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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Análise do poema "Aniversário"

          Poema lido em aula mais por recreação do que por razões de leccionação...
          Nas duas estrofes iniciais, o sujeito poético caracteriza o seu passado da infância como um tempo feliz, de alegria partilhada pela família e de inocência e despreocupação. De facto, nesse período dourado que foi a infância, simbolizada pelo seu aniversário («No tempo em que festejavam o dia dos meus anos»), ele era feliz, inocente ("a saúde de não perceber coisa nenhuma" - v. 6) e inconsciente ("não ter as esperanças que os outros tinham por mim" - v. 8), era admirado pelos que o rodeavam ("De ser inteligente para entre a família" - v. 7) e que depositavam na sua pessoa grandes esperanças (v. 8). Era, ainda, amado ("O que fui de amarem-me..." - v. 14) e, no dia do seu aniversário, era especialmente bem tratado pela família, que se reunia para o celebrar (vv. 32 a 34). Em suma, as razões dessa felicidade passam pelo facto de se encontrar rodeado de toda a família, de conviver com rotinas que lhe davam segurança e certezas e de todos estarem alegres. De notar que o tempo verbal predominante nestas estrofes é o pretérito imperfeito do modo indicativo ("festejavam", "era", "tinha", etc.), que remete para um tempo passado duradouro - a infância.

          A terceira estrofe levanta a questão: o que foi o sujeito poético? E a resposta não se faz esperar: foi aquilo que ele mesmo supunha ser e foi amado (vv. 11 a 14). O verso 5 desta estrofe revela-nos um «eu» aflito e espantado: "O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui..." (v. 15). Ou seja, na infância era feliz, mas não sabia que o era; só agora, no presente, em que já não possui a inocência e a inconsciência desse tempo, sabe que foi (feliz). Neste passo, já não é o pretério imperfeito que domina, mas o pretérito perfeito, que revela uma época passada concluída.

          Na quarta estrofe, «saltamos» para o presente, tempo em que a felicidade foi substituída pela dor ("e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas" - v. 21). Mais: presentemente, o «eu» sente-se abandonado, tal como sucedeu à casa da sua infância, que foi vendida e surge abandonada, cheia de humidade nas paredes, ideias transmitidas pela comparação do verso 19 e pelas metáforas que se lhe seguem. A metáfora do verso 24 traduz a frieza que caracteriza o sujeito poético na actualidade, o tempo que já passou e não regressa. Em síntese, o presente é um tempo de dor, de abandono, de ausência, de solidão, de perda, de não retorno.

          Perante a constatação do seu presente amargo e doloroso, na 5.ª estrofe o sujeito exprime um desejo: o de regressar à infância ("Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez" - v. 27), de a recuperar, ou seja, de recuperar a alegria e a felicidade então experimentadas, de forma ansiosa e voraz ("Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!" - v. 30 - realce para a comparação e a metáfora). Porém, esse desejo é impossível de concretizar.

          Esse desejo de regressar é tão forte que, na estrofe seguinte, a memória que o sujeito poético tem do passado acaba por se sobrepor ao presente (a expressão "Vejo tudo outra vez com uma nitidez..." - v. 31 - traduz, exactamente, essa presentificação do passado da infância). E ele (re)vê os objectos, as pessoas e as circunstâncias que o representam e à felicidade: a mesa posta, os objectos do aparador, a família, a sua centralidade nesse tempo ("e tudo era por minha causa" - v. 34).

          No entanto, a partir do verso 36 o «eu» retoma o seu presente rogando ao coração (apóstrofe e metonímia de si próprio) que pare, que deixe de pensar. É o retorno da dor de pensar que tanto atormentara o ortónimo, a dor de ser inconsciente e incapaz de sentir ("Pára, meu coração! / Não penses! Deixa o pensar na cabeça." - vv. 36-37). Ou seja, ele toma consciência de que é impossível recuperar a infância, que se encontra irremediavelmente perdida, e de apenas lhe resta o presente de abandono, solidão e vazio. O pensamento põe, assim, fim ao desejo de regressar à infância, sonho que viveu por instantes mas logo foi interrompido pela sua racionalidade. Daí a tripla invocação à figura de Deus, plena de dramatismo e desespero, ao constatar essa impossibilidade de retorno: "Hoje já não faço anos." (v. 39).
          Qual será, então, o seu futuro? O seu futuro será a velhice ("Serei velho quando o for." - v. 42). Até lá, restam-lhe o tédio e a abulia traduzidos pelas formas verbais "duro" e "somam-se-me", que destacam a forma como o «eu» desistiu de viver, limitando-se a a existir, vendo os dias passar. Por tudo isto, de facto, já não faz qualquer sentido festejar o seu aniversário. E a penúltima estrofe encerra com nova metáfora ("Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!..." - v. 44) que confirma que o desejo de recuperar o tempo da infância ou de a presentificar / trazer para o presente é impossível de concretizar. Por outro lado, como tantas vezes nos acontece na vida, o sujeito poético só toma consciência do valor do que perdeu quando já é tarde demais: "Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. / Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida."  - vv. 9-10; "... o que só hoje seu que fui..." - v. 15. É, afinal, um sentimento de impotência, de raiva incontida que brota nesse instante em que toma consciência da perda definitiva.

          A última estrofe do poema - um monóstico exclamativo - coloca-nos perante um sujeito poético marcado pela nostalgia, pela saudade e pela tristeza, em forma de lamento pela perda. Por outro lado, é possível identificar uma circularidade no poema, que abre e finaliza com versos muito semelhantes, que marca o desejo de reviver o passado.

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segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Análise de "Descalça vai pera a fonte"


Classificação
 
Vilancete     - mote de três versos

- duas voltas de sete versos (sétimas)

- métrica: redondilha maior (7 sílabas métricas)

 
• O vilancete é uma forma poética musical composta a partir de um mote curto (constituído por 2 ou 3 versos), tradicional, geralmente alheio, que introduz o tema. De início, este mote era tirado de uma canção popular-vilã e a ele cabia, em exclusivo, a designação de vilancete, que depois passou a atribuir-se a todo o poema. A seguir ao mote existem as voltas ou glosas, compostas por sete versos (sétimas), que desenvolvem o tema introduzido pelo mote. A glosa divide-se, por sua vez, em cabeça (os primeiros 4 versos) e cauda (os restantes 3). O último verso da cabeça rima com o primeiro da cauda, fazendo assim a ligação entre ambos; os dois últimos versos da cauda rimam com os dois últimos versos do mote, e o último deste é, no vilancete perfeito, integralmente repetido no último verso da cauda.
 
 
Tema: a mulher / a beleza feminina – o retrato da mulher amada e idealizada.
 
 
Estrutura interna
 

v  Mote (tese) – Apresentação de Leanor:

localização espacial: a caminho da fonte (ambiente bucólico e rural);

tempo; primavera (a “verdura”) – presente;

caracterização da figura retratada:

nomeação/identificação: Leanor;

social:

- pobre / do povo (“Descalça”);

- atividade doméstica: ida à fonte;

▪ física: formosa / bela;

▪ psicológica:

- insegura (“não segura”)

- ansiosa

posição do sujeito poético: observador da figura feminina.

 
v  Voltas (confirmação da tese) – Desenvolvimento:

• da caracterização física:

▪ pele branca – “mãos de prata” – metáfora

▪ formosa – “fermosa” – adjetivação expressiva

▪ cabelo louro – “cabelos de ouro” – metáfora

▪ muito bela – “tão linda que o mundo espanta” – hipérbole + oração subordinada adverbial consecutiva

▪ graciosa – “chove nela graça tanta” – metáfora + trocadilho

vestuário:

- “cinta de fina escarlata” – vermelho alegria, paixão, sensualidade

- “sainho de chamalote” – diminutivo carinho

- “vasquinha de cote, / mais branca que a neve pura“ – comparação + hipérbolebranco pureza

- “a touca”

- “o trançado”

- “fita”

cores

- vermelho alegria, sensualidade, paixão

- branco pureza

- louro dos cabelos

▪ elementos do quotidiano de trabalho de Leanor

- o pote

- o testo

 
efeitos da sua beleza física:

▪ espanta o mundo

▪ dá graça à formosura

 
• da caracterização psicológica:

▪ insegura e ansiosa

▪ apaixonada

▪ causas da insegurança:

- caminhar com o pote na cabeça > insegurança (desequilíbrio) > encontro com o amigo?

- a beleza (ser ou não ser apreciada)?

- o encontro com o namorado (faltará ou marcará presença?)

- os seus sentimentos?

 
 
Estrutura narrativa do poema
 
*      Espaço: ambiente campestre, rural, bucólico (“verdura”, “fonte”).

 
*      Tempo: presente – momento em que o sujeito observa a mulher.

 
*      Ação: ida à fonte – “vai para a fonte”.

 
*      Personagem: Leanor.

 
 
Forma
 
• Métrica: redondilha maior (versos de 7 sílabas métricas) – medida velha.
 
Rima:
- esquema rimático: ABB / CDCCBB
- emparelhada e interpolada
- consoante (“verdura”/”segura”)
- rica (“verdura”/”segura”) e pobre (“prata”/”escarlata”
- grave ou feminina (“verdura”/”segura”)
 
 
Recursos expressivos

 
Nomes:

- fonte: ambiente rural e campestre; local de cumprimento de uma tarefa doméstica; possível local de encontro amoroso;

- verdura: ambiente rural e bucólico;

- neve: a pureza e tom de pele claro de Leanor;

- ouro, prata: metais preciosos que sugerem o tom de pele claro e os cabelos louros de Leanor, bem como a sua preciosidade.

 
Verbo “chover”, com valor transitivo e sentido hiperbólico: a graça de Leanor era tão evidente e abundante como a chuva.
 
Advérbios de intensidade “tanto” e “tão”: intensificam a beleza física de Leanor.
 
Personificação: “tão linda que o mundo espanta”.
 
Diminutivos – “sainho” e “vasquinha”: sugerem o carinho e a simpatia do sujeito pela mulher, bem como o seu encantamento face à sua beleza e graciosidade.
 
Trocadilho: “Chove nela graça tanta / Que dá graça à fermosura”.
 
Aliteração em /v/.
 
• Alternância de sons abertos (ó, á), sugestivos de vitalidade, fechadas (ô, u) e nasais (on, na).
 
Transporte: vv. 1-2, 15-16.
 
• Associação de cores (o vermelho do vestuário, o branco da pele e o louro dos cabelos) para sugerir a alegria, a pureza e a perfeição de Leanor, respetivamente.
 
• As peças de vestuário e os objetos que transporta, cuja graciosidade o sujeito poético pretende transferir para a mulher.
 
 
Retrato de Leanor – síntese
 
Social:
- do povo
- pobre – descalça
- cumpre tarefas domésticas
 
Físico:
- jovem
- bela
- pele branca
- cabelo louro
 
Psicológico:
- pura
- insegura
- ansiosa
 
Ideal de mulher petrarquista
 
 
Influências - Intertextualidade
 
Ø  Petrarca (inovações renascentistas):
- caracterização física (a pele branca, o cabelo louro…) e psicológica da mulher (a pureza, a castidade;
- caracterização predominantemente psicológica e só aparentemente física.
 
Ø  A utilização do trocadilho, da hipérbole e do jogo de conceitos e ambiguidades, como recursos do engenho poético (também existentes na endecha "Aquela cativa"), coloca, em certa medida, Camões como precursor da poesia cultista e conceptista do século XVII.

 


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Análise da "Ode Triunfal" (3.ª parte)

 Forma
 
         O poema é composto por estrofes de extensão variada (vv. 4, 10, 11, 17, etc.) e por versos em que não existe uma regularidade métrica (vv. 23, 6, 16, 24, etc.). Esta irregularidade sugere a exaltação (aparentemente) descontroladora do «eu» lírico e a ideia de que uma nova realidade pede um novo tipo de poesia que seja menos presa à regularidade.

 
Rutura com a lírica tradicional
 
1. Formal:

- irregularidade estrófica, métrica e rítmica;

- uso excessivo de coordenação, em detrimento da subordinação;

- catadupa de recursos expressivos (onomatopeias ousadas, apóstrofes e enumerações exageradas…);

- predomínio de vocabulário técnico, destituído de valor poético.

 
2.▪Conteúdo:

- uso de palavras completamente prosaicas (comuns ou vulgares);

- o canto excessivo da civilização industrial, encarada como matéria épica;

- a ousadia de mencionar os aspetos negativos da sociedade.

 
 
Influências
 

A “Ode” evidencia a presença do futurismo de Marinetti: Campos canta as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial…

 
Futurismo:

- Movimento italiano de início do século XX (Marinetti);

- Rutura com a vida e a arte do “passado” (a perspetiva aristotélica);

- Criação de uma nova estética para um novo mundo;

- Celebração da modernidade industrial e urbana;

- Culto da máquina e da velocidade;

- Fruição do mundo moderno (ligação ao Sensacionismo de Pessoa), feita através das sensações.4

 
. Em Portugal, o Futurismo é uma das facetas do Modernismo. Derivou do Futurismo de Marinetti, cujo primeiro manifesto saiu no jornal Figaro em 22 de novembro de 1909.

. Tem um cariz agressivo e escandaloso e propõe-se cortar com o passado, exprimindo em arte o dinamismo da vida moderna.

. Desponta, em Portugal como um escândalo, tal como desejado pelos seus iniciadores (Almada Negreiros e Santa-Rita Pintor), apelidados de «malucos» e «loucos» pelos jornais.

. Os textos distinguem-se por uma enorme quantidade de frases exclamativas, de invetivas e de insultos, com o intuito de desmistificar, demolir, acabar com os hábitos culturais esclerosados e retrógrados: criar a pátria portuguesa do século XX (segundo Almada).

 
Por outro lado, o poema evidencia também a presença do sensacionismo de Walt Whitman: Campos canta a civilização moderna industrial, mas, mais do que os objetos – as máquinas, os motores, etc. ‑, o que ele busca são as sensações que lhe despertam, num desejo de sentir tudo de todas as maneiras.
 
Por outro lado, em diversos momentos sente-se a presença do Pessoa ortónimo: a sua inteligência torturada (a denúncia do lado da civilização moderna), a referência à infância…
 
 
Linguagem e estilo
 
A tendência para humanizar as máquinas: “Grandes trópicos humanos de ferro, fogo e forças”; “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas”, etc.
 
O uso da ironia, sobretudo para traduzir a face negativa da civilização industrial:

- "escrocs exageradamente bem vestidos": além da ironia, note-se a presença da antítese entre a compostura exterior (o vestuário) dos escrocs e as suas intenções;

- "Chefes de família vagamente felizes": neste caso, o advérbio «vagamente» projeta o cansaço (de viver?) sobre a felicidade dos chefes de família;

- "Banalidade interessante (...) / Das burguesinhas (...) / Que andam na rua com um fim qualquer": notar novamente a presença da antítese, agora entre o aspeto exterior das «burguesinhas» (diminutivo irónico) e as suas obscuras intenções;

- "A maravilhosa beleza das corrupções políticas, / Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos": a adjetivação antitética assume o valor de oximoro.

 
A antítese:

- "tudo o que passa e nunca passa": traduz a concentração do passado no presente, ou a continuidade dos acontecimentos diários;

- "O ruído cruel e delicioso da civilização de hoje": traduz os sentimentos contraditórios do sujeito poético em relação à civilização industrial.

 
Metáforas e imagens:

- "Arde-me a cabeça de vos querer cantar";

- "Grandes trópicos humanos de ferro, fogo e força" (aliteração em «f»);

- "Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável";

- "Nos cafés, oásis de inutilidade ruidosas";

- "Quilhas de chapa de ferro sorrindo".

   Estes recursos estilísticos, nos exemplos apresentados, evidenciam a forma como o sujeito poético vibra com a modernidade, com a civilização industrial (com a fúria do movimento das máquinas, com a excessiva quantidade de carvão...).

 
O ritmo do poema é torrencial, feroz, vivo, onde surgem em catadupa as diferentes realidades captadas pro um «eu» em plena histeria de sensações.
 
Onomatopeias (“r-r-r-r-r-r-r eterno”).
 
Apóstrofes (“Ó rodas, ó engrenagens”).
 
Aliterações: “Rugindo, rangendo […] ferreando”.
 
Empréstimos: «jockey».
 
Grafismos inovadores (“Hup-lá, hup-lá, hup-lá-ô, hup-lá”; “Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!”).
 
Diferentes registos de língua, nomeadamente o recurso ao calão: «putas».
 


Análise da "Ode Triunfal"

     . Apresentação.


Análise da "Ode Triunfal" (2.ª parte)

     
Fusão de todos os tempos no Momento presente:
 
O Instante presente é a congregação de todos os tempos o presente é o resultado dos esforços científicos passados e catalisadores dos feitos futuros ‑ “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão, / E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta, / Átomos que hão ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem, / Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes…” (vv. 19-23).
 
O tempo é um contínuo, e a civilização, um acumular de saberes e experiências que atravessam o tempo como uma herança. A máquina de hoje é o resultado de outras invenções do passado: “Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro, / Porque o presente é todo o passado e todo o futuro” (vv. 17-18); “E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas / Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão” (vv. 19-20).
 
As referências a Platão, Virgílio, Alexandre Magno e Ésquilo – figuras que representam o passado – constituem referências a um passado que permitiu a realidade atual e continuarão a impulsionar as inovações futuras. A menção a essas figuras concorre, assim, para explicitar a relação entre as diversas eras, valorizando em cada momento os grandes feitos.
 
Ao contrário de outros futuristas, como Marinetti, que rejeitavam todo o tempo que não o futuro, que defendiam o apagamento do passado e do presente em relação ao futuro, que seria «tudo», Campos funde as três eras num só momento, o atual, que, contudo, só poderá fazer sentido se se apoiar no passado e entrevisto em função do futuro: “Eia todo o passado dentro do presente! / Eia todo o futuro já dentro de nós!” (vv. 90-91). De facto, o presente só é possível porque está alicerçado no passado, na base do qual se apoia a construção do futuro, ou seja, passado e futuro ganham significação no presente, no Momento (“todo o passado dentro do presente”; “todo o futuro já dentro de nós” – vv. 222-223).
 
 
Identificação com as máquinas
 
O sujeito poético procura identificar-se com as máquinas, identificação essa que se traduz num “amor” desesperado (“Como eu vos amo… Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato / E com o tato… / E com a inteligência…” – vv. 86-91).
 
Esta identificação com as máquinas traduz uma atitude sensacionista de ser tudo de todas as maneiras do sujeito poético, pois quer sentir tudo e identificar-se com tudo, procurando daí obter o máximo de sensações possível. Ele quer penetrar tudo, ser penetrado por tudo (“Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!”).
 
 
Perceção do real pelo sujeito poético
 
O sujeito poético perceciona o real baseado no excesso de sensações: “(…) excesso / De expressão de todas as minhas sensações” (vv. 12-13):

- visuais:

. forma: “Ó rodas, ó engrenagens (…)”;

. luminosidade: “À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica” (v. 1);

- cinéticas: “Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes” (v. 23);

- táteis: “Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.”;

- auditivas: “(…) r-r-r-r-r-r-r- eterno.” (v. 5);

- gustativas: “Tenho os lábios secos (…)” (v. 10);

- olfativas: “A todos os perfumes de óleos e calores e carvão” (v. 31).

 
Comparando com o real de Caeiro, em Campos a Natureza é substituída pela visão do mundo moderno e “supercivilizado” (“Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical”, “Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável”), com o qual o sujeito poético estabelece uma ligação estranha, eufórica e exaltada, caracterizado também por um erotismo frenético e doentio (“Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.”; “Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto, / Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento / A todos os perfumes de óleos e calores e carvões”).
 
A visão excessiva e intensa do real provoca no sujeito poético um estado de quase alucinação marcadamente erótico que começa a desenhar-se na segunda estrofe (“Em fúria fora e dentro de mim” – v. 7), intensifica-se na terceira e atinge o clímax na última, conferindo, assim, ao texto a sua faceta provocatória e escandalosamente futurista.
 
 
A temática da infância
 
      Entre os versos 181 e 189, numa estrofe parentética, Álvaro de Campos retoma um tema comum ao ortónimo e aos heterónimos - a infância -, que surge mais uma vez como a idade perfeita, um espaço de liberdade, de não-pensamento, de felicidade, no que se opõe ao presente. Nos versos citados, a infância surge representada por diversos elementos: a nora, o quintal, a casa, os pinheiros, o burro - animal significativo que representa a ausência de pensamento / racionalidade.
 
 
Denúncia do lado negativo da civilização industrial
 
O «eu» exalta tudo o que simboliza a modernidade e a era industrial, o que inclui os seus aspetos negativos: “Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto, / Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo, / Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?” (vv. 207-210).
 

Assim, ele denuncia:

. a desumanidade;

. a corrupção;

. a mentira;

. a imoralidade e a perversidade;

. a pobreza e a miséria;

. a falta de higiene;

. a hipocrisia;

. os falhanços da técnica (desastres, naufrágios, desabamentos…);

. a prostituição de menores e a pedofilia;

. a guerra;

. Campos chega mesma a prever o fim / a substituição da civilização industrial (vv. 204-206).
 
O sujeito poético menciona também os vários tipos sociais e personagens que caracterizam a era industrial: comerciantes, vadios, “escrocs”, aristocratas, “esquálidas figuras dúbias”, “chefes de família”, “cocotes”, “burguesinhas”, “pederastas”, “gente elegante que passeia”, “caixeiros-viajantes”. Ele revela, assim, o interesse por todas as realidades que o rodeiam.
 
 
Último verso do poema
 
O «eu» exprime o seu desejo de ser múltiplo (“toda a gente”) e omnipresente (“toda a parte” – sentir tudo de todas as maneiras e identificar-se com tudo. Esta seria a única maneira de fruir totalmente a maravilha do seu tempo.
 
O verso sintetiza a atitude de deslumbramento em relação às realidades cantadas e com as quais se deseja fundir.
 
Por outro lado, constitui o reconhecimento da sua impossibilidade, o que leva o «eu» poético a denunciar a sua frustração, acabando por concluir o poema na mesma situação em que o iniciou: apenas como observador e cantor épico de uma realidade que lhe é exterior.
 
 
Retrato do sujeito poético
 
O sujeito poético canta e exalta o progresso, a vida moderna, as máquinas, de forma entusiástica, eufórica, apaixonada e arrebatada.
 
Mostra-se, igualmente, espantado de novidade, louco de emoção, tudo devido à forma maravilhosa e entusiástica como “observa” o esplendor do progresso e da modernidade, que ama desesperada e pervertidamente.
 
Em simultâneo, revela dor, sofrimento e um estado febril – tem os lábios secos, arde-lhe a cabeça, está em delírio e em fúria, agitado interiormente – esta fúria também é psicológica, uma vez que corresponde à sua agitação interior (“Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos” – v. 10; “E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso” – v. 12; “Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical” – v. 15).
 
Além disso, revela ansiedade, angústia e inquietação, pois escreve “À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica” (v. 1), o que sugere um canto em sofrimento e num estado de doença (“Tenho febre e escrevo” – v. 2).
 
Causas desse estado de espírito:

- os “excessos” do ambiente em que se encontra inserido (vv. 12-13);

- os movimentos “em fúria” e os “ruídos” ouvidos “demasiadamente perto” das máquinas.

 
É um sensacionista que pretende sentir tudo de todas as maneiras e identificar-se com tudo (pessoas, máquinas, tempos), num misto de volúpia e vertigem, numa histeria de sensações que passa pela identificação com tudo: “Ah!, poder exprimir-me todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina!”; “Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto…”.
 
No entanto, o «eu» da “Ode Triunfal” também critica os aspetos negativos da civilização moderna industrial, mesmo identificando-se com ela.
 
Além disso, revela a sua descrença, o seu desencanto e o seu pessimismo e evoca, com nostalgia e saudade, a infância.
 

Análise da "Ode Triunfal"

     . Apresentação.


Análise da «Ode Triunfal» (1.ª parte)


 
1.ª estrofe:
 

Localização:

- espacial: interior de uma fábrica, em plena e intensa atividade (o sujeito poético está rodeado de máquinas, sob a luz forte das “grandes lâmpadas elétricas”;

- temporal: presente em que o sujeito poético observa a fábrica; noite? (a luz das lâmpadas).

 
Estado de espírito do sujeito poético:

- estado febril, doentio, delirante (“Tenho febre e escrevo”) – canta o progresso e a modernidade de forma entusiástica;

- sente dor (“À dolorosa luz…”);

- em fúria (“rangendo os dentes””.

 
Ação do sujeito poético:

- engenheiro;

- escritor (“Escrevo”):

. o ambiente inspira-o a escrever (violentamente) um cântico novo sobre a beleza da civilização moderna;

. a realidade que o cerca provoca-lhe sensações contraditórias:

- deleita-se a apreciar a beleza do que o rodeia;

- mas essa beleza/realidade causa-lhe dor.

 
• Valorização de um novo conceito de arte/estética, de uma nova forma de beleza “totalmente desconhecida dos antigos” (vv. 3-4, 15, 37-40):

- valoriza-se a “beleza” da civilização moderna, diferente da beleza aristotélica clássica, que assentava nas noções de Perfeição, Equilíbrio, Agradável, Harmonia, Proporção e Elegância, porque a realidade moderna não as tem;

- o novo conceito de Belo relaciona-se com as ideias de Força, Velocidade, Dinamismo, Excesso, Modernidade…
 
         Álvaro de Campos, na “Ode Triunfal”, põe em prática o que havia teorizado nos seus Apontamentos para uma estética não aristotélica (revista “Athena”, números 3 e 4). De acordo com a conceção de Aristóteles, a arte/a estética assentava nas ideias de beleza, de perfeição, de equilíbrio, do agradável comandado pela inteligência. Na esteira de Walt Whitman, o heterónimo de Pessoa apresenta uma nova conceção, sustentada nos seguintes princípios:

▪ assenta nas ideias de força, dinamismo, energia explosiva, volúpia da imaginação;

▪ o sentir predomina em relação ao pensar, por isso o importante não é a beleza dos maquinismos em si mesmos, mas as sensações que eles despertam e o modo como se codificam, ao nível da expressão, essas sensações;

▪ não é a beleza clássica saída da inteligência que cativa o sujeito poético, mas a força caótica e explosiva produto de uma emotividade individual desordenada e caótica, de um subconsciente em convulsão;

▪ daí que Campos queira transformar-se na realidade excessiva que o cerca e cantar tudo “com um excesso / De expressão de todas as (…) sensações com um excesso contemporâneo” das máquinas (vv. 26 a 32).

 
 
Sensacionismo
 

O Sensacionismo é uma estética criada por Fernando Pessoa e por Mário de Sá-Carneiro e encontramos a sua marca na poesia de Álvaro de Campos e de Alberto Caeiro.

Na poesia, privilegia a representação das sensações (visuais, auditivas, etc.) de que o sujeito poético teve consciência no seu contacto com o mundo que o rodeia.

Perpassa a “Ode Triunfal” o princípio de sentir tudo de todas as maneiras e ser tudo e todos nesta realidade moderna, urbana e industrial.

Na “Ode Triunfal”, o Sensacionismo associa-se ao Futurismo na ideia de sentir em excesso (e em delírio) o mundo moderno e de representar a forma como os sentidos aprendem essa realidade.

 
O sensacionismo de Álvaro de Campos inspira-se no de Alberto Caeiro, visível no modo como um e outro apreendem o real: através das sensações. No entanto, enquanto que Caeiro o faz de uma forma calma e tranquila e baseado na Natureza, Campos procura as sensações nos maquinismos e deixa-se levar pelos excessos característicos do futurismo bem evidentes na linguagem utilizada:

- onomatopeias: “r-r-r-r-r-r-r eterno!” (v. 5);

- ritmo rápido e excessivo: “Em fúria fora e dentro de mim, / Por todos os meus nervos dissecados fora” (vv. 7-8);

- repetições: “Canto, e canto o presente” (v. 17);

- enumerações: “(…) e canto o presente, e também o passado e o futuro” (v. 17);

- aliterações: “Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” (v. 24);

- frases exclamativas: “Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!” (v. 26);

- interjeições: “Ah” (v. 26);

- adjetivação: “Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!” (v. 32).

 
Sensacionismo – presença dos cinco sentidos:

- audição:

. “r-r-r-r-r-r-r eterno” (v. 5);

. “ruídos modernos”;

- visão:

. “e olhando os motores” (v. 15);

- paladar/gosto:

. “Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!” (v. 9);

. “Tenho os lábios secos” (v. 10);

- tato:

. “Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma” (v. 25);

. “calores” (v. 31);

- olfato:

. “perfumes de óleos” (v. 31);

- finalidade/significado: no seu estado febril, o sujeito poético procura captar as sensações provocadas pelas máquinas através dos sentidos;

- simultaneidade e exacerbação sensorial:

. a pluralidade sensorial – “Sentir tudo de todas as maneiras” – é uma forma/um método de conhecimento da dinâmica da vida moderna;

. a intensidade e o sincronismo conferem maior captação de captação sensitiva, já que esta se caracteriza pela sua fugacidade e fragmentação o sujeito poético sente intensamente.

 
Campos sente uma ânsia eufórica de abarcar a totalidade e a complexidade das sensações: “todos”, “todas”. O excesso de sensações representa a vontade do «eu» de experimentar intensamente e de todas as maneiras a multiplicidade de situações da vida moderna – sentir tudo de todas as maneiras ‑, por isso, extasiado, deseja “exprimir-[se] todo como um motor se exprime! / Ser completo como uma máquina! / Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!” (vv. 26-28).
 
O desejo de excesso de sensações leva-o mesmo a assumir uma atitude sadomasoquista (vv. 134-135) só para aceder a “tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!” (v. 101). De facto, o sensacionismo de Campos é de cariz masoquista e sensualista e apela a um gozo orgíaco e extremo: “Eu podia morrer triturado por um motor” (v. 134); “Atirem-me para dentro das fornalhas” (v. 136), etc.
 
 
Cântico da era moderna e do progresso:
 
Campos elogia, à maneira futurista, a agitação e o movimento próprios da vida moderna.
 
Faz a apologia da força, enquanto critério primordial da beleza, que a obra escrita deve reproduzir.
 
Canta a civilização moderna, os avanços tecnológicos, em que tudo e todos têm lugar na poesia, pelo simples facto de existirem.
 
A Modernidade é uma espécie de nova «religião», que merece ser enaltecida, através da poesia:

- “E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas sensações / Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!” (vv. 12-14);

- “Ó coisas todas modernas, / Ó minhas contemporâneas, forma atual e próxima / Do sistema imediato do Universo / Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!” (vv. 45-48).

 
 
Realidades cantadas
 
As realidades cantadas são diversas, desde as referentes aos avanços da técnica (grandes lâmpadas elétricas das fábricas, rodas, engrenagens, maquinismos, ruídos modernos, máquinas, motores, correias de transmissão, êmbolos, volantes, comboios, navios, guindastes, fábricas, etc.) e até às que prefiguram o lado negativo da civilização industrial (corrupções políticas, escândalos financeiros e diplomáticos, agressões políticas, regicídios, notícias desmentidas, desastres de comboios, naufrágios, revoluções, alterações de constituições, guerras, invasões, injustiças, violência, etc.).
 
Um pouco à semelhança de Cesário Verde, Campos inova ao conferir poeticidade a temáticas não usuais: máquinas, motores, fábricas, energia, matéria, força, etc., através de uma linguagem carregada de nomes concretos e abstratos, fonemas substantivados (r-r-r-r-r-r-r…), topónimos (Panamá, Kiel…), antropónimos (Platão, Virgílio…), estrangeirismos (souteneur, foule…), tipos de letra variados (vv. 5, 72, 238), maiúsculas desusadas (Prodígio, Sol…), adjetivação expressiva, figuras de estilo (polissíndetos, metáforas, anáforas, apóstrofes, enumerações, personificações, sinestesias, perífrases, trocadilhos, reiterações, gradações, comparações, aliterações…), neologismos (passante), formas verbais variadas, advérbios expressivos (estridentemente, exageradamente…), gerúndios (rangendo, sorrindo), interjeições (ah, hilla, eia…), rimas internas (vv. 24, 25, 70) e onomatopeias (ciciar, up-lá ôh…).
 
 
Linguagem erótica
 
Álvaro de Campos canta o mundo do progresso industrial e mecânico através de uma linguagem evocadora de um certo erotismo: “Amo-vos carnivoramente, / Pervertidamente…” (vv. 105-106); “Completamente vos possuo como a uma mulher bela…”.
 
Por outro lado, essa linguagem possui um sentido profundamente masoquista: “Eu podia morrer triturado por um motor…” (v. 134), que se orienta mais para a criação de sensações novas e violentas (sensacionismo) do que para a exaltação das máquinas.
 

Análise da "Ode Triunfal"



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