Português

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Análise da Cena 9 do Ato II de Frei Luís de Sousa


 
Após a partida de Manuel de Sousa, Maria e Telmo, D. Madalena está finalmente só – ou quase, pois tem a companhia de Frei Jorge –, no local onde se dará, pouco depois, o encontro fatal com o Romeiro: a sala dos retratos.
 
Esta cena é constituída por uma única fala, sob a forma de monólogo, de Frei Jorge. Nela, o frade, que até ao momento se tinha mantido distante de agouros e sempre racional, qual coro da tragédia clássica, deixa-se contaminar pelo clima ominoso criado e também ele começa a adivinhar que se aproxima uma tragédia.
 
Deste modo, podemos concluir que a função deste monólogo é a seguinte: Frei Jorge transmite os seus pensamentos mais íntimos, reafirmando, angustiadamente, o pressentimento de uma iminente tragédia, que ele quer esconder a todo o custo da sua família. Por outro lado, o monólogo, para o leitor, constitui uma preparação, um indício trágico de uma desgraça futura.
 
Frei Jorge desempenha, de novo, uma função idêntica à do Coro da tragédia clássica. As suas palavras lembram-nos mais uma vez a sua atuação moderada e sensata ao longo da peça, procurando sempre minimizar as preocupações da família e moderar as suas reações. A apreensão que, agora, manifesta é, inevitavelmente, de mau agouro.

domingo, 1 de janeiro de 2023

"Oh Girl", Chi-Lites


1972

Análise do poema "O Gondoleiro do Amor"

     Este poema é apresentado como uma barcarola, uma composição poética característica da poesia medieval. O vocabulário também é medievalista: gondoleiro. Isto são características românticas, ou seja, estamos perante o regresso ao medievalismo:
                - ritmo ágil;
                - uso da redondilha maior e o nome "barcarola";
                - vcabulário;
                - toda a sensualidade que existe no poema:
                    Ex.:    "Como as noites sem luar...
                                São ardentes, são profundas,
                                Como o negrume do mar."
    O sujeito poético descreve a amada desde os olhos, voz, sorriso, seios, até ao colo. Ignora os cabelos. Isto é uma marca de sensualismo e medievalismo.

A engorda


 

sábado, 31 de dezembro de 2022

Última homenagem a Pelé

Análise do poema "Os Três Amores"


             O poema é constituído por três sétimas com rima emparelhada, cruzada e interpolada, de acordo com o esquema rimático ABCADDB, com um verso na primeira estrofe, e versos decassílabos.

            O tema é o amor, tratado em três partes distintas, mas de construção paralela: I: Tasso – Eleonora; II: Romeu – Julieta; III: D. Juan – Júlia. Os nomes são exemplificativos, porque personificam uma situação própria e simbólica. A mudança de personagens condiciona a mudança de ambiente. A construção formal é a mesma nas três estrofes; muda o motivo, os símbolos e o ambiente. Isto aponta para a divisão do «eu» romântico abstrato concretizado em personagens reais. Se atentarmos na data de escrita do poema (setembro de 1866), podemos especular que a composição tenha sido escrita para a sua amada, a atriz portuguesa Eugénia Câmara. Nela, o «eu» cita três diferentes situações vivíveis com a mulher amada, aludindo a três obras importantes da literatura mundial para descrever esses momentos com a mulher: a ópera Torquato Tasso, a peça Romeu e Julieta e El Burlador de Sevilla o El Convidado de Piedra.

            Assim, a primeira estrofe remete para a mencionada ópera, da autoria de Gaetano Donizetti, que decorre na cidade italiana de Ferrara e se baseia na vida do poeta Torquato Tasso, que vive um romance cheio de desencontros e escândalos que termina com a perda da amada. O sujeito poético encarna o poeta italiano e retrata o amor de forma idealizada, um amor não realizado, embora sublime e sereno. Com efeito, há uma apropriação da história dos amores de Tasso por Eleonora, nobre de Ferrara a quem ele dedicara os seus versos e que acaba ensandecido pela ideia fixa de perseguição religiosa. Tasso é o cantor do sofrimento amoroso, que chora (canta) a cidade da sua amada, cuja visão risonha lhe afugenta o sofrimento e a solidão.

            A segunda estrofe remete para a peça Romeu e Julieta, também ela situada em Itália, concretamente na cidade de Verona, onde decorrem os amores impossíveis e contrariados entre dois jovens de famílias rivais, uma paixão que termina de forma trágica com a morte dos dois apaixonados. O sujeito poético deixa de lado o plano espiritual e passa ao terreno amoroso. Para isso, pede a ajuda dos ícones da literatura amorosa, ainda que trágica: Romeu e Julieta. Ao encarnar o herói de Shakespeare, o «eu» alude ao amor transcendental, isto é, ao amor que, apesar das barreiras sociais que o obstaculizem, se concretiza. O recurso à conjunção coordenativa copulativa «e» no último verso une as duas figuras femininas referidas no poema: Eleonora é também Julieta, isto é, são duas mulheres numa (quando concluída a terceira estrofe, serão três numa). Dito de outra forma, a mulher amada pelo sujeito poético é Eleonora, mas também é Julieta e ainda Júlia, ou seja, ele deseja as várias facetas da mulher. Para ele, o amor não possui apenas uma face, mas várias, e a mulher é, ao mesmo tempo, pura e sensual.

            Por sua vez, a terceira estrofe contém referências à obra de Tirso de Molina, cujo protagonista é D. Juan, um jovem belo que seduz Júlia, uma rapariga espanhola de origem nobre que assassina o pai. Estamos na presença de um amor sensual, carnal e amaldiçoado, cujo desenlace é igualmente trágico. O amor platónico cede lugar ao desejo ardente, à volúpia e à paixão descontrolada: “Na volúpia das noites andaluzas / O sangue ardente em minhas veias rola…”. Como não poderia deixar de ser, o vocabulário traduz esse amor/paixão/desejo, através de uma linguagem repleta de erotismo: ”sangue”, “ardente”, “leito”, “seio”, “desfaço-te”. Atente-se também na expressão «Eu morro», que alude à petit mort, isto é, ao orgasmo, se, por acaso, ele lhe desfizer a mantilha. Em suma, esta estrofe alude claramente à iniciação amorosa de D. Juan por Júlia, a espanhola fogosa.

Análise do poema "Boa noite"


             O poema “Boa noite”, de 1868, faz parte da obra Espumas Flutuantes, único livro de Castro Alves publicado em vida, e narra, através de um pretenso diálogo, com características de monólogo, uma aventura amorosa que se desenrola em dez quadras, onde se dá nota do envolvimento do «eu» poético com a mulher amada através dos ritmos e formas da natureza, que testemunham o drama da separação dos amantes, no domínio do tempo, entre a escuridão da noite e os primeiros raios da aurora (VENTURELLI, Suzette, in Arte e Tecnologia…).

            O poema contém uma epígrafe, que é a primeira fala de Julieta da cena V de Romeu e Julieta, em francês, e que introduz o tema do poema. Nesse passo da obra de Shakespeare, Romeu apressa-se para partir, pois o dia está a nascer, o que pode denunciar a sua presença ali, nos jardins dos Capuletos, e, consequentemente, o encontro furtivo de ambos, porém Julieta tenta convencê-lo de que o canto que ouvem pertence ao rouxinol, ave que canta à noite, e não à cotovia, que anuncia a chegada do dia. Isto significa que Julieta não quer que o amado parta. Esta é uma característica tipicamente romântica. De facto, a mulher desempenha um papel ativo no relacionamento amoroso, procurando impedir a partida do «eu», fazendo uso das artimanhas da sedução, nomeadamente apertando-o contra os seus seios, entre beijos, abraços e, sobretudo, descobrindo o peito. Perante este cenário, quem deixaria essa alcova?

            A composição abre com o «eu» poético anunciado que “é tarde”, por isso ele vai-se embora. Estas atitudes encontram-se noutros poemas de Castro Alves e torno da figura de D. Juan, já que este seduz a mulher e depois abandona-a. No entanto, neste poema, esse esquema é desrespeitado, visto que o abandono não se concretiza, dando lugar ao jogo sensual, que vai da necessidade de ir ao desejo de ficar. De facto, nas duas estrofes iniciais, o sujeito lírico, mesmo anunciando a sua partida, deseja ficar e sente-se seduzido pela amada: “Boa-noite, Maria! É tarde…. é tarde… / Não me apertes assim contra teu seio.”; “Boa-noite!... E tu dizes – Boa noite. / (…) / Mas não digas assim por entre beijos… / Mas não mo digas descobrindo o peito, /– Mas de amor onde vagam meus desejos.”

            Na terceira estrofe, o sujeito poético chama por Julieta e refere-se a ela até à oitava estrofe, e fá-lo através de uma linguagem sensual e erótica, que se estende por todo o poema, numa gradação de volúpia que alimenta ainda mais a vontade de ficar: “Desmanchando o roupão, a espada nua – / O globo de teu peito entre os arminhos”; “os teus contornos”; “afago de meus lábios mornos”. A descrição do espaço amoroso, tal como a descrição do corpo da mulher, é alimentada com o fogo da paixão. Nesse passo, as imagens ligam-se à noite, o tempo dos amantes: “Boa-noite”, “a lua, “é tarde”, “cabelo preto”, “a frouxa luz da alabastrina lâmpada”, “negro e sombrio firmamento”. Na sétima estrofe, encontra-se outra cena sensual em que ocorrem imagens eróticas como a personificação da luz a lamber os contornos da mulher e a menção a um fetiche, sugerindo o ato sexual pela aproximação dos lábios do «eu» poético aos pés da mulher amada: “A frouxa luz da alabastrina lâmpada / Lambe voluptuosa os teus contornos… / Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos / Ao doudo afago de meus lábios mornos.”

            Note-se, por outro lado, que há a fragmentação da mulher, aludindo a uma possível infidelidade amorosa. De facto, a figura feminina duplica-se: primeiro é Maria, depois Julieta, Marion e, por último, Consuelo. Estas quatro mulheres representam uma única aventura amorosa que decorre entre a noite e o dia. O “Boa noite”, que, de início, soa como forma de cumprimento noturno de despedida e separação (o «eu» poético deseja ir-se embora), no final parece configurar-se como abandono e entrega no reduto da amada, mesmo que se trate de uma entrega dúbia, pois o dormir, no contexto do “negro e sombrio firmamento” do cabelo da mulher, assume ares de morte, de mergulho na noite, de dissolução e desdobramento do sujeito poético num Eros infinito, negro e sombrio, ligado ao reino de Tânatos, no desenvolvimento do poema.

            O «eu» poético, assim como Don Juan, não se contenta com uma única mulher, quere-as todas. Ele encontra-se em busca permanente pela mulher ideal, por isso, a mulher que já foi Maria, na primeira estrofe, e já foi Julieta, na penúltima estrofe, é Marion, musa de Victor Hugo, e será, na última estrofe, Consuelo, “personagem de George Sand, que viria dar o título à poesia inspirada por Agnèse Murri em 1871.

            Um elemento que desempenha papel importante no poema é a natureza, que funciona como cenário dos acontecimentos, mas cujo papel não se esgota aí, pois reflete a mulher e até o «eu», conferindo grandeza à beleza feminina e ao próprio sentimento amoroso. Assim, a natureza é personificada e associada à mulher e às suas formas. Na segundo estrofe, o peito da mulher é apresentado como um mar de amor onde vagam os desejos do sujeito lírico. Na terceira, o canto da calhandra é comparado ao hálito da amada; enquanto na quarta o cabelo preto é a noite; na quinta, o peito é a lua; na sexta, as cortinas são as asas do arcanjo dos amores; na sétima, a lâmpada lambe voluptuosa os contornos de Julieta; na oitava, das teclas dos seios saem harmonias e escalas de suspiros; na décima, o cabelo feminino é associado a um negro e sombrio firmamento.

            Para os dois apaixonados, a noite é o tempo do encontro, da sua vida enquanto amantes, enquanto que, para os restantes, é momento da «morte». O dia, por sua vez, é o momento da separação do casal, portanto de morte amorosa, e de vida para a realidade dos homens. Atente-se no seguinte verso: “A lua nas janelas bate em cheio”. Metaforicamente, podemos vislumbrar aqui a ideia da penetração carnal, dado que a janela, sendo um orifício, indicia a imagem da penetração.

            Por outro lado, o poema é bastante rico em matéria de recursos estilísticos. Destacam-se, desde logo, as anáforas, por exemplo nos versos 16 e 17, bem como no final da quarta e no início da quinta estrofe: “É noite ainda”; “É noite, pois…”. Segue-se a hipérbole, nomeadamente na comparação dos versos 37 e 38 (“Como um negro e sombrio firmamento, / Sobre mim desenrola teu cabelo…”), onde o cabelo da mulher amada é comparado à escuridão da noite infinita, enfatizando o poder misterioso que este tem sobre o sujeito poético, o que acentua a hipótese da relação de Eros com a morte (negro e sombrio). Destacam-se também a enumeração e a gradação, que surgem sobretudo na oitava estrofe, quando das teclas do seio da amada o «eu» bebe “harmonias / Que escalas de suspiros”, ou na nona, quando a cavatina do delírio “Ri, suspira, soluça, anseia e chora…”. Por último, considere-se a apóstrofe, que é usada principalmente para pôr em evidência a(s) amada(s). A presença do hipérbato (“Se a estrela d’alva os derradeiros raios / Derrama nos jardins de Capuleto”, etc.) conferem uma certa feição barroca ao texto, mas de exaltação à vida, não de melancolia e pessimismo.

            O poema descreve quatro mulheres, que se poderão resumir a uma: Maria. A composição parte de Maria, passa pela platónica Julieta de Shakespeare, atinge o seu clímax na figura de Marion (Delorme) – a intensa e sexual musa de Alfred de Vigny e Victor Hugo – e termina em Consuelo, o protótipo de musa (grande cantora lírica) de George Sand, não tanto platónica ou sexual como Julieta ou Marion.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Análise do poema "Prometeu", de Castro Alves


             Prometeu é uma figura da mitologia grega que teria sido o criador da humanidade, que amassara em argila e água ou com as suas lágrimas. O mito é abordado por Hesíodo na sua Teogonia e, depois, em O Trabalho e os Dias: Prometeu, “hábil e de versátil astúcia”, era um dos filhos de Jápeto e Clímene, filha do Oceano. Os outros eram Atlas, o “esforçado”, Menécio”, o “glorioso”, e Epimeteu, o “torpe”. Enquanto reinou Cronos, homens e deuses conviveram pacificamente, mas, posteriormente, Zeus submeteu os primeiros. Para terminar com uma querela entre as divindades e os humanos, era necessário que se oferecesse um sacrifício a Zeus. Prometeu dividiu um boi em duas partes, cobriu a carne boa com a pele do animal e colocou os ossos debaixo de uma camada de gordura apetitosa. Como represália, Zeus negou entregar o fogo aos homens, que eram os protegidos de Prometeu.
            Epimeteu e Prometeu tinham sido encarregados de criar o ser humano e todos os animais: o primeiro concretizaria a criação e o segundo supervisionaria a tarefa. Deste modo, Epimeteu atribuiu a cada animal os vários dons (rapidez, força, coragem, asas, etc.),mas, quando chegou a vez do homem, formou-o do barro e, como já havia gastado todos os recursos nos outros animais, recorreu a Prometeu, que então roubou o fogo aos deuses, que era seu exclusivo, e o entregou aos mortais num galho oco, ensinando-lhes também várias artes. Tudo isto assegurou a superioridade dos homens sobre os demais animais.
            Como castigo, Zeus ordenou a Hefesto que acorrentasse Prometeu ao monte Cáucaso, onde todos os dias uma águia dilacerava o seu fígado, que, de seguida, se regenerava. O sofrimento só terminou quando Hércules, séculos depois, concluídos os seus doze trabalhos, matou a águia e o libertou. Além disso, Zeus ordenou a Hefesto que escupisse a estátua de uma mulher e pediu a Hermes que lhe oferecesse um espírito cínico e um caráter volúvel. Assim, foi criada Pandora (que mais tarde se casou com Epimeteu), cuja caixa continha todos os males e que, ao ser aberta, se espalharam e atormentaram a humanidade. No fundo da caixa, ficou somente a esperança para suavizar a condição humana.
 
            Este poema de Castro Alves pode dividir-se em duas partes: na primeira, dá-se a descrição do sofrimento de Prometeu, enquanto, na segunda, se estabelece a comparação da figura mítica com o povo de África.
            Na primeira estrofe, é descrita a agonia de Prometeu no cumprimento do seu castigo e feita a sua descrição, destacando-se a sua capacidade de resistências às agruras a que é submetido, tendo como consolo o pranto das Nereidas. Assim, é arrogante / desafiador, forte, “sublime no sofrer” e resistente (“vencido, – não domado”), vive em agonia (“Na sublime agonia arqueja Prometeu”), preso ao monte Cáucaso (“O Cáucaso é seu cepo”), constituindo o céu o seu sudário. O dramatismo da cena – o de alguém amarado a um monte, de olhar cravado no sol, arquejando – é acentuado pela referência crua ao abutre que lhe rói as entranhas.
            Na estrofe seguinte, é destacada a solidão de Prometeu: ninguém o consola, todos o abandonaram. Enquanto isso, no Olimpo, a morada dos deuses, Cupido brinca “por entre os seios nus” e as bacantes correm pelas montanhas dançando, nos seus tradicionais bacanais. Está, pois, aqui presente o contraste entre a agonia e a solidão de Prometeu e o ambiente de festa, erotismo e até alucinação vivido entre os deuses. Apenas um consolo existe para ele: o pranto das Nereidas.
            Posteriormente, a figura de Prometeu transforma-se na alegoria do povo. Assim, tal como a figura mitológica, o povo é infeliz, é um mártir eterno, tendo como algoz, não a águia, mas os maus reis e as leis injustas, e sendo o poder o instrumento de tortura. O mito é, assim, nacionalizado e transferido de espaço: Prometeu agoniza agora no continente sul-americano (“Era pequeno o Cáucaso… amarram-te nos Andes.”). O mártir já não é a figura mitológica, mas o povo, um “mártir eterno”, um “Prometeu moderno”, enquanto “O século da luz olha… caminha… ri…”. A herança do desenvolvimento humano é distribuída de forma desigual, e a figura da divindade castigada cruelmente – no caso do poema, encarnada no povo – anónima, portanto –, retorna sob a forma da crueldade, não dos deuses, mas dos “maus reis”.
            Os versos que se seguem aludem ao Iluminismo: “E enquanto tu, Titão, sangrento arcas aí, / O século da luz olha… caminha… ri…”. Ou seja, em pleno século das luzes, dominado por espíritos racionais e esclarecidos, Prometeu – o povo – continua a agonizar, só e desprezado por essas mentes. Estes versos mostram claramente a sua indiferença pelo sofrimento alheio. O Prometeu moderno – o povo – será cantado pelo «eu» poético, que coloca o seu discurso ao seu serviço enquanto espaço público para discussão dos destinos da humanidade: “A musa do poeta irá – filha do mar – / O oceano de sua alma… em cantos derrama…”.
            O importante no mito clássico era o castigo infligido a Prometeu; agora temos a solidão. O herói desafia o destino e sofre as consequências. Há uma transformação da figura mitológica num herói romântico, que, mais que o herói castigado, é o herói que fica só. Há um paralelo entre este herói e o homem negro, chamado «povo infeliz», povo mártir eterno. O poeta romântico tem consciência da sua missão: defender e cantar o negro. Assim sendo, o objetivo do poema é criticar a sociedade de então; está-se num século de luz onde ainda se pratica a escravatura, perante a indiferença geral.

Análise do poema «O "adeus" de Teresa»


             O tema deste poema, que nos relata o processo de conhecimento e descoberta amorosa entre o sujeito poético e Teresa, até ao seu fim, é a despedida. Nesta situação, não se pode falar propriamente de engano ou traição, porque não há enganos quando ambos sabem o que querem.

            Nele encontramos todos os elementos de uma narrativa: tempo, espaço, ação e personagens (ele, ela e o outro). Tudo começa pelo enamoramento, dominado pela paixão. Há uma partida do «ele» e uma volta que depara com uma situação diferente que motiva a escrita do texto:

enamoramento: paixão
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partida      /      volta
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modificação
            Cada um dos versos iniciais das quatro estrofes apresenta uma nota temporal que traduz um momento da relação entre o casal enamorado:
- “A vez primeira que eu fitei Teresa” (v. 1);
- “Uma noite… entreabriu-se um reposteiro” (v. 7);
- “Passaram tempos… séc’los de delírio” (v. 13);
- “Quando voltei… era o palácio em festa!...” (v. 19).
Assim, o primeiro da estrofe inicial marca o primeiro encontro, remetendo desde logo para um forte envolvimento amoroso, arrebatador como a corrente e envolvente como os giros da valsa(comparação): “Como as plantas que arrasta a correnteza, / A valsa nos levou nos giros seus…”. Atente-se na presença da aliteração em /r/ (“arrasta a correnteza”), que sugere o ruído da dança, e em /s/ (“valsa nos giros seus”), que insinua o farfalhar das sedas das vestes de Teresa. Por sua vez, o hipérbato do verso 1 realça a noção de tempo, marcado o início do relacionamento, e a figura de Teresa, que sobressai por constituir a palavra rimante. O hipérbato do segundo verso, colocando o nome “correnteza” após o verbo, indicia o arrebatamento que caracterizou este primeiro encontro, além da própria valsa, o seu ritmo e passos, intensificados pela comparação. Por sua vez, a metonímia “A valsa nos levou nos giros seus” significa que o par amoroso se deixou levar pela dança. A despedida ocorrida nesta estrofe é feito num clima de grande emoção: “«Adeus» eu disse-lhe a tremer co’a fala”. Esta é a despedida típica de um casal imerso na paixão.

            O segundo momento da relação consiste na concretização do amor do casal através da sugestão do ato sexual. O hipérbato do verso 2 (“E da alcova saía um cavaleiro”) envolve a figura num ambiente de mistério, disfarçando, pelo recurso à terceira pessoa, a personagem que o verso seguinte esclarece ser o próprio «eu», que beija uma mulher sem véus, isto é, Teresa. Este estratagema desperta, naturalmente, a curiosidade, mesmo que por breves instantes, relativamente àquela figura. As aliterações em /d/ e /b/ em “inda beijando” sugerem o ruído do beijo. A despedida, neste segundo momento, ocorre após um momento de amor tórrido, constituindo uma separação temporária, em plena vivência da paixão que os une.

            O terceiro momento reafirma o caráter intenso do romance e a partida do sujeito poético, desta vez por um período de tempo mais longo, sugerindo que os encontros amorosos que decorreram nesse período foram muitos e intensos: “Passaram-se tempos… séc’los de delírio / Prazeres divinais… gozos do Empíreo”. Note-se a presença de várias hipérboles nesta estrofe: “séc’los de delírio”, “prazeres divinais”, “gozos do Empíreo”, as quais intensificam a relação amorosa e prolongam a ideia de arrebatamento da primeira, bem como as aliterações em /p/, /t/ e /d/ (“Passaram tempos… delírio”; “prazeres divinais… Empíreo…”), que sugerem o ritmo e a sonoridade da estrofe e o arroubo da paixão. A despedida neste caso dá-se antes de o «eu» viajar, prometendo voltar, assumindo, assim, uma carga de maior dramatismo, até porque a figura feminina fica muito chorosa.

            O quarto momento corresponde à rutura amorosa: de acordo com a perspetiva do sujeito poético, Teresa está apaixonada pelo outro homem (“Foi a última vez que eu vi Teresa!...”). O uso do pronome pessoal maiusculado (“Ela”) enfatiza a figura feminina, destacando-a no contexto da festa, demonstrando o espanto do sujeito poético ao deparar com uma cena inimaginável para si – encontra-la com outro homem – e invertendo a posição de dominador e presa na relação amorosa. O nome «lares» aponta também para o espaço geográfico onde o «eu» lírico mora, o que evidencia que ele e Teresa pertencem a espaços diferentes. A assonância em /a/ e /e/ (“era o palácio em festa”) sugere a atmosfera festiva e musical que rodeia Teresa. Esta última despedida ocorre quando o sujeito lírico regressa e a encontra numa festa acompanhada por outro homem, com o qual canta junto à orquestra.

            Por outro lado, as quatro reações de Teresa às despedidas – “corando” (v. 6), “entre beijos” (v. 12), “em soluços” (v. 18) e “arquejando” (v. 24) – evidenciam a trajetória da relação, marcada por uma evolução (de “corando” para “entre beijos”), seguida de um declínio (de “em soluços” para “arquejando”). Ou seja, a relação amorosa evolui de um amor repentino para a sua realização sexual e desta para o distanciamento e a rutura, uma situação característica do Romantismo.

            O título do poema aponta, desde logo, para a despedida, concretamente através do uso do vocábulo “adeus”, colocado entre aspas e antecedido do determinante artigo definido “o”, e que é repetido várias vezes ao longo do texto. Por outro lado, o resto do título remete a responsabilidade da última despedida para afigura de Teresa, quando quem até aí partia e se despedia era o «eu», o elemento do par amoroso que dominava a relação, que definia quando os encontros tinham lugar, enquanto ela se limitava a responder ao adeus, murmurar, chorar e soluçar. Esta ideia é confirmada pelo recurso ao adjetivo «presa», no verso “Adeus lhe disse conservando-a presa”, que sugere que ela está amarrada a ele, podendo também ver-se nela o resultado da caça. Tudo isto corresponde a uma certa tradição literária, que apresenta o homem como o elemento dominante na relação e a mulher, o dominado e submisso. No entanto, o título parece contradizer esta ideia, pois aponta Teresa como a responsável pela separação, bem como a traição final, pois, na época, o poder de seduzir e de fazer o homem sofrer é sempre da mulher.

            No que diz respeito à conceção da figura feminina, Teresa não corresponde ao modelo tradicional da mulher apaixonada, recatada e submissa que permanece fiel ao homem amado, que partiu e está ausente, e que encontramos, por exemplo, nos poemas homéricos, encarnada na personagem de Penélope, a esposa de Ulisses, que se lhe manteve fiel durante os vinte anos em que esteve ausente de casa (dez da guerra de Troia e dez do regresso ao torrão natal). Pelo contrário, Teresa afirma-se como uma mulher independente e livre que procura satisfazer os seus desejos e prazeres.

            Formalmente, o poema é constituído por versos decassílabos, com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB, consoante (“Teresa” / “correnteza”) e rica (“seus” – determinante – “adeus” – nome).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A essência do Natal - Gerhard Haderer

Análise do poema "Vozes de África", de Castro Alves


             “Vozes de África” é um poema escrito por Castro Alves, composto em São Paulo, em 11 de junho de 1868. Trata-se de um texto épico sobre África, constituído por dezanove estrofes, compostas por seis versos cada (sextilhas), com rima emparelhada e interpolada, de acordo com o esquema AABCCB. Por outro lado, é interessante notar que estamos perante um texto inacabado, como o demonstram as linhas pontilhadas entre os versos 42 e 43, 72 e 73, 78 e 79 e 108 e 109.

            O sujeito poético deste poema representa todo o continente africano, isto é, todos os homens e mulheres que eram forçados a abandonar a sua terra para trabalhar como escravos. Assim sendo, podemos deduzir que o «eu» lírico é, no fundo, todo um continente que sofre com os seus homens e mulheres que partem e sofrem todo o tipo de provações. De facto, o texto é construído a partir do ponto de vista do continente africano. Por outro lado, a composição poética denuncia o tráfico negreiro e a escravidão a que os negros eram sujeito e mostra as arbitrariedades e a injustiça que decorrem dessa cultura de aprisionamento da pessoa negra. Em simultâneo, esse mesmo sujeito poético suplica a intervenção e a bondade divinas e procura compreender os motivos que originam tal situação e tanto sofrimento.

            No início do poema, o «eu» personifica a África, por ser uma criação de Deus, e toma para si as palavras ditas por Jesus Cristo, seu Filho, há mais de dois mil anos, na tentativa de ser ouvido por Ele. O mesmo sucederá, ao longo do texto, com os outros continentes, sendo, pois, todos vistos como entidades humanas. Ele clama por Deus de forma desesperada pelo facto de nesses dois milénios ter implorado, em vão, a sua ajuda, no sentido de o libertar do sofrimento (a escravidão). De facto, a composição apresenta o negro como uma vítima e personifica a África (que correspondeu ao «eu»), que, desesperada, pede perdão pelos seus crimes. No fundo, trata-se de um olhar católico sobre a situação, radicado na visão europeia do mundo e das coisas, daí as referências religiosas referidas e a atitude de resignação que se adivinha. De facto, a África dirigir-se-ia não ao Deus monoteísta cristão, mas a um deus (com «d» minúsculo) ou aos deuses, em respeito pela sua cultura politeísta. Assim sendo, se é verdade que Castro Alves reconhece o sofrimento do povo africano, fá-lo a partir de uma perspetiva cristão europeia. África, como tantas vezes tem sucedido ao longo dos tempos, reclama da escravidão que tem sido imposta aos seus filhos e questiona a figura divina por a ter abandonado e se manter silenciosa relativamente ao seu drama.

            Na segunda estrofe, o sujeito lírico faz referência ao mito de Prometeu, o irmão de Atlas que roubou o fogo sagrado aos deuses do Olimpo para o dar aos seres humanos e, por isso, foi acorrentado ao Cáucaso, onde, diariamente, uma ave de rapina lhe comia o fígado, que se regenerava de seguida. Deste modo, Prometeu constitui o símbolo do sofrimento incessante, daí a sua comparação com África, para quem o sofrimento é igualmente eterno. Contudo, neste caso, ainda não se conhece o motivo da punição. No poema de Castro Alves, a ave de rapina que atormentava Prometeu é comparada ao sol ardente que todos os dias castiga o continente africano. Por seu turno, o próprio continente africano está preso por correntes à região litoral de Suez, na Itália: “E a terra de Suez – foi a corrente / Que me ligaste ao pé…”. Note-se que até 1859, quando o engenheiro Ferdinand de Lesseps construiu o Canal de Suez, o Médio Oriente era considerado parte do território africano. Só então houve a separação geográfica e cultural entre esses espaços. Esta nota coloca a Europa na dependência da África, ou seja, a cultura ocidental baseou-se no continente africano para construir muitas das suas formas de conhecimento. O castigo passa também pelo ambiente fragoso e desértico que caracteriza África.

            A partir da terceira estrofe até à sétima, África compara-se às suas irmãs, isto é, aos outros continentes, num percurso que vai do passado ao presente, e indaga a razão do seu sofrimento em relação à Europa e à Ásia: “Minhas irmãs são belas, são ditosas… / Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas”; ”A Europa – é sempre Europa, a gloriosa!...”. Embora se considere irmã dos outros continentes, torna claras as diferenças e queixa-se de que aquelas são as preferidas de deus, pois foram contempladas com coisas maravilhosas, enquanto que ela foi abandonada (v. 49), sendo que até o próprio deserto conspira, escondendo as suas lágrimas, para que Deus não as veja (vv. 46, 47 e48). África contempla as riquezas das suas duas “irmãs”, às quais mais tarde se vem juntar a traidora América. No que diz respeito à Ásia, é enfatizada a sua beleza e exuberância cultural e natural, descrita de forma idealizada, como é característico do Romantismo: os haréns do Sultão, a natureza (os animais – os elefantes brancos, os Himalaias, o rio Ganges, os corais), a cultura e os monumentos / templos, as crenças, os deuses, os pagodes. Relativamente à Europa, está presente uma dose apreciável de realismo crítico, de rancor e ironia quando se lhe refere. Assim, aquela é apelidada, ironicamente, de “Progressista” (quando era a responsável pelo tráfico negreiro), de mulher vaidosa, dominadora e meretriz. Por isso, a voz de África solicita aos ícones da cultura que se libertem dos valores da “grande meretriz” presentes no “mármore de Carrara” (tipo de mármore branco ou azul-cinza de alta qualidade muito usado em esculturas, por exemplo, extraído na zona da cidade de Carrara, da região da Toscana, em Itália) e nos “hinos de Ferrara”, dado que a dominação europeia foi construída em cima da subjugação tirânica e violenta dos povos africanos, pelo que cabe à Europa uma contestação judicial (“litígio”). Ou seja, neste passo, sugere-se uma espécie de ressarcimento de todos os bens e danos cometidos com a exploração do ser africano.

            Contrastando com o poder da Europa e o exotismo exuberante da Ásia, a África só tem para mostrar a sua miséria: “Eu triste abandonada”; “Perdida marcho em vão! / Se choro… bebe o pranto a areia ardente”; “E nem tenho uma sombra de floresta…”. De um lado, encontram-se as irmãs “belas” e “ditosas”; do outro, ela perdida no deserto ígneo do seu sofrimento. Por isso, atormentada, África suplica a proteção salvadora da divindade, que parece, porém, indiferente: «Embalde aos quatro céus chorando grito: “Abriga-me, Senhor!...”».

            Na décima terceira estrofe, volta-se para o seu “Deus terrível”, questionando-o sobre se não chega já de dor e os motivos de tanto sofrimento: “E que é que fiz, Senhor? que torvo crime / Eu cometi jamais que assim me oprime / Teu gládio vingador?!”. Como estes versos indiciam, o «eu» deseja conhecer a origem do crime pelo qual padece até ao presente, isto é, encontrar as razões dos padecimentos africanos. Convém, a este propósito, fixar o seguinte: o poema contém diversas imagens bíblicas e referências religiosas, que o «eu» poético usa para criticar não apenas o sistema esclavagista, mas sobretudo a forma como a Igreja sustentava, através do seu discurso, o direito de os homens brancos escravizarem os seus congéneres negros. Esse discurso “justificava o tráfico atlântico pela transferência do cativo de um mundo africano de barbárie para a civilização cristã brasileira” (MAESTRI). Ora, um mundo civilizado jamais promoveria a escravidão do seu semelhante; ao fazê-lo, a Europa constituía um exemplo de barbarismo. Por outro lado, acusa Deus de ser alguém terrível e cheio de sentimentos de vingança e rancor, ligados à presença de Cam em África, cuja história está narrada no Génesis, livro que também dá conta da jornada épica do povo hebreu, o qual conheceu a escravidão no Egito até ser libertado por Moisés. Esse mesmo povo e o seu sofrimento no cativeiro seriam vingados por Javé. Embora em nenhum passo o referido texto dê a entender que Cam e os seus descendentes se exilaram em África, o uso do nome «vingança» no poema parece indiciar a referência a esse povo.

            A décima quarta estrofe parece fornecer o motivo, a culpa original de África, após o dilúvio: o matrimónio entre duas culturas – “Cam!... Serás meu esposo bem amado… / Serei tua Eloá…”. Cam é o filho mais novo de Noé, que foi salvo do dilúvio, juntamente com os seus dois irmãos (Sem e Jafé), na arca que Deus mandara construir ao pai. Quando o fenómeno bíblico cessou, Noé plantou uma vinha, colheu as uvas nela produzidas, embriagou-se com o vinho feito e adormeceu, nu, na sua cabana. De acordo com o relato bíblico, Cam surpreendeu o pai embriagado, desacordado e nu, e, em vez de o cobrir, foi contar aos irmãos, que, andando de costas, o taparam sem ver a nudez paterna. Quando acordou, Noé amaldiçoou Canaã, um dos filhos de Cam, referindo-se-lhe como “servo dos servos”: “Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos”. Segundo alguns estudiosos, ao proferir tais palavras, Noé estaria a profetizar que um dos irmãos de Canaã iria herdar a terra dos cananeus (os habitantes da antiga terra de Canaã, situada no Médio Oriente e que correspondia sensivelmente ao atual território de Israel), enquanto outros sustentam que Cam poderá ter mantido relações incestuosas com a mulher do seu pai, pelo que Canaã teria sido amaldiçoado por ser o produto dessa união ilícita. Esta maldição terá sido aproveitada por várias religiões monoteístas para justificar o racismo e a escravidão de negros africanos, que acreditavam ser descendentes de Cam. No Brasil, foi usada para fundamentar a escravização dos índios: “Não há lei divina nem humana que proíba a possessão de escravos […] [e os índios brasileiros] são da descendência da maldição de Cam” (João de Sousa Ferreira, missionário). Por outro lado, a partir do século XVIII, diversos autores europeus começaram a defender que, etimologicamente, a palavra “Cam” significaria «queimado» ou «escurecido», tese que é cabalmente desmentida pelo estudo de línguas antigas. Na versão europeia, como Cam e o seu filho passaram a habitar a África, o homem negro estava fadado à escravidão. Esse matrimónio entre África e Cam é o cruzamento de culturas e etnias que ocorreu ao longo da História desde os remotos tempos bíblicos, o que parece apontar para o pecado original. Seja como for, graças a essa “mancha original” que envolve Cam e Eloá (do hebraico, significa “Deus”), as gerações africanas sofrem o «anátema cruel» ao longo dos séculos. A partir daí, os africanos perderam-se nos valores do «judeu maldito» e foram arruinados e destruídos pelas «garras» da Europa (décima quinta e décima sexta estrofes). Dito isto, o perdão reclamado por África é, portanto, pelo seu crime de ter recebido um viajante “Negro, sombrio, pálido, arquejante” (vv. 79-80), isto é, a figura amaldiçoada de Cam. A sua descrição como homem negro não possui qualquer fundamento bíblico, pelo que o mais provável é que Castro Alves o tenha caracterizado dessa forma para mostrar Cam era um ser etnicamente semelhante àqueles que o expulsaram, ideia que indicia que a cor da pele, a razão apontada para justificar o direito de um homem escravizar outro, deixa de existir. Assim, o poeta procurou mostrar que essa ideologia, a associação entre escravos e negros, era uma criação por quem se dedicava a esse tipo de comércio e tinha, portanto, interesses económicos na situação.

Na décima sexta, o «eu» alude à perseguição a que Moisés e os hebreus foram sujeitos pelos egípcios aquando da fuga do Egito: “Vi meu povo seguir – Judeu maldito – / Trilho de perdição”. Na décima sétima, África mostra o seu ceticismo relativamente ao Cristianismo, pois Cristo sacrificou-se em vão, já que não houve qualquer redenção da humanidade: a África e os seus filhos continuam a alimentar, com o suor e o sangue do seu corpo, as duas «irmãs» dominantes. Cristo foi crucificado e morreu para que os pecados dos homens fossem apagados, no entanto essa crucificação foi inútil para África, dado que o seu pecado original não foi lavado pelo sangue de Jesus, pois continua a sofrer. Mas que pecado foi esse? África recebeu Cam e a sua descendência, facto que justificaria a sua escravização. Note-se que o facto de Jesus Cristo ter sido escondido no continente africano e passar a habitá-lo não o tornou berço da cultura mais elevada (também Belém de Judá, onde Jesus nasceu, era considerada, antes da construção do Canal do Suez, parte de África). Jesus, que passou despercebido entre os egípcios por ter um tom de pele semelhante, depois de morto foi embranquecido pelos europeus para assim propagar a ideologia branca. “No poema a voz d’África diz que o «sangue não lavou a mancha original». Se se considera a mancha original a tal mentira eurocêntrica que, depois de dar interpretação para o racismo, também mentiu ao esconder que enaltecia um negro como seu salvador, é a ancestralidade africana que fala; se se considera a mancha original o corpo negro de Cristo que através da morte livrou o homem negro da escravidão, quem fala pode ter pele negra, mas usa a mesma máscara branca que fez com que Cristo se tornasse branco.” Além disso, o sujeito poético apresenta o continente africano como uma fazenda onde se criam animais para o trabalho: “Meus filhos – alimária do universo, / Eu – pasto universal…” (vv. 101-102).

A penúltima estrofe introduz a terceira irmã, a América «traidora», que se transformou em ave de rapina (“Condor que transformara-se em abutre, / Ave da escravidão, / Ela juntou-se às mais…”), subjugando África no processo de escravidão. De facto, a América, tida como o símbolo da liberdade, e o Brasil, que, nas margens do rio Ipiranga, proclamara o fim da sua submissão a Portugal, são retratados não como portadores dessa promessa de liberdade, mas como um abutre que se alimenta do sangue africano, do seu suor, da sua existência, como o demonstrava a existência de inúmeros escravos nestes territórios, distribuídos pelas plantações e pelos afazeres domésticos. Alude-se depois a outro episódio bíblico, o de José do Egito, que foi vendido pelos próprios irmãos, comparando o destino da personagem bíblica à sina de África ver os filhos vendidos pela irmã malvada

            Na última estrofe, a África suplica por redenção pelo seu crime original: “Basta, Senhor!”, projetando o seu grito no infinito.

            Em suma, o poema configura uma alegoria do destino trágico do ser africano, visto através da própria África enquanto continente. Assim, é esta que narra as suas desgraças, lamenta o seu destino e implora a misericórdia divina. Além disso, os africanos, metonimicamente, apresentados todos como uma nação, queixam-se a Deus pela sua desventura, pela tristeza de ver os seus conterrâneos arrancados do solo pátrio para serem escravizados. Mais do que isso, o poema sugere a ideia da condenação eterna, isto é, a personagem África observa que o seu destino será sempre a exploração, “sem lugar ao sol”. Fica a ideia de desejo de liberdade e autonomia.

            Castro Alves impõe-se como o cantor do negro escravo. Ele assume uma postura de indignação face à escravatura, o que o leva a cantar o escravo. Esta indignação está presente na imagem de grandeza, nas antíteses, símiles, comparações. Tudo nele é grande e infinito. A sua poesia abolicionista caracteriza-se por essa eloquência e grandiosidade. Em Castro Alves, nota-se um certo exagero na escrita e na forma: uso inconsciente de imagens, vertigem oral, abundância de adjetivos, o que contrasta com a contenção de Gonçalves Dias.

            O escravo é aqui apresentado como um drama amplo e abstrato, ao contrário da individualização de A Cachoeira. É como se o negro tivesse em si o próprio destino humano. Tudo isto mostra o destino como um elemento fundamental no Romantismo, sendo a função do poeta cantá-lo. A sua visão do negro acaba sempre por ser idealizada: ele cobre o negro com um manto redentor; é um herói integralmente humano, que sofre e ama. Claro que o processo de defesa do negro aparece numa altura em que ele era a principal fonte de mão de obra, o que justifica a resistência do público e dele mesmo, o que o leva a idealizar os traços físicos e morais do negro.

            Quanto à natureza, ela surge como personagem central e necessária, não só como cenário, mas também como cenário onde se integram as personagens.

Crónica de D. João I: Capítulos CXV e CXLVIII


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