Português: Análise do poema "Metamorfoses", de Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Análise do poema "Metamorfoses", de Ana Luísa Amaral

Tema

O tema do poema enquadra-se no âmbito da criação poética despertada pelo quotidiano e pelos seus acontecimentos comuns. No caso deste poema, são as tarefas domésticas.


Análise

No poema, estão representados dois espaços, um exterior (“uma despensa”) e outro interior (o “sótão mental”) ao sujeito poético.

A composição coloca-nos face à imagem de uma mulher atual, dita moderna, que, envolta nas tarefas domésticas, como, por exemplo, a organização de uma despensa, se ocupa também da criação artística, o que faz com que acabe por atribuir sentido metafórico aos aspetos desse quotidiano doméstico.

O sujeito poético abre o poema com um pedido ou um desejo: “Faça-se luz / neste mundo profano”. Essa vontade constitui, no fundo, um apelo à criatividade, a que a sua inspiração surja. Esta ideia é continuada na terceira estrofe: “Que a luz penetre / no meu sótão / mental”.

O seu gabinete de trabalho é uma despensa, qualificado como «mundo profano». Este conjunto metafórico remete o «eu» poético para a condição da mulher urbana, dita moderna, que vive dividida entre a obrigação de se dedicar às tarefas domésticas, entre “presunto e arroz /, (…) e detergentes”, e o impulso «mental» para a escrita. Por outro lado, poder-se-á considerar que o quotidiano doméstico funciona como uma fonte de inspiração para a poesia.

Assim sendo, não pode haver qualquer estranheza no facto de o campo lexical predominante do poema ser algo estranho à poesia: «presunto», «detergentes», «arroz», «despensa». Este vocabulário relembra-nos de imediato “Num bairro moderno”, de Cesário Verde, nomeadamente o momento em que o «eu» recompôs um corpo poético feminino a partir dos vegetais e frutos existentes na giga da vendedeira. Por outro lado, tal pode sugerir igualmente que o quotidiano não é propriamente a fonte de inspiração «perfeita», no entanto, é possível, através da imaginação do processo de criação poética, transformar esses produtos em poesia. Assim se compreende que, no final do poema, se transforme o presunto numa carruagem encantada, características dos contos tradicionais.

O sujeito poético vai organizando a despensa, enquanto o momento de escrever poesia não chega, daí que, nesse período de tempo, tenha de aguardar que se faça luz, isto é, que a inspiração chegue, para que o poema vá surgindo nas folhas de papel que se assemelham aos produtos de consumo.

A segunda estrofe assenta na oposição entre «As outras» e o «eu». Aquelas estão circunscritas a «sótãos», espaços físicos superiores, universos mais elevados, marcados pelo exercício da escrita, enquanto o sujeito poético está confinado a uma simples despensa, onde se move entre «presunto», «arroz», «livros» e «detergentes», compelido a cumprir as tarefas domésticas, procurando conciliar o (esse) mundano com a criação artística (por isso, está sempre acompanhada pelos «livros»).

Assim, o sujeito poético apela à inspiração, que se faça luz e que “a luz penetre / no meu sótão / mental” (isto é, que ela se materialize), de modo que o seu desejo de escrever, de abandonar a despensa (as tarefas domésticas) e atingir o sótão, se concretize e desta forma se opere a transição do espaço exterior para o interior (“transformem o presunto / em carruagem!”).

A figuração poética é construída a partir da tensão entre a realidade do «eu» e a ficção desse mesmo «eu», num permanente “estar entre”. No caso deste poema, o «eu» poético é uma mulher que se divide entre as tarefas do quotidiano, exemplificadas pela organização de uma despensa, e a escritora-poeta que se dedica à escrita. A ligação entre as duas representações acentua-se pelo facto de esse quotidiano ser aquilo que fornece inspiração ao «eu» para escrever, para criar.

De facto, o «eu» poético, dividido entre duas representações distintas, vive nesse constante «estar entre»: de um lado, o quotidiano, feito de elementos concretos e objetivos; do outro, o mundo do sonho, da imaginação, da criatividade, do abstrato, isto é, da criação poética. Ao contrário do que se poderia talvez esperar, estes dois mundos não se opõem, antes se harmonizam, complementam e coexistem: na despensa, há um “sótão mental” e folhas de papel (mentais) que permitem transformar o “presunto / em carruagem”, ou seja, os aspetos domésticos do quotidiano em poesia – a metáfora da carruagem (ao gosto dos contos de fadas) representa a força vital da poesia de Ana Luísa Amaral.

Em suma, o «eu» poético apela à inspiração, pedindo que se faça luz, que essa luz penetre no seu sótão mental, para que o seu desejo de escrever se vá materializando e seja possível, nas «folhas» que embala «docemente», a epifania da escrita, o tão ambicionado sublimar do “presunto / em carruagem”.


Características da poesia de Ana Luísa Amaral

▪ Na poesia de Ana Luísa Amaral, fazem-se sentir com frequência os ecos do quotidiano feminino, especialmente os espaços da sua vivência quotidiana, como a cozinha, a sua casa, a despensa, as tarefas domésticas e quotidianos, os elementos mais recorrentes na sua poesia, os quais acabam por constituir matéria poética.


Estrutura forma
Estrofes: quatro estrofes, duas quintilhas e duas quadras.
Métrica: é irregular.
Rima: versos brancos ou soltos.

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