimento e a ilusão em que o homem vive, recorrendo a um exemplo para convencer os ouvintes: “Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas ou três pontas” e lança-o ao mar. Ora, o peixe, enganado pelo retalho de pano, iludido, “arremete cego a ele e fica preso”, acabando por morrer. Este comportamento dos peixes desperta o repúdio e a indignação de Vieira, que exprime esses sentimentos através de duas interrogações retóricas: “Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida?!” Ignorância, porque não entende o significado do pano; cegueira, porque se atira cegamente e fica preso.

            O comportamento dos homens é semelhante, pois enganam e deixam-se enganar facilmente. O orador comprova a sua tese com uma crítica ás ordens religiosas de Malta, de Avis, de Cristo e de Santiago, que recrutam pessoas para lutar pela fé cristã, levando-as à morte. É pela vaidade de envergar um hábito (branco Ordem de Malta; verde Ordem de Avis; vermelho Ordem de Cristo e Santiago) que os homens morrem. Ou seja, a vaidade e a ignorância dos homens manifestam-se no facto de acabarem por morrer na guerra, porque querem adquirir honrarias e bens através do ofício das armas (por exemplo, servindo as ordens religiosas). Esta estratégia não faz parte da essência de uma ordem religiosa, cujo dever passa por ensinar e transmitir os valores de Deus. Ou seja, neste passo, Vieira censura os homens pela ignorância (“cegueira”), visto que a sua ambição por honrarias e títulos os levam a arriscar e a perder, por vezes, a vida (na guerra).

            De seguida, dá o exemplo dos homens do Maranhão, que também se deixam pescar/enganar pela vaidade: vem um mercador de Portugal para o Maranhão, com uns “retalhos de pano” fora de moda, que ninguém aprecia; dá uns retoques na mercadoria e coloca-a à venda por um preço muito superior ao seu valor, o que faz com que os vaidosos (“os bonitos, ou os que o querem parecer, todos esfaimados aos trapos”) comprem o que querem, gastem o dinheiro que têm e se endividem. Há homens que se deixam levar pela vaidade, valorizando a beleza e a aparência, fascinam-se com os “trapos” (tecidos, roupas) que chegam de Portugal (já fora de moda) e endividam-se para os comprar, perdendo tudo o que ganharam durante um ano de trabalho:

“Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva?”

“Não o levam os coches, nem as liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as tapeçarias, nem as pinturas, nem as baixelas, nem as joias.”

“em que se vai e despende toda a vida?”

“No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano.”

            Os homens (por causa da vaidade) e os peixes (por causa da ignorância e da cegueira) eram facilmente enganados e morriam. Por isto, Padre António Vieira exorta os peixes a não se deixarem iludir pela vaidade, desde logo porque Deus os “vestiu do pé até à cabeça” de forma vistosa, com cores “prateadas e douradas”, isto é, com escamas brilhantes e vistosas, que perduram intemporalmente (“vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas.”).

            De novo, Vieira termina o capítulo com o exemplo de Santo António que, ao contrário dos peixes e dos homens, nunca se deixou iludir pela vaidade, recusou galas e vaidades, trocou a riqueza pela simplicidade (“Sendo moço e nobre, deixou as galas (…), trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e depois (…) trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda.”) e, por isso, atingiu a santidade. De facto, Santo António é o exemplo vivo de alguém que se opõe à vaidade: sendo rico, vestindo-se bem, ao converter-se, ao mudar de vida chamado por Deus, alterou a sua indumentária, passando a vestir-se humilde e pobremente.

            Assim, com esta postura simples e humilde, Santo António conseguiu converter muitos homens que o escutaram: “Com aquela corda e com aquele pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.”

            Tal como sucedeu na primeira repreensão, Vieira faz uso de uma lógica de argumentação apuradíssima. De facto, o orador expõe a repreensão e depois comprova-a como fez com a primeira repreensão: dá o exemplo dos peixes que caem tão facilmente no engodo da isca, passa em seguida para o exemplo dos homens que enganam facilmente os habitantes do Brasil e para a facilidade com que estes se deixam enganar. A crítica à exploração é cerrada e implacável. Conclui, respondendo à interrogação que fez, afirmando que os peixes são muito cegos e ignorantes e apresenta, em contraste, o exemplo de Santo António, que nunca se deixou enganar pela vaidade do mundo, fazendo-se pobre e simples, e assim pescou muitos para a salvação. Ou seja, em vez de ser «pescado», foi ele que «pescou» várias pessoas para as conduzir ao caminho da virtude.

segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Mens ag|itat mol|em - Parte III


Serebriakova - uma vida, uma obra

     Este post é da autoria de Beatriz, uma professora de Filosofia de Setúbal, que possui um blogue onde escreve sobre diversos assuntos da atualidade e/ou do seu interesse: IP azul.

    Neste caso, trata-se da divulgação de um nome da pintura ucraniana desconhecido para o comum dos mortais: Zinaida Serebriakova. O post original é este: Serebriakova - uma vida, uma obra.


    Zinaida Lanceray nasceu em 1884, no Império Russo, perto de Kharhov, na atual Ucrânia, numa família artística.

    O seu pai era escultor, o seu avô um famoso arquiteto e o seu tio um pintor, o que significa que era originária de uma família de artistas. Ela seguiu os seus passos e estudou arte desde muito jovem.

Foi pupila do mestre Ilya Repin (1844 - 1930), com quem aprendeu sobre o Realismo, e mais tarde viajou para a Europa, onde estudou em França e na Itália.







    Nos seus quadros de Paris desta época, podemos ver que Serebriakova foi influenciada também pelo Pós-Impressionismo.







    Desde tenra idade, interessou-se pela vida das pessoas comuns, dos camponeses, dos pastores e pescadores e do mundo agrícola. Este era um tema ao qual voltaria vezes sem conta ao longo da sua vida.





    Em 1905, Zinaida casou com Boris Serebriakov e, durante a década seguinte, teve quatro filhos.

    Este acontecimento marcou o início dos seus chamados "Anos Felizes", caracterizados por outro tema que dominaria a sua carreira: a família.
    





    Serebriakova também pintou autorretratos. Com toda a sua vivacidade e autenticidade, constituem provavelmente o seu melhor trabalho.















    Porém, acima de tudo, pintava os filhos, fosse ao pequeno-almoço, de manhã, ou todos juntos a jantar.

 




   


    Serebriakova enviou o seu Autorretrato na Mesa de Toilette para uma exposição em 1909,tendo sido recebido com aclamação pela crítica. Mesmo nessa altura, a sua expressão surpreendentemente moderna foi um sucesso.

 

    Juntamente com Outono Verde e Rapariga Camponesa, os três quadros foram leiloados com sucesso.

    
    A partir de 1914, Serebriakova começou a atingit a plena maturidade artística e gozou dos anos mais bem sucedidos da sua carreira, com pinturas como Harvest (1915) e Bleaching Linen (1917).

    Estava pronta para se tornar parte da Academia de São Petersburgo.

    Porém, tudo mudou com a Revolução Russa de 1917.



    O primeiro problema foi artístico: o seu estilo pessoal já não era bem-vindo no mundo da arte vanguardista, suprematista e construtivista favorecido pela Rússia soviética.

    Em cima disso, ocorreu uma tragédia pessoal: o seu amado marido Boris foi preso em 1919 e morreu de tifo na prisão.

    Sem os seus rendimentos e com as comissões a diminuir no novo regime, as coisas tomaram um rumo descendente.
    Serebriakova era, agora, uma mãe viúva com quatro filhos para criar.

    Deixaram a propriedade familiar - que tinha sido saqueada - e mudaram-se para um apartamento em Petrogrado.

    Ela já não tinha dinheiro para comprar tintas a óleo, mas continuou a pintar, interessando-se também pelo ballet e pelo teatro, que a sua filha Ekaterina tinha começado a frequentar.






    Continuou igualmente a pintar os seus filhos, agora com uma certa melancolia, em vez da alegria mais pura anterior.










    Em 1924, viajou para Paris, na esperança de conseguir lá comissões e, assim, angariar dinheiro suficiente para sustentar a sua família.

    Mal sabia Serebriakova que as viagens seriam, em breve, restringidas pelo governo soviético.

    Deste modo, foi-lhe recusada a reentrada na Rússia e tornou-se uma exilada.






    No entanto, Serebriakova encontrou trabalho e comunidade em Paris com um grupo de emigrados russos e enviava os seus proventos para casa.

    Em 1926, o seu filho mais novo, Alexandre, foi autorizado a juntar-se a ela e, em 1928, Ekaterina.


    





    Aqui a vemos num autorretrato de 1930, com um ar algo mais cansado do que nos seus retratos anteriores.











    Visitou Marrocos várias vezes, países que lhe deixou uma grande impressão.

    Lá, encontrou um grande prazer em pintar o povo comum, como outrora tinha feito na Rússia.













    De regresso a França, Serebriakova continuou a pintar as pessoas comuns, fossem pescadores ou padeiros, em paralelo com retratos para clientes endinheirados.




  

    Nesta era do seu exílio parisiense, vemos um outro tema emergir mais plenamente na obra de Serebriakova: a mulher nua.
    A temática já lá estava há muito tempo, como com Bather (1911), mas durante as décadas de 1920e 1930 trabalhou nela com mais frequência e de forma muito diferente daquela de que os homens se socorrem para pintar o mesmo tema.



   

    Durante a Segunda Guerra Mundial, devido à sua nacionalidade e ao contacto frequente com a sua família na União Soviética, Serebriakova tornou-se suspeita na Paris ocupada pelos nazis.

    Foi forçada a renunciar à cidadania soviética e, aparentemente, a qualquer esperança de ver a restante família novamente.


    A vida e a carreira de Zinaida Serebriakova foram longas e voláteis, afetadas quer pelas Guerras Mundiais quer pela tragédia pessoal. No entanto, também se tornou uma artista de sucesso e aclamada pela crítica.

    Nesta pintura, vemo-la em novo autorretrato, este bastante mais feliz, datado de 1956.

    Quando a pintora caminhava já para o final da vida, graças a Khrushchev, a sua filha Tatiana recebeu autorização para visitar a mãe em Paris, em 1960. Deste modo, reuniram-se ao fim de trinta e seis anos de separação. Zinaida contava 76 anos e a filha 50.

    Em 1966, realizou-se em Moscovo uma vasta exposição do trabalho de Serebriakova que foi um sucesso crítico e comercial. A pintora viajou até lá, regressando a solo russo pela primeira vez em quase quatro décadas.

    Zinaida Serebriakova regressou a Paris e morreu lá no ano seguinte, em 1967, com 82 anos.

    Seja nas representações da sua família, do povo comum, ou de si própria, poucos pintores conseguiram alguma vez tal ternura, intimidade, vivacidade e honestidade.
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