Português: Análise do poema "Soneto científico a fingir", de Ana Luísa Amaral

sexta-feira, 12 de junho de 2020

Análise do poema "Soneto científico a fingir", de Ana Luísa Amaral


Contextualização do poema

Este poema pertence ao quarto livro de Ana Luísa Amaral, intitulado E Muitos os Caminhos, e nele a poeta associa-se à tradição poética, ao mesmo tempo que se lhe opõe, subvertendo-a, modificando-a, o que quer dizer renovando-a.


Título

• A poeta chamou «soneto» ao poema, no entanto, formalmente, foge a essa definição, dado que é constituído por 5 quadras, não sendo, além disso, nenhuma delas um terceto.

• O título remete-nos, pois, em simultâneo, para a tradição clássica (foi uma tipologia textual cultivada por Petrarca, Camões, etc.), para a herança modernista de Fernando Pessoa e a sua teoria do fingimento poético (em “Autopsicografia”, por exemplo, enquanto o título desta composição clarifica desde logo que se trata de um soneto “a fingir”) e para a modernidade/contemporaneidade, para um diálogo com todas estas possibilidades.


Análise

• Na primeira estrofe, o sujeito poético remete para outras formas poéticas: as composições de mote e glosa (Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende, as redondilhas de Camões), neste caso, em torno do amor.

• O primeiro verso anuncia que o tema do poema é o amor, no entanto, no título, anuncia que é um soneto «científico». Estamos, pois, a falar de ciência, mas de quê? Ciência de si mesmo? Consciência? Conhecimento para execução de uma arte? Ou a ciência que, frequentemente, é contraposta ao amor e que o explica como reação química?

• A poesia / a arte tem uma função estética: pretende deleitar os sentidos e as pessoas que a apreciam. Por outro lado, “Se for antigo, seja. / Mas é belo / e como a arte: nem útil nem moral.” (vv. 3-4-). Ou seja, na poesia/arte “não há moralidade, não há certo nem errado, há uma manifestação livre das emoções de quem a produz, sem preconceitos ou limitações de qualquer ordem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Além disso, “a arte não tem um valor utilitário, surge de um momento de inspiração e transporta consigo valores estéticos, como a beleza, o equilíbrio e a harmonia que poderão ou não exercer influência sobre aqueles que acedem à sua mensagem.” (Célia Carneiro, Mensagens 12).

• Ao contrário dos poetas modernistas, o «eu» explora os temas e as formas clássicas, como já vimos, em oposição aos versos e linhas “devastados” desses modernistas, o que constitui uma forma de subversão: ao retomar essas formas e temas clássicos, entra em confronto com um dos traços modernistas: a regra de não ter regra (“Que me interessa que seja por soneto / em vez de verso ou linha devastada? / O soneto é antigo? Pois que seja: / também o mundo é e ainda existe.” (vv. 5-8).

• O sujeito poético propõe-se tratar o tema do amor num soneto. Questionando a antiguidade da forma, contra-argumenta com o mundo: “também o mundo é e ainda existe” (v. 8). No entanto, não vê qualquer vantagem na rima, o que poderá ser visto como «limite» (v. 10), como determinante para a construção do soneto, mostrando a sua indiferença (“deixa ser” – v. 10).

• Contudo, apesar de, teoricamente, o poema ser uma forma clássica, há pontos comuns ao modernismo: a ausência de rima como forma fixa, dado que também este seria um critério rígido: “Dir-me-ão que é limite: deixa ser. / Se me dobro demais por ser mulher / (esta rimou, mas foi só por acaso.)” (vv. 9-12). O «eu» poético assume-se como uma poeta, uma mulher que escreve dialogando com as poéticas clássica e moderna. O verso entre parêntesis, caracterizado pela linguagem coloquial, ilustra o afastamento da tradição literária, visto que não corresponde ao registo de língua exigido pelo soneto.

• De facto, após manifestar indiferença pela rima (v. 9), surgem os versos 10 e 11 a rimar. O sujeito poético sente a necessidade de referir a causa do facto, em discurso parentético, sublinhando, assim, a liberdade formal que defende.

• O recurso à terceira pessoa do plural e ao futuro do indicativo no verso 10 (“Dir-me-ão”) introduz uma espécie de contra-argumento do sujeito poético: ao justificar a sua tese (a subversão da tradição), entra numa espécie de diálogo com o leitor e antecipa, deste modo, uma resposta à reação que aqueles que não partilham da sua opinião poderão ter.

• Na quarta estrofe, o «eu» aproxima-se imenso de Pessoa e do fingimento poético. Ele transita entre as tradições antigas e as (já tradições) modernas, criando assim uma nova poética, cujas características são as seguintes: não é rígida na forma de seguir a tradição nem de romper com ela. O «eu» dialoga com as tradições, subvertendo as regras precisamente por não as seguir rigorosamente. Exemplo disso é este texto: ele (ela) escreve um soneto, mas um soneto “coxo” (v. 17) e com linguagem coloquial.

• A ideia do fingimento está bem evidente nos versos 15 e 16, quando o sujeito lírico afirma que os seus versos são mentira, bem como o que mostra. O fingimento é a base da sua criação poética, aliado à rejeição da obediência às regras formais.

• O sujeito poético, socorrendo-se do fingimento poético pessoano, afirma que não pode dobrar-se demasiado para falar de si e mostrar-se na “mentira que é o verso”. Em simultâneo, não sente necessidade de abandonar por completo as formas poéticas: adaptando-se às necessidades da expressão literária, o «eu» produz um soneto «coxo» plenamente consciente das limitações impostas por um soneto, mas não obedecendo a essas limitações.

• De facto, este soneto não segue o modelo do soneto clássico: não tem14 versos, tem 20; não é constituído por 2 quadras e 2 tercetos, mas por 5 quadras; não usa uma linguagem elevada, mas uma linguagem coloquial e até irónica: “se é soneto coxo”, “paciência” (vv. 17-18); é maioritariamente composto por versos brancos, com um desvio (a rima emparelhada em “ser” e “mulher” e cruzada em “paciência” e “ciência”); os versos são maioritariamente decassilábicos, mas alguns apresentam uma métrica diferente.

• O diálogo com a tradição reside precisamente aqui: o sujeito escreve um soneto, explora ainda o tema do amor (“dar mote ao amor”) e depois tem a sabedoria (“ciência”) de se desviar do tema. O «eu» conhece a técnica tem ciência e desvia-se da tradição a partir da tradição, criando a sua própria arte (última estrofe).

• A última estrofe justifica o título, concluindo a linha de pensamento, na indiferença em relação à estrutura do “soneto” e relativamente à construção do poema: afirmar a importância do tratamento do tema “amor” e promover o desvio poético é ciência. É isso que encontramos no poema e no título – um soneto (anunciado) científico (enunciando princípios de arte poética) a fingir (porque apenas é anunciado, mas não concretizado).


Arte poética

• A criação poética de Ana Luísa Amaral assenta, pois, no fingimento e na liberdade criativa, que passa pela rejeição das regras sociais. A criação poética estriba-se, portanto, na criatividade e espontaneidade e inspira-se em temas do quotidiano, como o amor, neste caso. A desobediências às regras formais justifica-se exatamente pelo facto de a obediência às mesmas poder comprometer a criatividade do poeta.

• Ao contrário dos modernistas, Ana Luísa Amaral não nega por completo a tradição literária, mas também não se limita às suas regras. A transgressão e a inovação estão presentes, exatamente na forma de adaptar os modelos à sua expressão, subvertendo-os frequentemente.

Bibliografia:

WILLMER, Rhea Sílvia, Ana Luísa Amaral e Ana Cristina César: modos de pensar o feminino na poesia contemporânea em português

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