Este poema pertence ao quarto livro
de Ana Luísa Amaral, intitulado E Muitos os Caminhos, e nele a poeta
associa-se à tradição poética, ao mesmo tempo que se lhe opõe, subvertendo-a, modificando-a,
o que quer dizer renovando-a.
● Título
• A poeta chamou «soneto»
ao poema, no entanto, formalmente, foge a essa definição, dado que é
constituído por 5 quadras, não sendo, além disso, nenhuma delas um terceto.
• O título remete-nos,
pois, em simultâneo, para a tradição clássica (foi uma tipologia textual
cultivada por Petrarca, Camões, etc.), para a herança modernista de Fernando
Pessoa e a sua teoria do fingimento poético (em “Autopsicografia”, por exemplo,
enquanto o título desta composição clarifica desde logo que se trata de um
soneto “a fingir”) e para a modernidade/contemporaneidade, para um diálogo com
todas estas possibilidades.
● Análise
• Na primeira estrofe, o
sujeito poético remete para outras formas poéticas: as composições de mote e
glosa (Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, as redondilhas de
Camões), neste caso, em torno do amor.
• O primeiro verso
anuncia que o tema do poema é o amor, no entanto, no título, anuncia que
é um soneto «científico». Estamos, pois, a falar de ciência, mas de quê?
Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para execução de uma arte? Ou a
ciência que, frequentemente, é contraposta ao amor e que o explica como reação
química?
• A poesia / a arte tem
uma função estética: pretende deleitar os sentidos e as pessoas que a apreciam.
Por outro lado, “Se for antigo, seja. / Mas é belo / e como a arte: nem útil
nem moral.” (vv. 3-4-). Ou seja, na poesia/arte “não há moralidade, não há
certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem
preconceitos ou limitações de qualquer ordem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).
• Além disso, “a arte não
tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo
valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não
exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem.” (Célia Carneiro, Mensagens
12).
• Ao contrário dos poetas
modernistas, o «eu» explora os temas e as formas clássicas, como já vimos, em
oposição aos versos e linhas “devastados” desses modernistas, o que constitui
uma forma de subversão: ao retomar essas formas e temas clássicos, entra em
confronto com um dos traços modernistas: a regra de não ter regra (“Que me
interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto
é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe.” (vv. 5-8).
• O sujeito poético
propõe-se tratar o tema do amor num soneto. Questionando a antiguidade da
forma, contra-argumenta com o mundo: “também o mundo é e ainda existe” (v. 8).
No entanto, não vê qualquer vantagem na rima, o que poderá ser visto como
«limite» (v. 10), como determinante para a construção do soneto, mostrando a
sua indiferença (“deixa ser” – v. 10).
• Contudo, apesar de,
teoricamente, o poema ser uma forma clássica, há pontos comuns ao modernismo: a
ausência de rima como forma fixa, dado que também este seria um critério
rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher
/ (esta rimou, mas foi só por acaso.)” (vv. 9-12). O «eu» poético assume-se
como uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna.
O verso entre parêntesis, caracterizado pela linguagem coloquial, ilustra o
afastamento da tradição literária, visto que não corresponde ao registo de
língua exigido pelo soneto.
• De facto, após
manifestar indiferença pela rima (v. 9), surgem os versos 10 e 11 a rimar. O
sujeito poético sente a necessidade de referir a causa do facto, em discurso
parentético, sublinhando, assim, a liberdade formal que defende.
• O recurso à terceira
pessoa do plural e ao futuro do indicativo no verso 10 (“Dir-me-ão”) introduz
uma espécie de contra-argumento do sujeito poético: ao justificar a sua tese (a
subversão da tradição), entra numa espécie de diálogo com o leitor e antecipa,
deste modo, uma resposta à reação que aqueles que não partilham da sua opinião
poderão ter.
• Na quarta estrofe, o
«eu» aproxima-se imenso de Pessoa e do fingimento poético. Ele transita entre
as tradições antigas e as (já tradições) modernas, criando assim uma nova
poética, cujas características são as seguintes: não é rígida na forma de
seguir a tradição nem de romper com ela. O «eu» dialoga com as tradições,
subvertendo as regras precisamente por não as seguir rigorosamente. Exemplo
disso é este texto: ele (ela) escreve um soneto, mas um soneto “coxo” (v. 17) e
com linguagem coloquial.
• A ideia do fingimento
está bem evidente nos versos 15 e 16, quando o sujeito lírico afirma que os
seus versos são mentira, bem como o que mostra. O fingimento é a base da sua
criação poética, aliado à rejeição da obediência às regras formais.
• O sujeito poético,
socorrendo-se do fingimento poético pessoano, afirma que não pode dobrar-se
demasiado para falar de si e mostrar-se na “mentira que é o verso”. Em
simultâneo, não sente necessidade de abandonar por completo as formas poéticas:
adaptando-se às necessidades da expressão literária, o «eu» produz um soneto
«coxo» plenamente consciente das limitações impostas por um soneto, mas não
obedecendo a essas limitações.
• De facto, este soneto
não segue o modelo do soneto clássico: não tem14 versos, tem 20; não é
constituído por 2 quadras e 2 tercetos, mas por 5 quadras; não usa uma
linguagem elevada, mas uma linguagem coloquial e até irónica: “se é soneto
coxo”, “paciência” (vv. 17-18); é maioritariamente composto por versos brancos,
com um desvio (a rima emparelhada em “ser” e “mulher” e cruzada em “paciência”
e “ciência”); os versos são maioritariamente decassilábicos, mas alguns
apresentam uma métrica diferente.
• O diálogo com a
tradição reside precisamente aqui: o sujeito escreve um soneto, explora ainda o
tema do amor (“dar mote ao amor”) e depois tem a sabedoria (“ciência”) de se
desviar do tema. O «eu» conhece a técnica tem ciência e desvia-se da tradição a
partir da tradição, criando a sua própria arte (última estrofe).
• A última estrofe justifica
o título, concluindo a linha de pensamento, na indiferença em relação à
estrutura do “soneto” e relativamente à construção do poema: afirmar a
importância do tratamento do tema “amor” e promover o desvio poético é ciência.
É isso que encontramos no poema e no título – um soneto (anunciado) científico
(enunciando princípios de arte poética) a fingir (porque apenas é
anunciado, mas não concretizado).
● Arte poética
• A criação poética de
Ana Luísa Amaral assenta, pois, no fingimento e na liberdade criativa, que
passa pela rejeição das regras sociais. A criação poética estriba-se, portanto,
na criatividade e espontaneidade e inspira-se em temas do quotidiano, como o amor,
neste caso. A desobediências às regras formais justifica-se exatamente pelo
facto de a obediência às mesmas poder comprometer a criatividade do poeta.
• Ao contrário dos
modernistas, Ana Luísa Amaral não nega por completo a tradição literária, mas
também não se limita às suas regras. A transgressão e a inovação estão
presentes, exatamente na forma de adaptar os modelos à sua expressão,
subvertendo-os frequentemente.
Bibliografia:
WILLMER, Rhea Sílvia, Ana Luísa
Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea
em português
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