O tema do poema enquadra-se no âmbito da criação poética despertada
pelo quotidiano e pelos seus acontecimentos comuns. No caso deste poema, são as
tarefas domésticas.
● Análise
▪ No poema, estão representados dois espaços, um exterior (“uma
despensa”) e outro interior (o “sótão mental”) ao sujeito poético.
▪ A composição coloca-nos face à imagem de uma mulher atual, dita
moderna, que, envolta nas tarefas domésticas, como, por exemplo, a organização
de uma despensa, se ocupa também da criação artística, o que faz com que acabe
por atribuir sentido metafórico aos aspetos desse quotidiano doméstico.
▪ O sujeito poético abre o poema com um pedido ou um desejo: “Faça-se
luz / neste mundo profano”. Essa vontade constitui, no fundo, um apelo à
criatividade, a que a sua inspiração surja. Esta ideia é continuada na terceira
estrofe: “Que a luz penetre / no meu sótão / mental”.
▪ O seu gabinete de trabalho é uma despensa, qualificado como «mundo
profano». Este conjunto metafórico remete o «eu» poético para a condição da
mulher urbana, dita moderna, que vive dividida entre a obrigação de se dedicar
às tarefas domésticas, entre “presunto e arroz /, (…) e detergentes”, e o
impulso «mental» para a escrita. Por outro lado, poder-se-á considerar que o
quotidiano doméstico funciona como uma fonte de inspiração para a poesia.
▪ Assim sendo, não pode haver qualquer estranheza no facto de o campo
lexical predominante do poema ser algo estranho à poesia: «presunto»,
«detergentes», «arroz», «despensa». Este vocabulário relembra-nos de imediato
“Num bairro moderno”, de Cesário Verde, nomeadamente o momento em que o «eu»
recompôs um corpo poético feminino a partir dos vegetais e frutos existentes na
giga da vendedeira. Por outro lado, tal pode sugerir igualmente que o
quotidiano não é propriamente a fonte de inspiração «perfeita», no entanto, é
possível, através da imaginação do processo de criação poética, transformar
esses produtos em poesia. Assim se compreende que, no final do poema, se
transforme o presunto numa carruagem encantada, características dos contos
tradicionais.
▪ O sujeito poético vai organizando a despensa, enquanto o momento de
escrever poesia não chega, daí que, nesse período de tempo, tenha de aguardar
que se faça luz, isto é, que a inspiração chegue, para que o poema vá surgindo
nas folhas de papel que se assemelham aos produtos de consumo.
▪ A segunda estrofe assenta na oposição entre «As outras» e o «eu».
Aquelas estão circunscritas a «sótãos», espaços físicos superiores, universos
mais elevados, marcados pelo exercício da escrita, enquanto o sujeito poético
está confinado a uma simples despensa, onde se move entre «presunto», «arroz»,
«livros» e «detergentes», compelido a cumprir as tarefas domésticas, procurando
conciliar o (esse) mundano com a criação artística (por isso, está sempre
acompanhada pelos «livros»).
▪ Assim, o sujeito poético apela à inspiração, que se faça luz e que “a
luz penetre / no meu sótão / mental” (isto é, que ela se materialize), de modo
que o seu desejo de escrever, de abandonar a despensa (as tarefas domésticas) e
atingir o sótão, se concretize e desta forma se opere a transição do espaço
exterior para o interior (“transformem o presunto / em carruagem!”).
▪ A figuração poética é construída a partir da tensão entre a realidade
do «eu» e a ficção desse mesmo «eu», num permanente “estar entre”. No caso
deste poema, o «eu» poético é uma mulher que se divide entre as tarefas do
quotidiano, exemplificadas pela organização de uma despensa, e a
escritora-poeta que se dedica à escrita. A ligação entre as duas representações
acentua-se pelo facto de esse quotidiano ser aquilo que fornece inspiração ao
«eu» para escrever, para criar.
▪ De facto, o «eu» poético, dividido entre duas representações
distintas, vive nesse constante «estar entre»: de um lado, o quotidiano, feito
de elementos concretos e objetivos; do outro, o mundo do sonho, da imaginação,
da criatividade, do abstrato, isto é, da criação poética. Ao contrário do que
se poderia talvez esperar, estes dois mundos não se opõem, antes se harmonizam,
complementam e coexistem: na despensa, há um “sótão mental” e folhas de papel
(mentais) que permitem transformar o “presunto / em carruagem”, ou seja, os
aspetos domésticos do quotidiano em poesia – a metáfora da carruagem (ao gosto
dos contos de fadas) representa a força vital da poesia de Ana Luísa Amaral.
▪ Em suma, o «eu» poético apela à inspiração, pedindo que se faça luz,
que essa luz penetre no seu sótão mental, para que o seu desejo de escrever se
vá materializando e seja possível, nas «folhas» que embala «docemente», a
epifania da escrita, o tão ambicionado sublimar do “presunto / em carruagem”.
● Características
da poesia de Ana Luísa Amaral
▪ Na poesia de Ana Luísa Amaral, fazem-se sentir
com frequência os ecos do quotidiano feminino, especialmente os espaços da sua
vivência quotidiana, como a cozinha, a sua casa, a despensa, as tarefas
domésticas e quotidianos, os elementos mais recorrentes na sua poesia, os quais
acabam por constituir matéria poética.
● Estrutura
forma
▪ Estrofes: quatro estrofes, duas
quintilhas e duas quadras.
▪ Métrica: é irregular.
▪ Rima: versos brancos ou soltos.
Onde está o poema completoeto?
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