Português: Os Lusíadas
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quarta-feira, 2 de junho de 2021

Episódio de Leonardo

. Paráfrase

Leonardo, soldado bem-disposto, manhoso (= com qualidades), cavaleiro e dado a amores, a quem Amor não dera apenas um desgosto, mas sempre o tratara mal, e que já sabia que não era feliz em amores, porém ainda não perdera a esperança de mudar a sua sorte.
Quis o Destino que Leonardo corresse atrás de Efire, exemplo de beleza, que se mostrava mais esquiva que qualquer uma das outras ninfas. Já cansado, enquanto corria, dizia-lhe: “Ó formosura em quem não fica bem a crueldade, já és dona da minha vida e alma, espera também pelo meu corpo.
Todas se cansam de correr, Ninfa pura, rendendo-se à vontade do inimigo, e só tu foges de mim? Quem te disse que era eu? Se to disse a má sorte que sempre me acompanha, não acredites nela, porque eu fui enganado sempre que nela acreditei.
Não canses, que me cansas! Se foges de mim para que eu te não possa tocar, espera por mim, e verás que, mesmo que esperes, eu nunca te alcançarei. Espera, e vamos ver que subtil forma encontra agora a minha pouca sorte para me escapar. E no fim verás “tra la spica e la man qual muro he messo” (entre a espiga e a mão levanta-se sempre um muro, ou seja, quando parece que está +restes a alcançar-se o que se deseja, surge um obstáculo intransponível).
Não fujas! E também não fuja o breve tempo da tua formosura. Só com abrandar o passo, tu poderás conseguir o que nunca conseguiram imperadores e exércitos: vencer a força dura do Destino, que sempre me perseguiu em tudo o que desejei.
Tomas o partido da minha desgraça? É fraqueza dar ajuda ao mais forte contra o mais fraco. Levas contigo o meu coração? Larga-o e correrás mais depressa. Não te sentes carregado pelo peso desta alma que levas enredada nos teus cabelos de ouro? OU, depois de a prenderes, mudaste-lhe o Destino, que passou a pesar menos?
Nesta única esperança de vou seguindo: ou tu não aguentas o peso da minha alma, ou a força da tua beleza lhe mudará a triste e dura estrela. Se mudar, não fujas mais, porque Amor te ferirá, e então serás tu a esperar-me. E, se me esperas, nada mais espero.”
A linda ninfa fugia, já não tanto para se fazer difícil, como a princípio, mas para ir ouvindo o doce canto e os queixumes apaixonados de Leonardo. E, já toda banhada de riso e de alegria, deixa-se cair aos pés do vencedor, que se desfaz em puro amor.
Toda a floresta ressoa de beijos famintos, de mimoso choro, de zangas depressa convertidas e risinhos. O que mais aconteceu naquela manhã e na sesta, é melhor experimentá-lo do que imaginá-lo, mas imagine-o quem o não pode experimentar.
Desta forma, já juntas as ninfas com os navegantes, enfeitam-nos com coroas de flores, louro e de ouro. Dão-se as mãos como esposas, e com palavras formais e estipulantes, prometeram-se eterna companhia na vida e na morte.

. Localização: canto IX.

. Plano narrativo: plano da viagem e da mitologia..

. Narrador: o Poeta – narrador heterodiegético.

. Contextualização do episódio: após o desembarque dos Portugueses na Ilha dos Amores, um dos marinheiros, Leonardo, persegue uma ninfa, que parece ser mais difícil de apanhar do que as restantes.

. Estrutura interna

. 1.ª parte (IX, est. 75-76, vv. 1-5) – Retrato de Leonardo e Efire:
- soldado destemido, alegre e bem disposto (“soldado bem disposto, / Manhoso, cavaleiro e namorado);
- manhoso, “espertalhão”;
- cavaleiro;
- namorado apaixonado, galante, sempre disponível para o amor apesar de nunca ter tido sorte no mesmo / mas com pouca sorte ao amor (por isso habituado a sofrer, mas com esperança de ver mudada a sua má sorte amorosa) (“com amores mal afortunado”);
- namoradeiro, pois procura insistentemente conquistar a ninfa Efire, que simula furtar-se à sua sedução;
- audacioso, valente e corajoso;
- muito persistente e persuasivo.

Note-se como Leonardo reflete o perfil que Camões apresenta de si mesmo na sua lírica: a disponibilidade para o Amor, a má sorte amorosa, a impossibilidade de ser feliz e a capacidade de manuseamento das palavras.
De facto, Leonardo já contara com várias desilusões amorosas ao longo da sua vida, sendo que cada vez que se apaixonava era abandonado pela sua amada, no entanto jamais perde a esperança de um dia ser correspondido. E, de facto, quando a ninfa se lhe rende, Leonardo vê o seu fado de ser infeliz no amor mudar.

         Efire é uma ninfa muito bela e sedutora que capta a atenção de Leonardo, que a persegue, tal como todos os seus companheiros perseguiam as suas enamoradas.

. 2.ª parte (IX, v. 6 est. 76-81) – Discurso de Leonardo.
         Enquanto persegue a ninfa Efire, Leonardo procura argumentos que a convençam a parar a sua fuga:
(1) Todas as outras ninfas se cansam de correr, só ela resiste.
(2) A ninfa foge porque já deve conhecer a sua fama de infeliz no amor.
(3) A má sorte é tanta que, mesmo que a alcance, alguma coisa o impedirá de a tocar.
(4) A ninfa é a única que poderá mudar a sua má sorte no amor.
(5) É fraqueza colocar-se ao lado da sua infelicidade, já que ela lhe roubou o coração; se quiser fugir, deve devolver-lho, pois ele só pode pesar-lhe.
(6) É a esperança de ela mudar a sua má sorte, amando-o também, que o faz correr.

. 3.ª parte (IX, est. 82) – Retrato de Efire:
                Efire é uma das mais belas ninfas (“exemplo de beleza” – est. 76, v. 2; “bela Ninfa” – est. 82, v. 1), de cabelo louro (“fios de oiro reluzente” – metáfora), formosa (“Ó formosura”) e pura (“Ninfa pura” – apóstrofe – est. 77, v. 1).
                A ninfa finge fugir a Leonardo, mas, após longa perseguição, deixa-se cair “aos pés do vencedor / Que todo se desfaz em puro amor”, conseguindo, assim, mudar o “seu fado” de ser infeliz no amor.

. 4.ª parte (IX, est. 83) – Descrição do enlace amoroso.
                Entre as ninfas e os marinheiros portugueses desenrolam-se jogos amorosos: “famintos beijos na floresta”, “mimoso choro que soava”, “afagos tão suaves”, “risinhos alegres”, “Vénus com prazeres inflamava”.
                Por outro lado, a ligação amorosa entre as ninfas e os portugueses apresenta semelhanças com a união conjugal, o casamento. De facto, entre ambos

. 5.ª parte (IX, est. 84):
. Coroação dos marinheiros como heróis, recebendo ouro e louro;
. Celebração da cerimónia de casamento dos marinheiros com as ninfas, representado pelas coroas de flores, louro e ouro, pelas mãos dadas e pelas juras de amor eterno.



sábado, 20 de fevereiro de 2021

Análise da Dedicatória de Os Lusíadas

 
A Dedicatória não era um elemento obrigatório do género épico. Camões, contudo, faz questão de dedicar o poema a D. Sebastião, o rei que então governava Portugal e que o Poeta vê como garante da continuidade da grandeza de Portugal (dilatação da Fé do Império).

 
 
Estrutura interna
 
                A Dedicatória segue a estrutura típica do género oratório.

 
Exórdio (est. 6 a 8) – O Poeta dirige-se a D. Sebastião declarando-o:

- o enviado providencial para assegurar a independência de Portugal, continuando a sua grandeza através da dilatação da Fé e do Império (est. 6);

- o descendente de uma dinastia mais importante do que as mais importantes da Europa;

- o detentor de um império imenso e o baluarte contra os seus inimigos, os ismaelitas e os turcos.

 
▪ A transmissão da mensagem da 1.ª parte assente nos seguintes recursos estilísticos:

- o uso da segunda pessoa do plural «vós»;

- a utilização de apóstrofes e perífrases:

. “… ó bem nascida segurança, / Da lusitana antiga liberdade, / E não menos certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade…”;

. “… ó novo temor da maura lança, / Maravilha fatal da nossa idade…”;

- a metáfora: “Tenro e novo ramo” (I, 7, v. 1) – descendente muito jovem;

- a sinédoque:

. “maura lança” (I, 6, v. 5) – o exército dos mouros;

. “Do torpe Ismaelita” (I, 8, v. 6) – os mouros, descentes de Ismael, filho de Abraão e Agar, daí também o nome “agarenos”;

. “Do Turco oriental e do Gentio” (I, 8, v. 7) – os bárbaros, os infiéis

 
Exposição (est. 9 a 11) – O Poeta, recorrendo a verbos no imperativo (“inclinai”, “ponde”, “ouvi”), pede ao rei que atente na obra que, desinteressada e patrioticamente, elaborou e lhe dedica, na qual verá retratados os grandes feitos dos portugueses, reais e não fingidos, bem superiores aos narrados nas antigas epopeias (esses sim “façanhas, / Fantásticas, fingidas, mentirosas” – Orlando Enamorado, Orlando Furioso, Chanson de Roland), de tal forma que o rei se pode julgar mais feliz como rei de tal gente do que como rei do mundo inteiro.

 
▪ Da mensagem transmitida pelo Poeta a D. Sebastião, conclui-se que Os Lusíadas são fonte de glória tanto para Camões como para D. Sebastião. Por exemplo, nos primeiros quatro versos da estância 10, Camões afirma que foi levado a escrever a obra não pelo desejo de um prémio vil / material, mas de um prémio “alto e quase eterno”. Esse prémio é a fama de grande poeta entre os portugueses (“ser conhecido por um pregão do ninho meu paterno”). A obra é também fonte de glória para D. Sebastião, quando Camões afirma que aquele, ao ler nela os grandes feitos dos portugueses, poderá julgar que é melhor ser rei dos portugueses do que do mundo todo.

 
Confirmação (est. 12 a 14) – Camões concretiza o que disse anteriormente, contrapondo a cada herói antigo um herói português (est. 12 e 13), e elogia os mais conhecidos vice-reis da Índia e todos os que, pelos feitos cometidos “nos Reinos lá da Aurora” (Oriente), atingiram a imortalidade.

 
▪ A nível estilístico, é de salientar o recurso aos seguintes recursos:

- perífrase: “E aquele que a seu Reino a segurança / Deixou…” (I, 13 – vv. 5-6) – D. João I;

- hipérbole, prosopopeia e sinédoque: “… por quem sempre o Tejo chora” (I, 14 – v. 6).

 
Peroração (est. 15-17) – O Poeta elogia o novo rei (“Sublime Rei”) e incita-o a continuar a guerra contra os Mouros, na terra e no mar, na África e no Oriente, prevendo para ele tais vitórias que encherão de júbilo as almas dos seus avós (D. João III e Carlos V), ao verem as suas glórias renovadas.

 
Conclusão (est. 18) – Camões remova o pedido inicial de aceitação da sua obra (“novo atrevimento”), em que o Rei poderá observar a forma como os navegadores venceram os mares e imaginá-los como Argonautas e o que poderão vir a fazer sob o seu impulso.

 
 
NOTAS

 
1. Podemos concluir então que, nestas treze estâncias, o vocativo e a frequência do modo imperativo centrados na pessoa do destinatário (o rei D. Sebastião) condicionam o predomínio da função apelativa, sem dúvida a mais adequada à realização do principal desejo do emissor: a oferta dos seus préstimos para cantar os heróis do seu povo, isto é, que o jovem soberano aceite o seu canto heroico do “peito ilustre lusitano” como um contributo para a glória da Pátria e como um estímulo para, sob o seu impulso, novos grandes feitos virem a ser cometidos.

 
2. Por outro lado, novamente estabelece a comparação (a partir da estância 11) entre os Portugueses e os heróis da Antiguidade, com o objetivo de enaltecer e engrandecer os feitos lusos.

 
3. Também na estância 18 se pode constatar que a obra é fonte de glória para o poeta e para D. Sebastião, quando Camões imagina o rei a ver no seu poema os novos argonautas, como se fossem já os seus. Esta estância, assim como a última d’ Os Lusíadas (IX, 156), pressagiam uma grande glória para D. Sebastião e uma nova grande epopeia para cantar os seus feitos.

 
4. Nota-se uma estreita ligação entre o conteúdo das estâncias 11 a 14 e o conteúdo da Proposição. Com efeito, Camões afirma, nas três primeiras estâncias da obra, que os feitos dos portugueses suplantam os dos maiores heróis da Antiguidade (“Cesse tudo o que a musa antiga canta, / Que outro poder mais alto se alevanta”); também nas estâncias 11 a 14 da Dedicatória considera que os feitos dos lusitanos suplantam as antigas, ainda que fossem verdadeiras, contrapondo a cada herói antigo um herói português.

 
5. D. Sebastião é visto como monarca poderoso, como representante do povo predestinado pelo Fado ao cometimento de grandes feitos, num império já imenso, mas que ele acrescentaria ainda, dilatando a Fé e o Império.

      O louvor de D. Sebastião está, portanto, em ser apresentado como um jovem rei de quem o povo português tudo espera, rei que a providência faz surgir para retomar a grandeza dos feitos portugueses. A ideia do jovem rei como salvador da pátria reflete a crise em que a nação já se encontrava, mas estava tão arreigada no povo que não desapareceu da sua alma nem com a morte do rei. O sebastianismo é precisamente isso: a imagem de um rei fatalmente destinado a ser salvador de uma nação em crise.

 

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Análise da Proposição de Os Lusíadas

 Introdução
 
    A Proposição, um dos elementos estruturais obrigatórios das epopeias, ocupa as três estrofes iniciais d’Os Lusíadas e nela Camões apresenta a matéria, o assunto que se propõe cantar: os heróis, os navegadores, os reis que dilataram “a Fé e o Império” e, de um modo geral, todos aqueles que «se vão da lei da Morte libertando”.

 
 
Método de abordagem e de análise da Proposição

    As frases / orações da Proposição, especialmente das duas estrofes iniciais, não seguem a ordem tradicional e característica da língua portuguesa. Assim, para melhor se iniciar a abordagem do texto, convém atender ao seguinte:

1.º) Ler o penúltimo verso da segunda estância

“Cantando espalharei por toda parte…”

2.º) Prosseguir a leitura pelo primeiro verso da primeira estância;

. “As armas e os Barões assinalados”;

. “E também as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando / A Fé, o Império”;

. “E aqueles que por obras valerosas / Se vão da lei da Morte libertando”.

3.º) Terminar a leitura com o último verso da segunda estância:

“Se a tanto me ajudar o engenho e a arte.”

 
 
 
Estrutura interna
 
• 1.ª parte (estâncias 1 e 2) – Apresentação do assunto do poema.

 
Proposição (intenção) do poeta (versos 15 e 16):

 
▪ O poeta propõe-se cantar e divulgar (forma verbal no futuro «espalharei») os heróis portugueses, o povo português (“o peito ilustre lusitano”).

 
Natureza do canto: o canto será universal (“por toda a parte”).

 
Condição: o poeta necessita de possuir arte e talento para produzir o canto.

 
Quem vai Camões cantar?

 
1.º) Os guerreiros e...

 
Conclusão da análise - clicar no link: análise-da-proposição.

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Os Lusíadas: Canto V: estâncias 92 a 100

. Contextualização
 
            Depois de escaparem da cilada preparada por Baco em Mombaça, os navegadores portugueses chegam a Melinde, cidade do Quénia, graças ao auxílio de Vénus.
            Aí, são recebidos pelo rei, que pede a Vasco da Gama que lhe fale do seu país e lhe conte a história de Portugal e da viagem que levou os portugueses a paragens tão remotas. Vasco da Gama acede ao pedido e inicia um longo relato, no qual apresenta a pátria e, em analepse, narra a história nacional desde a sua fundação lendária até ao reinado de D. Manuel e descreve os sucessos e insucessos da sua viagem, de Lisboa a Melinde.
            Assim, narra episódios diversos, como o Fogo de Santelmo e a Tromba Marítima, e o enfrentamento de outros obstáculos à partida difíceis de superar por parte dos marinheiros destemidos e ousados, como a hostilidade dos nativos, a fúria de monstros, como o Adamastor, ou a doença e a morte provocadas pelo escorbuto.

 
. Tema da reflexão: a desvalorização da poesia e da cultura pelos portugueses.
 
 
. Acontecimento motivador da reflexão: o fim da narrativa de Vasco da Gama sobre a História de Portugal e a aventura marítima de Lisboa até Melinde.
 

. Análise estância a estância
 
. Estância 92
 
. É agradável (“doce”) 


Continuação da análise: aqui.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

"O português como língua de Camões é um mito"

     Em 735 adjetivos usados por Luís de Camões n'Os Lusíadas, apenas um é uma criação nova do poeta, uma estreia na história da língua portuguesa. É a palavra "insofrido", que significa "impaciente".
     Esta contabilidade foi feita pelo linguísta Fernando Venâncio, que hoje apresenta alguns resultados da sua investigação dedicada àquela que será a primeira história do léxico português numa aula do curso de Estudos Camonianos da Universidade Nova de Lisboa, às 18h. "A primeira descoberta é que Camões inovou muito pouco", explica numa entrevista feita por telefone e email a partir de Amesterdão, onde é investigador na universidade.
     "O uso que Camões faz do léxico exclusivo português já conhecido é extremamente moderado e, mais do que tudo, as exclusividades portuguesas introduzidas pela sua obra foram residuais. Dir-se-ia que Camões não acreditou numa língua portuguesa de perfil autónomo."
     Sem ser n'Os Lusíadas, Fernando Venâncio encontrou apenas outro adjetivo novo de origem autóctone na lírica camoniana, desta vez "famulento", que significa "faminto".
     Já as criações castelhanas estreadas naquele poema épico, publicado em 1572, são cinco (e estamos a contar sempre só adjetivos, palavras normalmente utilizadas para testar a inovação numa língua): "alvoroçado", "disfarçado", "enamorado", "rebelde" e "sotoposto".
     Depois foram ainda enumerados os adjetivos latinos exclusivos do português, que atingem o número de treze ("abominoso", "cintilante", "celso", "fulvo", "humílimo", "longínquo", "piscoso", "crástino", "equório", "estelante", "frondente", "inconcesso", "prisco"). Entre estes, só dois - "longínquo" e "cintilante" - são realmente importantes, "o resto é extravagante e os adjetivos não voltam praticamente a ser usados".
     Mas os adjetivos latinos já correntes em castelhano estreados por esta obra-prima da literatura renascentista europeia, que conta em verso a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, sobem até aos 54: "aéreo", "aquoso", "árido", "aspérrimo", "áureo", "belígero", "canino", "canoro", "cerúleo", "ciente", "cônsono", "diáfano", "dissonante", "espumante", "estipulante", "estupendo", "famélico", "ferino", "fétido", "fradulento", "fugaz", "fulgente", "fulminante", "furibundo", "hispano", "impudico", "inerme", "inerte", "infido", "inúmero", "inusitado", "lácteo", "malévolo", "náutico", "pirático", "plácido", "plúmbeo", "preeminente", "prestante", "proceloso", "pudibundo", "radiante", "rapace", "régio", "rotundo", "rutilante", "salso", "sanguinoso", "sitibundo", "sonoroso", "truculento", "vasto", "vendível", "virgíneo". Uma lista "extensa" que mostra que Camões transportou para a escrita portuguesa "o que de melhor, mais sólido e mais expressivo já circulava em castelhano em matéria de latinismos". Metade destes adjetivos "revelaram-se aquisições felizes e definitivas", tão duradouros como os outros que o poeta utiliza e que já vêm da Idade Média.
     Até aqui o que faltou numa língua que tem sido intensamente escrutinada foi estudá-la numa perspetiva histórica, "comparando-a com a dos contemporâneos e de épocas anteriores". O professor da Universidade de Amesterdão diz que é assim que se consegue perceber que a inovação está lá, "mas não é portuguesa".
     "Os cultismos que Camões utiliza são já correntes em castelhano", conhecidos na época por qualquer português instruído. "Camões não parece acreditar num português castiço, autónomo, irredutível". Empenha-se "numa modernização do português culto", mas "com recurso a criações castelhanas e ao latim do castelhano". E isso é "uma absoluta novidade, que desautoriza os nossos mitos criados à volta de uma 'língua de Camões', um mantra sem base material".
     Se o português era a língua dos marinheiros e dos comerciantes, o castelhano era a grande língua internacional da classe culta portuguesa e europeia. "Os portugueses estavam muito familiarizados com o castelhano. Isso vale para todo o português com contactos na corte, nas universidades. A língua culta, aquela em que as classes instruídas se exprimem é muito devedora do castelhano".
     Fernando Venâncio dá o exemplo de Catarina de Áustria, que foi rainha de Portugal durante 53 anos e que nunca escreveu uma linha de português. "A verdade é que a língua da corte era o castelhano. Depois havia muitos professores, pregadores, confessores que vinham de Castela e isso obrigava muita gente, ativa ou passivamente, a exprimir-se ou a dominar o castelhano. Portanto, a presença do castelhano é imensa. Vemos isso naquilo que ficou, nos livros de piedade, nos dicionários. Tudo isso é castelhano ou traduzido do castelhano com muitos castelhanismos." O primeiro dicionário de português é de 1562, quando Camões já teria quase 40 anos.
     Assim, era normal que quem quisesse ser erudito e moderno o fizesse sob uma influência castelhana. A preocupação de Camões foi, então, tudo o parece indicar, "iberizar o português", de modo a que a língua funcionasse internacionalmente. "Modernizou o português e fê-lo, inteligentemente, segundo o modelo castelhano, para poder ser lido por espanhóis e pela Europa culta da época."


Movida em Goa

     Esta influência linguística do castelhano em Camões já foi anteriormente estudada, mas de uma forma limitada, tendo sido identificado na lírica de Camões algum aproveitamento lexical de célebres poetas castelhanos, como Juan de Mena e Garcilaso de la Vega, ou ainda de Juán Boscán, n'Os Lusíadas. Venâncio cita o trabalho dos anos 40 de Vieira de Lemos e Martínez Almoyna e, mais recentemente, o de Nicolás Extremera Tapiá. "Mas essa é uma parte ínfima do aproveitamento lexical que Camões fez do que já estava disponível em castelhano. Esta minha investigação é realmente o Camões todo. A novidade é a espetacular extensão do fenómeno."
     Camões não está sozinho neste projeto linguístico, como lhe chama o investigador. Fernando Venâncio encontrou no jesuíta Luís Fróis "um duplo linguístico de Camões", porque o missionário também transpôs para português toda a riqueza latina que os castelhanos já usavam. Este homem, que sai de Lisboa aos 16 anos para nunca mais regressar, depois de chegar à Ásia em 1548, é "o mais dotado 'jornalista' português no Oriente" e as suas cartas sobre a Índia e sobre o Japão foram durante décadas "lidas, relidas e disputadas logo que chegavam a Portugal". Também ele, nitidamente, "investia numa 'iberização' da língua".
     Estão os dois a fazer o mesmo em simultâneo. Apesar de terem percursos muito diferentes, ambos passam por Goa, que era por volta de meados do século XVI "um centro cultural fortíssimo". "De certeza que absorvem um clima cultural, a que eu chamei 'movida', que já não havia em Portugal. Uma imensa liberdade criativa e mundana que contrasta com o controlo social da época de D. João III e que durou  até à chegada da Inquisição." O investigador diz que é "impensável" que Camões e Fróis, que conviveram oito anos em Goa, entre 1554 e 1562, "não se tenham conhecido, e até culturalmente estimulado". Todo este projeto linguístico de Camões e de Fróis, Fernando Venâncio tinha-o mostrado a Vasco Graça Moura, antes da morte do poeta e camonista, que ficou, descreve o professor universitário, "assombrado".
     A partir de hoje o investigador vai com certeza testar a tese com outros camonistas. A história do léxico português, diz, é provável que seja publicada já para o ano no Brasil. Se não há quase nenhuma inovação lexical em Camões no português autóctone, isso não diminui a grandeza da sua criação literária. "E Camões é, sem a menor dúvida, um grande artista."

          Isabel Salema, in Público (20 de abril de 2016)

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Análise do Episódio de Inês de Castro


Episódio de Inês de Castro

. História de Inês de Castro

                D. Inês de Castro era uma fidalga galega, de rara formosura, que fez parte da comitiva da infanta D. Constança de Castela, quando esta, em 1340, se deslocou a Portugal para casar com o príncipe D. Pedro (1320-1367). A beleza singular de D. Inês despertou desde logo a atenção do príncipe, que veio a apaixonar-se profundamente por ela. Desta paixão nasceu entre D. Pedro e D. Inês uma ligação amorosa que provocou escândalo na Corte portuguesa, motivo por que o rei resolveu intervir, expulsando do reino Inês de Castro, que veio a instalar-se no castelo de Albuquerque, na fronteira de Espanha. D. Constança morreu de parto em 1345 e a ligação amorosa entre D. Pedro e D. Inês estreitou-se ainda mais: contra a determinação do rei, D. Pedro mandou que D. Inês regressasse a Portugal e instalou-a na sua própria casa, onde passaram a viver uma vida de marido e mulher, de que nasceram quatro filhos.
                Os conselheiros do rei aperceberam-se das atenções com que o herdeiro do trono português recebia os irmãos de D. Inês e outros fidalgos galegos, chamaram a atenção de D. Afonso IV para aquele estado de coisas e para os perigos que poderiam advir dessa circunstância, uma vez que seria natural antever a possibilidade de vir a criar-se uma influência dominante de Castela sobre a política portuguesa. E persuadiram o rei de que esse perigo poderia afastar-se definitivamente, se se cortasse pela raiz a causa real desse perigo: a influência que D. Inês exercia sobre o príncipe D. Pedro, que um dia viria a ser rei de Portugal. Para isso seria necessário e suficiente eliminar D. Inês de Castro.
                O problema foi discutido na presença dos conselheiros do rei em Montemor-o-Velho, e aí ficou resolvido que Inês seria executada sem demora. Quando D. Inês soube desta resolução, foi ter com o rei, rodeada dos filhos, para implorar misericórdia, uma vez que ela se considerava isenta de qualquer culpa. As súplicas de Inês só momentaneamente apiedaram D. Afonso IV, que entretanto se deslocara a Coimbra para que se desse cumprimento à deliberação tomada. E a execução de D. Inês efetuou-se em 7 de janeiro de 1355, segundo o ritual e as práticas daquele tempo. Anos depois, em 1360, D. Pedro I, já então rei de Portugal, jurou, perante a sua corte, que havia casado clandestinamente com D. Inês um ano antes da sua morte.
www.infopedia.pt


. Contextualização

                O episódio de Inês de Castro é integrado em Os Lusíadas logo após à batalha do Salado.


. Estrutura interna

1. Introdução e Antecedentes da Ação (estâncias 118-119)

. Plano narrativo: História de Portugal.

. Articulação com o Plano da Viagem: o episódio está encaixado no plano fulcral da obra. Durante a viagem, os marinheiros param em Melinde e o rei pede a Vasco da Gama que lhe conte a História do seu povo.

. Narrador: Vasco da Gama.

. Ação: o episódio de Inês de Castro ("O caso triste, e dino da memória / [...] / Aconteceu da mísera e mesquinha / Que depois de ser morta foi Rainha." ‑ est. 118, vv. 5, 7-8 ‑ perífrase: com este recurso, o poeta identifica a personagem e a singularidade da sua morte).
Alude-se, neste passo, à lenda segundo a qual D. Pedro I terá coroado Inês de Castro rainha após a sua morte.
De facto, em junho de 1360, o monarca declarou perante testemunhas que, aproximadamente sete anos antes, recebera como legítima mulher a D. Inês de Castro. Posteriormente, as testemunhas do ato depuseram em Coimbra e, na estátua do túmulo, D. Pedro colocou-lhe a coroa de rainha.

. Tempo histórico: reinado de D. Afonso IV, tempo de paz em Portugal, que se seguiu a um tempo de guerra, no qual interveio o rei: "Passada esta tão próspera vitória" ‑ referência à vitória obtida pelos cristãos na Batalha do Salado, travada a 30 de outubro de 1340 contra os Mouros, na qual D. Afonso IV participou com o exército português, em auxílio de Afonso IX de Castela. O episódio terá, portanto, decorrido 15 anos após essa batalha: 1355.

. Espaço: "Tornado Afonso [Afonso IV, o Bravo ‑ 1291-1357] à Lusitana terra".

. Dimensão trágica do episódio e da morte: “o caso triste”, “dino de memória”, “sepulcro”, “desenterra”, “mísera e mesquinha”, “morta”.

. O narrador identifica o Amor como a causa da morte de Inês de Castro (est. 119): “Tu, só tu, puro amor (…) / (…) / Deste causa à molesta morte sua” (vv. 1 e 3).

. Caracterização do Amor (personificado e adjetivado de forma negativa):
‑ causa exclusiva daquela tragédia (“Tu, só tu” – v. 1; reiteração do pronome pessoal e apóstrofe);
‑ “puro”;
‑ cruel (“com força crua”);
‑ “fero” (adjetivação anteposta);
‑ devorador insaciável da alegria humana, alimenta-se das lágrimas e do sofrimento dos que amam (“a sede tua / Nem com lágrimas se mitiga” – vv. 5-6 – metáfora e hipérbole);
‑ “áspero e tirano” (dupla adjetivação);
‑ sanguinário, exige sacrifícios humanos: “É porque queres, (…) / Tuas aras banhar em sangue humano.” (vv. 7-8).


2. Desenvolvimento – Ação central (estâncias 120 a 132)

. Localização espacial:
‑ Coimbra (“Nos saudosos campos do Mondego” – est. 120,v. 5);
‑ espaço idílico, de calma e sossego, propício ao amor.

. Retrato de Inês de Castro (est. 120-121):
físico:
‑ mulher linda (“linda Inês” – apóstrofe);
‑ “fermosos olhos” (est. 120, v. 6);
‑ jovem (“De teus anos colhendo doce fruito” – est. 120, v. 2).

psicológico:
‑ despreocupada e sossegada (“posta em sossego” – est. 120, v. 1);
‑ apaixonada, imersa no amor (“Naquele engano da alma, ledo e cego” – est. 120, v. 3 – dupla adjetivação);
‑ feliz (“ledo” – v. 3);
‑ sonhadora, alheada da realidade, pensando somente em D. Pedro (“Aos montes insinando e às ervinhas / O nome que no peito escrito tinhas.” – est. 120, vv. 7-8 – personificação);
‑ ingénua, não desconfia da tragédia que se adivinha (“engano de alma, ledo e cego” – est. 120, v. 3; “em doces sonhos que mentiam” – est. 121, v. 5) , preparada pelo Destino (“Fortuna” – v. 4) cruel que a persegue;
‑ saudosa do seu amor (“As lembranças que na alma lhe moravam” – metáfora – est. 121, v. 2);
‑ apesar de separados fisicamente, estavam sempre juntos em sonhos e pensamentos.

. Relação entre D. Inês e a Natureza: a Natureza é amiga e confidente dos sentimentos de Inês de Castro ‑ do amor e da saudade (“Aos montes insinando e às ervinhas / O nome que no peito escrito tinhas.” – est. 120, vv. 7-8). Assim sendo, há uma relação de cumplicidade entre a fidalga e a Natureza que a rodeia.

. Indícios do desenlace trágico da relação amorosa: “Naquele engano da alma, ledo e cego, / Que a Fortuna não deixa durar muito. “‑ est. 120, vv. 3-4; “De noite, em doces sonhos que mentiam” – est. 121,v.5).

. Retrato de D. Pedro:
‑ rei sensato e prudente;
‑ influenciado pela opinião do povo: “respeita / O murmurar do povo e a fantasia / Do filho” (est. 122, vv. 1-2);
‑ incomodado com a atitude do filho, dado que a rejeição de outras mulheres e do casamento gerava comentários e boatos entre o povo;
‑ por isso, determina matar Inês de Castro (“Tirar Inês ao mundo determina” – est. 123, v. 1 – eufemismo) – razão de estado: D. Afonso IV atribui à paixão de D. Pedro e D. Inês a causa da recusa do príncipe em aceitar um casamento mais conveniente para o Estado português;
‑ crê que, dessa forma, terminará com a relação entre ambos (est. 123, vv. 2-4).

‑ D. Afonso IV age por razões de Estado;
‑ a sua ação revela ingenuidade e ignorância relativamente à força do Amor por parte do Poder: crê-se, erradamente, que a morte do ser amado é suficiente para apagar o fogo da paixão.

. Nos quatro versos finais da estância 123, o poeta exprime o seu espanto e questiona a ação do rei, nomeadamente o contraste entre a ação glorioso de D. Afonso IV contra os mouros e o assassinato de uma fraca, indefesa e inocente (interrogação retórica).

. Inês de Castro perante D. Afonso IV – Momento que antecede a execução

. Ao ver Inês de Castro, trazida à sua presença, pelos «horríficos algozes» (adjetivação expressiva), o monarca fica comovido e tende a perdoá-la por piedade. Contudo, é persuadido pelas razões do povo, ainda que «falsas e ferozes”, no sentido da «morte crua» da mãe dos seus netos (“o avô cruel” – est. 125, v. 8). Note-se a insistência na qualidade de avô que condena a mãe dos seus netos e, por extensão, eles mesmos.

. Inês de Castro surge presa (“as mãos lhe estava atando” ‑ est. 125, v. 3), triste, cheia de mágoa e saudade do seu amor e dos seus filhos. De facto, o que lhe dói mais não é a própria morte, mas o facto de, morrendo, deixar os filhos, tão pequenos, órfãos e D. Pedro só (“Do seu príncipe e filhos, que deixava, / Que mais que a própria morte a magoava” – est. 124, vv. 7-8 – comparação).
Na estância 125, é focado, com especial incidência, o seu olhar, que se dirige, em primeiro lugar, para o Céu, raso de lágrimas, como se invocasse Deus como testemunha da sua inocência e, depois, para os filhos (“Que tão queridos tinha e tão mimosos” – a adjetivação e o advérbio de quantidade e grau «tão» salientam o seu lado de mãe excelente – est. 125, v. 6), evidenciando assim o seu amor de mãe que teme a sua orfandade, enquanto se prepara para pedir piedade ao rei.
No fundo, estas duas estâncias destinam-se a preparar a intervenção dramática de Inês de Castro, através da piedade que a personagem suscita, indefesa diante dos “horríficos algozes”, banhada em lágrimas e olhando os filhos inocentes diante do avô cruel, situação e comportamentos que, por outro lado, inspiram compaixão.

. Discurso de Inês de Castro (est. 126 a 129)

                No seu discurso, Inês de Castro apresenta vários argumentos tendentes à sua salvação, procurando suscitar a piedade e a clemência para si e para os seus filhos:

1. Pedido de clemência, por comparação com outros casos: Inês de Castro apela à piedade do rei, afirmando que até os animais ferozes e as aves de rapina demonstram, em várias situações, piedade em relação às situações (est. 126). Ela dá o exemplo das aves de rapina que criaram a “mãe de Nino” (Semíramis) e da loba que alimentou Rómulo e Remo (os fundadores de Roma), animais que mostraram piedade para com os seres humanos.

2. Apelo ao lado humano e à condição de avô:
. Inês apela à humanidade do rei para que a perdoe, pois não é humano matar uma donzela fraca só por esta se ter apaixonado por quem a conquistou (est. 127, vv. 2-4).
. Inês apela à piedade e ao respeito do rei pelos seus filhos, que são, em simultâneo, netos do monarca (est. 127, vv. 5-8).
. Inês apela à clemência do rei, que, tal como soube dar a morte aos mouros, deve saber dar a vida, poupando-a (est. 128, vv. 1-4).

3. Apresentação de uma proposta alternativa: se, apesar da sua inocência, o rei a quiser castigar, implora-lhe o desterro para um lugar longínquo e inóspito (uma região gelada ou tórrida ou para junto de feras), mas que lhe poupe a vida, de forma a poder continuar a amar D. Pedro e a cuidar e criar os seus filhos, que tanto precisam dela e são fruto desse profundo amor (est. 129). Nesta parte final do seu discurso, Inês recupera e reforça uma das ideias já antes apontadas: ela sugere que poderá encontrar nas feras a piedade que não encontra entre os seres humanos, aludindo novamente aos animais selvagens.

                Com este discurso, Inês de Castro procura, por um lado, suscitar a piedade e a clemência de D. Afonso IV para si e para os seus filhos, e, por outro, despertar nele o sentido de justiça e levá-lo a reconhecer que a sua condenação à morte é cruel e injusta.

. Reações ao discurso de Inês de Castro (est. 130)

                Após o discurso de Inês de Castro, D. Afonso IV emociona-se e comove-se com as suas palavras e “Queria perdoar-lhe” (v. 1), “Movido das palavras que o magoam” (v. 2). Atente-se no uso do adjetivo “benino” para o caracterizar, que é revelador da simpatia do narrador para com a figura do monarca. Aliás, ao longo de todo o episódio, é clara a intenção do narrador de aligeirar a responsabilidade do rei na morte de Inês de Castro.
                Porém, o “pertinaz” povo e o destino de Inês, há muito traçado, não permitem que o rei reveja a sua decisão inicial (est. 130, vv. 3-4). Observe-se o recurso à conjunção coordenativa adversativa «mas» (est. 130, v. 3), que introduz uma ideia de oposição relativamente à hesitação do rei e aponta o povo e o destino como os responsáveis pela morte.
                Historicamente, D. Afonso IV não pôde perdoar Inês por razões de Estado: os seus conselheiros convenceram-no de que Inês de Castro representaria um perigo para a independência de Portugal, caso casasse com D. Pedro.
                A apóstrofe final da estância 130, dirigida aos carrascos de Inês (“Contra uma dama, ó peitos carniceiros, / Feros vos mostrais e cavaleiros?”) estabelece um contraste entre a figura de uma dama frágil e indefesa e aos cavaleiros ferozes, os quais, de acordo com o código de cavalaria da época, estariam obrigados a defender e proteger as damas em perigo, frágeis e desamparadas, e não a assassiná-las. De facto, o narrador transmite-nos a imagem dos assassinos como sendo “carniceiros”, “brutos matadores”, isto é, a imagem de cavaleiros indignos dessa condição pela ferocidade e crueldade que mostram perante uma dama frágil e indefesa. Deste modo, os carrascos de Inês são apresentados como ferozes, cruéis e cobardes, pois apenas mostram valentia contra uma dama fraca.
                Observe-se, porém, que o verdadeiro «culpado» desta morte já foi apresentado na estância 119: o Amor, cruel e tirano, que domina e sujeita os corações humanos, gosta de os ver sofrer e gosta de ver o sangue derramado.

. Execução de Inês de Castro

                Na estância 131, Inês de Castro é comparada com Policena, filha de Príamo e Hécuba, ele rei de Troia, e irmã de Heitor e Páris, por quem Aquiles, um dos heróis e guerreiros gregos que cercaram aquela cidade, se apaixonou. Após a morte de Aquiles, à traição, por Páris, Pirro, filho do herói grego, assassinou a jovem sob o túmulo do pai, vingando-o desta forma.
                A comparação inicia-se na estância 131 (1.º termo) e conclui-se na 132 (2.º termo). Naquela, Policena é caracterizada como jovem, formosa e inocente, consolo e amparo da sua “mãe velha”, e vítima da ira de Pirro, que a sacrifica de forma cruel, implacável e impiedosa. Observe-se a comparação do verso 6 da estância 131 entre Policena e a “paciente e mansa ovelha” e o hipérbato do verso 8, que a apresentam, precisamente, como uma vítima inocente que se oferece ao “duro sacrifício”.
                Na estância 132, o 2.º termo da comparação, Inês é apresentada como vítima inocente, sacrificada às mãos dos “brutos matadores”, “férvidos e irosos”, cujo peito branco trespassaram com as suas espadas. Esta comparação, em suma, comprova que a morte indigna de Inês de Castro é um sacrifício bárbaro, cruel e desumano. Além disso, enquadra-se no espírito clássico que animava o Renascimento, caracterizado pela admiração e imitação dos autores clássicos, apresentando-se a heroína deste episódio à altura dessa heroína clássica.
                Note-se como, no último verso, o narrador reflete a realidade histórica, dando nota do facto de os conselheiros, no momento em que executavam Inês, ignorarem a vingança de D. Pedro assim que subiu ao trono. De facto, o monarca capturou dois dos três conselheiros – Pêro Coelho e Álvaro Gonçalves – e executou-os de forma bárbara.
                A estância 133 abre com uma apóstrofe dirigida ao Sol, através da qual o narrador exprime o seu repúdio pela morte de Inês de Castro. De facto, o seu assassinato foi um ato tão hediondo como cometido por Atreu, pelo que merecia também que o Sol se escondesse, horrorizado (comparação dos versos 3 e 4). Atreu tinha um irmão mais novo, Tiestes, que seduziu a sua esposa, Érope, e teve com ela vários filhos. Depois de descobrir a traição, Atreu, como forma de vingança, fingiu perdoar o irmão e preparou um banquete para celebrar a reconciliação, durante o qual lhe serviu os filhos fruto dessa relação adúltera entre Tiestes e a esposa do irmão. Horrorizado, o Sol escondeu-se.
                Nos últimos 4 versos da estância, o poeta dirige-se à Natureza, personificada, através de uma apóstrofe (“Vós, ó côncavos vales” – v. 5), a qual ouviu a última palavra proferida por Inês de Castro (“Pedro”) e a repetiu. De facto, os montes fizeram ecoar a última palavra dita por Inês.
                Na estância 134, o poeta faz uso de nova comparação, desta vez entre Inês de Castro e uma flor do campo. Num ambiente de juventude e inocência, uma menina corta boninas para fazer uma grinalda para adornar a sua cabeça. Colhida antes do tempo, a flor perde o cheiro e a cor. De igual modo, Inês de Castro, morta, perde a cor e a beleza (“Secas do rosto as rosas e perdida / A branca e viva cor, co a doce vida.” – vv. 7-8, est. 134 – metáfora e eufemismo) às mãos dos seus assassinos. Em suma, Inês, sem cor e sem vida, é comparada à bonina que foi cortada antes do tempo e que murchou: também ela possuía a beleza de uma flor, também ela tinha o viço da juventude e também ela foi morta antes do tempo.
                As ninfas do Mondego recordaram e choraram, durante muito tempo, Inês de Castro, tendo-se essas lágrimas transformado numa fonte que eternizou / imortalizou a memória dessa morte por amor a que chamaram «Dos amores de Inês» (Fonte dos Amores). Essa fonte situa-se na Quinta das Lágrimas, em Coimbra. Atente-se, estilisticamente, mas aliterações das consoantes nasais em /m/ e /n/, que sugerem o som contínuo do choro das ninfas, ou seja, o som das águas correndo.
                Nesta última parte do episódio, a Natureza surge novamente como cúmplice de Inês de castro, refletindo a tragédia que se abateu sobre ela. Assim, os montes ecoaram a sua última palavra, ela é comparada a uma bela e inocente flor que foi colhida antes do tempo e as ninfas do Mondego choraram copiosamente a sua morte, tendo as suas lágrimas dado origem à Fonte dos Amores.



. Características trágicas do episódio
. A ação é trágica e atinge o se clímax com a morte da protagonista, Inês de Castro, apresentada como uma vítima inocente.
. Camões respeita a lei das 3 unidades: de ação (a morte de Inês de Castro), de espaço (Coimbra) e de tempo (duração aproximada de 24 horas).
. A presença / intervenção do Destino: "Naquele engano de alma ledo e cego / Que a Fortuna não deixa durar muito ‑ est. 120, vv. 3-4; "Mas o pertinaz povo e seu destino" (est. 130, v. 3).
. A existência da peripécia, súbita mudança de rumo dos acontecimentos, em vários momentos da ação.
. A presença do coro, evidente nas intervenções emocionais do poeta que acompanham o desenrolar da ação e através das quais a vai comentando (estância 119, últimos 4 versos da estância 123, dos dois últimos versos da estância 130 até à 135).
. A catástrofe. constituída pela morte de Inês de Castro.
. A inspiração dos sentimentos de terror e piedade. O terror é sugerido por determinadas expressões: "horríficos algozes", "ferozes razões", "morte crua", "duros ministros rigorosos", "avô cruel", "morte escura", "peitos carniceiros", "brutos matadores", "encarniçavam férvidos e irosos".
Por sua vez, a piedade é suscitada:
- pelo contraste entre a vivência de uma felicidade despreocupada e a súbita desgraça que sobre Inês se abate;
- pela desproporção de forças entre uma "fraca dama delicada" e a brutalidade e crueldade dos seus "brutos matadores";
- pelo conjugação de uma morte injusta e uma vítima inocente;
- pelo contraste entre a humanização das feras e da natureza e a falta de humanidade dos homens;
- pela imagem de Inês de Castro implorando perdão ao rei, rodeada dos seus filhos;
- pelas intervenções do poeta.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Consílio dos Deuses no Olimpo



. Início da narração (estância 19): «in medias res», à semelhança das epopeias greco-latinas.

. A ação de Os Lusíadas não é narrada cronologicamente. De facto, o poeta inicia a narração quando a viagem de Vasco da Gama à Índia se situa já no Oceano Índico, perto da costa de Moçambique.
   Esta técnica narrativa, um traço das antigas epopeias, designa-se «in medias res», ou seja, a narração é iniciada a meio dos acontecimentos.

. O início da viagem e os acontecimentos que ocorreram até ao ponto em que a narração é iniciada na estância 19 serão contados posteriormente, num recuo temporal (analepse), pelo próprio Vasco da Gama.

. Espaço:
‑ Oceano Índico;


Continuação da análise → Análise do Consílio dos Deuses no Olimpo.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Viagem de Vasco da Gama

Os Lusíadas, I, 20-21

         Estas estâncias correspondem aos momentos iniciais do discurso de Vasco da Gama ao Rei de Melinde, quando lhe situa geograficamente Portugal na Europa:
. «quase cume da cabeça» da Europa;
. situado na região mais ocidental do continente;
. banhado pelo mar (Oceano Atlântico) («Onde a terra se acaba e o mar começa» ‑ est. 20, v. 3);
. muito próximo do norte de África;
. teve a sua origem em Luso ou Lisa («que de baco antigo / Filhos foram» ‑ est. 21, vv. 6 e 7), uma forma de afirmar a descendência divina, logo superior, do povo português.

         Nessas estâncias, por outro lado, Camões descreve a nação e a sua missão de modo semelhante ao feito por Fernando Pessoa em «O dos castelos»:
. a Europa é personificada e apresentada como um corpo humano;
. Portugal é a cabeça desse corpo da Europa: ele é o «rosto» (v. 12) em «O dos Castelos», e «quasi cume da cabeça / De Europa toda» (est. 20, vv. 1-2) n’Os Lusíadas;
. o sentimento de patriotismo;
. relativamente à missão de que Portugal foi incumbido, em Mensagem, a nação está investida de uma missão messiânica centrada na recuperação da Europa decadente; n’Os Lusíadas, a nação assume o espírito de cruzada como missão definidora e é ditada pelo «Céu».
         De facto, entre os versos 5 a 8 da estância 20, Camões alude à expulsão dos Mouros do território nacional (vv. 6 e 7) e às campanhas africanas de D. João I, D. Duarte, D. Afonso V e D. João II que deram origem à ocupação de vários pontos do norte de África.
         Relativamente ao sentimento de patriotismo, em Mensagem, destaca-se o nacionalismo profético da referência ao papel que cabe a Portugal na liderança da Europa; n’Os Lusíadas, Vasco da Gama confessa o seu amor pela pátria («Esta é a ditosa pátria minha amada» ‑ est. 21, v. 1), onde deseja morrer depois de concluir a sua missão («À qual se o Céu me dá, que eu sem perigo / Torne, com esta empresa já acabada, / Acabe-se esta luz ali comigo.» ‑ est. 21, vv. 2-4).

         As diferenças entre os dois textos situam-se, essencialmente, a nível da estrutura e do discurso:
. Mensagem:
. o poema é construído do geral para o particular, um percurso enigmático, gradualmente mais pormenorizado, pleno de mistério e de enigmas a decifrar: o rosto da Europa é Portugal e o olhar misterioso prenuncia a importância da nação para o mundo no futuro;
. a linguagem está recheada de profunda simbologia profética;
. o poema centra-se no indefinido, na crença, na esperança estática no sonho.
. Os Lusíadas:
. o discurso estrutura-se em três momentos:
. a localização geográfica de Portugal;
. a caracterização do povo português, forte e guerreiro, imbuído do ideal da difusão do Cristianismo e do espírito de cruzada;
. a origem lendária superior dos seus fundadores;
. a linguagem é épica, de estilo grandiloquente;
. o poema evidencia a aventura, o perigo, a memória e a esperança.
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