Português

domingo, 27 de novembro de 2011

Coro

     O coro está presente em diversas circunstâncias:
          - nos agouros e prenúncios de desgraça próxima de Telmo;

Pathos

. De D. Madalena:
     - os terrores que se sente desde a cena I;
     - o sofrimento por causa do adultério;
     - o sofrimento pela incerteza da sorte do primeiro marido;
     - o sofrimento violento pela volta do primeiro marido;
     - o sofrimento cruel após conhecer a existência do primeiro marido (vivo):
          . pela perda do marido;
          . pela perda de Maria.

. De Manuel de Sousa Coutinho:
     - sofre a angústia pela situação presente e futura da filha (III, 1);
     - sofre a angústia pela situação da sua esposa (III, 8).

. De D. João de Portugal:
     - sofre o esquecimento a que foi votado;
     - sofre pelo casamento de sua mulher e pela família que constituiu;
     - sofre por não poder travar a marcha do destino (III, 2).

. De Maria de Noronha:
     - sofre fisicamente, acossada pela tuberculose;
     - sofre psicologicamente:
          . não obtém resposta a muitos agouros;
          . sofre a vergonha da ilegitimidade.

. De Telmo Pais:
      - sofre pela dúvida constante que o assalta acerca da morte de D. João de
         Portugal;
      - sofre, hesitando entre a fidelidade a D. João e a Manuel de Sousa;
      - sofre a situação de Maria.

Hybris

. De D. Madalena:
  • contra as leis e os direitos da família:
  • nunca amou D. João de Portugal;
  • "pecado" / adultério no coração: amou Manuel de Sousa assim que o viu, ainda estava casada com D. João; 
  • consumação do "pecado" pelo casamento com Manuel de Sousa - ela não tem a certeza absoluta da morte do primeiro marido;
  • profanação de um sacramento - o casamento;
  • bigamia;
  • impiedade.
. De Manuel de Sousa:
  • revolta contra as autoridades de Lisboa, recusando-se a recebê-las no seu palácio (I, 8, 11 e 12; II, 1);
  • desafio o Destino ao incendiar o próprio palácio (I, 11 e 12);
  • recusa o perdão dos governadores, "se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso" (II, 1);
  • inconscientemente, participa da hybris de sua esposa:
  • colabora na mentira;
  • profana um sacramento;
  • comete adultério;
  • passa a viver em bigamia;
  • usurpa o lugar que pertence, por direito, a D. João de Portugal.
. De D. João de Portugal:
  • abandona a esposa / família, ainda que o faça por ideais nobres acompanhar o rei à guerra, em defesa do reino e da Fé);
  • o abandono da esposa é um crime contra as leis e os direitos da família, porque a destrói - é um crime de impiedade;
  • embora vivo, depois da batalha, fica prisioneiro, é levado cativo para Jerusalém. E, durante 21 anos, não dá notícias da sua existência, embora contra sua vontade;
  • aparece quando todos o julgavam morto, arrastando consigo a tragédia.
. De D. Maria de Noronha:
  • a interrupção inesperada e violenta das cerimónias religiosas constitui profanação (II, 11);
  • a insolência e a blasfémia contra Deus: "Que Deus é esse que está nesse altar, e quer roubar o pai e a mãe a sua filha?";
  • a insolência contra os ministros sagrados nas suas funções: "Vós quem sois, espetros fatais?... quereis-mos tirar dos meus braços?";
  • a revolta contra D. João de Portugal - contra os direitos deste à esposa, à família, à própria vida, direitos baseados na lei divina e nas leis humanas: "... que me importa a mim com o outro? Que morresse ou não, que esteja com os mortos ou com os vivos, que se fique na cova ou que ressuscite para me matar?";
  • a invocação de morte violenta sobre si própria: "Mate-me, mate-me, se quer...";
  • o desprezo pelas leis divinas e humanas - o amor e a ternura com que tinha sido criada não suprem a ilegitimidade do matrimónio dos pais;
  • a tentativa de renegar o seu estado de filha ilegítima;
  • a revolta contra a profissão religiosa dos pais;
  • a incitação dos pais à mentira: "Pobre mãe! Tu não podes... coitada!... não tens ânimo... Nunca mentiste? Pois mente agora para salvar a honra da tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai.".
. De Telmo Pais:
  • afeiçoou-se a Maria;
  • relativamente a D. João:
  • perjúrio e repúdio do amigo e "filho";
  • desejo de que ele tivesse morrido, para não impedir a felicidade e a vida de Maria. 

Destino

     O destino está presente ao longo da obra, desde o seu início. D. Madalena, por exemplo, sente-se perseguida por ele.
     As personagens são vítimas do Destino inexorável que se «diverte» a «brincar» com as suas vidas, antes de sobre elas se abater irremediavelmente. 

Fado: Património Imaterial da Humanidade

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Tipos de argumentos

     O autor de um discurso ou texto argumentativo pode socorrer-se de diferentes tipos de argumentos:
  1. Argumentos de autoridade: recurso às ideias de alguém que, reconhecidamente, domina a matéria de que se fala - o chamado especialista; citação de uma obra, de uma instituição, etc.
  2. Argumentos dedutivos: implicam uma dedução e uma particularização.
  3. Argumentos indutivos: neste caso, procede-se a generalizações, previsões ou probabilidades).
  4. Argumentos universais: saberes universalmente aceites porque foram demonstrados factualmente e / ou cientificamente.
  5. Argumentos de singularidade: algo ou alguém é apresentado pela sua singularidade / diferença.
  6. Argumentos por analogia: argumentos baseados em semelhanças e aproximações.
  7. Argumentos históricos: exemplos da tradição e experiência histórica.
  8. Argumentos exemplares: comportamentos e personalidades vistos como exemplo ou virtude a seguir.
  9. Argumentos proverbiais ou de sabedoria popular: citação da voz e consciência comum (a chamada vox populi).
  10. Argumentos experienciais: experiências já vividas.

Argumentos

     Um argumento é um raciocínio destinado a provar ou refutar uma afirmação, uma opinião, uma tese.
     Os argumentos podem aparecer no texto numa disposição crescente, decrescente ou dispersa, de acordo com a estrutura da argumentação e com os intuitos do seu autor.

Texto argumentativo - Tipologia

     São diversos os momentos e as circunstâncias em que nos socorremos do protótipo textual argumentativo.
     Exemplificam-no o artigo de apreciação crítica, o artigo de opinião, o texto de reflexão, a dissertação, o comentário, na forma escrita.
     Na oralidade, encontramos o debate, a participação numa campanha eleitoral, um discurso político, uma alegação judicial.

Definição de texto argumentativo

     Um texto argumentativo é aquele que visa convencer, persuadir ou influenciar o «outro» do nosso ponto de vista, cuja veracidade se demonstra e prova. Como?
            Argumentar significa defender uma ideia ou uma opinião, alegando um conjunto de razões que justifiquem o nosso posicionamento. A argumentação é o desenvolvimento de um raciocínio com o fim de defender ou repudiar uma tese ou um ponto de vista, para convencer um oponente, um interlocutor circunstancial ou a nós próprios. A argumentação desenvolve-se em função de um destinatário, perante o qual argumentamos para o persuadir, dado não partilhar os mesmos pontos de vista ou as mesmas convicções que nós possuímos.
            Começamos por apresentar o nosso ponto de vista – a tese –, a partir da qual desenvolveremos o nosso raciocínio, a argumentação, constituída por um conjunto de argumentos logicamente encadeados, sustentados em provas e ilustrados e credibilizados a partir de exemplos.
            O texto argumentativo é tão antigo como o próprio Homem, uma vez que argumentar, ou seja, construir um texto (oral ou escrito) com base em argumentos logicamente encadeados está indissociavelmente ligado à actividade humana. Argumentar, persuadir, convencer empregando o rigor e a objectividade sempre fizeram parte do discurso humano, desde que o Homem começou a conviver, usou a palavra como meio de dar a conhecer aos outros as suas mundividências e como forma de convencer o(s) outro(s). A argumentação assume uma importância vital na vida do homem, que faz uso dela para justificar pensamentos, comportamentos, para persuadir os outros do seu ponto de vista, para influenciar o comportamento dos outros, como base para a tomada de decisões.
            Sócrates, filósofo grego (470-400 a.C.), Aristóteles, filósofo grego (384-322 a.C.), Cícero, o mais eloquente dos oradores romanos (106-43 a.C.), constituem talvez os “argumentadores” mais famosos da História da Humanidade. Os dois primeiros criaram mesmo escolas de argumentação. Aristóteles definiu a argumentação como a «arte de falar de modo a convencer».
            Toda a arte tem as suas normas e a argumentação não foge à regra. As suas etapas são:
. encontrar o problema;
. procurar os argumentos e os contra-argumentos;
. dispô-los adequadamente;
. usar as figuras de estilo que mais agradam;
. formular juízos de valor;
. etc.
            As qualidades principais do discurso argumentativo são o rigor, a clareza, a objetividade, a coerência, a sequencialização e a riqueza lexical.
            Para que a argumentação seja correcta, os raciocínios devem estar sujeitos às leis da lógica; daí que a argumentação do padre Vieira se baseie por sistema na Sagrada Escritura.

A argumentação

1. Quando usamos a argumentação?

     No nosso quotidiano, uma parte apreciável dos atos de comunicação possuem um caráter argumentativo, seja para defender um ponto de vista, uma opinião, seja para apresentar uma solução para um problema, para convencer os outros a aceder a um pedido nosso, etc.
     Argumentar é um ato de inteligência que, para ser eficaz, implica a obediência a um conjunto de regras.


2. O que é argumentar?

     Argumentar é expressar um ponto de vista, uma opinião, uma convicção, de forma a convencer e persuadir o ouvinte/leitor/interlocutor. Para que tal suceda, é necessário apresentar e desenvolver um raciocínio lógico, claro, coerente e convincente, bem sustentado em argumentos sólidos e exemplos verdadeiros.

     Por outro lado, argumentar é persuadir racionalmente, embora nem toda a persuasão seja racional. Se pensarmos na cena II do ato I da peça Frei Luís de Sousa, constataremos que D. Madalena de Vilhena, sobretudo na parte final do seu diálogo com Telmo Pais, em desespero de causa, recorre a «argumentos» emocionais para persuadir o velho aio de continuar a atormentá-la e a D. Maria com os seus constantes agouros em torno do regresso de D. João de Portugal. Algo de parecido sucede com a publicidade, quando pretende levar o consumidor a adquirir um determinado produto, não pelas suas qualidades, mas pela sua associação a um determinado modo / estilo / padrão de vida a que teremos acesso através da sua aquisição.
     Em suma, quando argumentamos racionalmente, apelamos à razão; quando argumentamos emocionalmente, dirigimo-nos às emoções, aos sentimentos, aos desejos, às frustrações, etc., do nosso interlocutor.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Texto de reflexão: "A crise económica atual - causas e soluções"

. INTRODUÇÃO

. TESE: Portugal vive um clima de austeridade por razões endógenas e exógenas.

. DESENVOLVIMENTO - ARGUMENTAÇÃO

     . Argumento 1) A corrupção em Portugal.
          . Exemplo 1) Os desvios de dinheiro: nas estradas, nas obras públicas...

     . Argumento 2) A adesão ao Euro.
          . Exemplo 2) A baixa da taxa de juros levou à expansão da despesa pública.

     . Argumento 3) Pouca produtividade interna.
          (Falta o exemplo)

     . Argumento 4) Adoção de medidas que aprofundam a crise.
          . Exemplo 3) Corte nos salários e subsídios dos trabalhadores.
          . Exemplo 4) Empobrecimento generalizado.
          . Exemplo 5) Aumento das falências de empresas.
          . Exemplo 6) Aumento do desemprego.
          . Exemplo 7) Maior desconfiança dos mercados conduz ao aumento dos juros.

     . Argumento 5) Subida da inflação.
          . Exemplo 8) Aumento do IVA na restauração, na cultura...


. CONCLUSÃO

     Soluções:
          1.ª) Cortes na despesa pública e diminuição do número de funcionários públicos.
          2.ª) Dinamização das exportações.
          3.ª) Diminuição das importações.
          4.ª) Melhoria da gestão dos dinheiros públicos.
          5.ª) Emigração.
          6.ª) Auto-emprego.
          7.ª) Recuperação da banca.

Comparação entre D. Madalena e Inês de Castro

     Desde logo, a leitura do episódio de Inês de Castro, de Os Lusíadas, insinua em D. Madalena o drama de um segundo casamento realizado sob a velada ameaça de que D. João de Portugal não tivesse morrido. De facto, estamos perante duas personagens para quem a felicidade não foi total, desde logo por intervenção do Destino. No caso de Inês, essa felicidade foi, sobretudo, breve, culminando com a sua morte. A interrupção da leitura feita por D. Madalena, precisamente nos dois versos que sugerem a efemeridade desse sentimento, remete para a semelhança entre os dois casos.
     D. Madalena procura estabelecer um confronto entre a situação de Inês, feliz "naquele ingano de alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito" - felicidade que, em seu entender, não se mede pela duração, mas pela intensidade ("Viveu-se, pode-se morrer") -, e a sua situação: procura a felicidade pessoal, mas não a consegue alcançar pelos contínuos terrores que a perseguem, isto é, pelos remorsos de consciência moral, recalcada e abafada, mas viva e atuante.
     Por outro lado, antevemos aqui as imagens de duas figuras femininas pecadoras por amor-paixão que, embora diferentes nas suas circunstâncias e motivações, se acabam por sobrepor e ajustar.
     Em terceiro lugar, Inês de Castro representa a heroína trágica no amor, na beleza, na desventura e na morte. D. Madalena é igualmente trágica no amor, na beleza, na desventura e no desfecho infeliz que a destrói, não físicamente como aquela, mas psicologicamente. Ambas são perseguidas pelo Destino, inexorável e cruel, que as irmana na paixão impossível, embora por razões diversas. No entanto, há uma diferença entre as duas situações: a apaixonada de D. Pedro I ainda teve um "ingano de alma", ou seja, um momento de felicidade, ainda que fugaz, enquanto a esposa de Manuel de Sousa nem a esse breve "ingano" teve direito, o que faz com que deseje a felicidade, mesmo que de curta duração, após o que morreria feliz.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Neologismos?

     Três novas palavras, ainda não contempladas, de tão recentes, pelo Acordo Ortográfico:
  • porquausa (= por causa);
  • queram (= que eram);
  • fazas (= faças).

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

domingo, 20 de novembro de 2011

D. João de Portugal

     Filho do conde de Vimioso, D. João de Portugal era um nobre que acompanhou D. Sebastião a Alcácer Quibir, onde, supostamente, terá falecido ("... que Deus tenha em glória?"). Casou com D. Madalena de Vilhena, que muito amava ("Queria-vos muito...") algum tempo antes de partir para o Norte de África. Sobre ele, pouco sabemos até entrar em cena no final do ato II, além de ser um "... espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos bons...".
     À semelhança de outras personagens, o seu nome de batismo é bíblico, pois evoca o nome do apóstolo João. Por outro lado, é também, desde a época em que decorrem os acontecimentos, o nome de um tipo literário tão do agrado dos românticos: o D. Juan.

Telmo Pais

     Telmo Pais era o aio fiel e honesto de D. João de Portugal que se manteve ao lado de D. Madalena após o desaparecimento daquele, em cuja morte não acredita, daí os seus constantes agouros e profecias, que aterrorizam D. Madalena ("... tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há-de ver quem é que quer mais à nossa menina, nesta casa...") e a afirmação de que o seu senhor continua a ser D. João ("... não sei latim como o meu senhor... quero dizer, como o Sr. Manuel de Sousa Coutinho...").
     Religioso e crente, manifesta a sua adesão às ideias reformistas em voga na época, ao condenar o uso do latim na Bíblia, uma posição protestante.
     Amigo de Maria, ama-a profundamente e possui grande ascendente sobre ela e sobre a mãe ("... tu tomaste (...) um ascendente no espírito de Maria..."), embora inicialmente a tivesse rejeitado ("... era uma criança que eu não podia..."). Presentemente, pretende amá-la mais do que os próprios pais ("... que lhe quero mais do que seu pai.").
     Experiente em razão da sua idade avançada, fiel e honesto ("... o aio fiel de meu senhor D. João de Portugal."), foi "carinho e proteção, e amparo" de D. Madalena quando esta ficou viúva. Todavia, não aprova o segundo casamento e atormenta-a constantemente com os seus agouros, presságios, acusações e insinuações, configurando a lembrança viva e permanente do remorso recalcado na consciência dela. Neste contexto, é significativa a alusão à carta de D. João de Portugal, escrita na madrugada da batalha de Alcácer Quibir, onde afirmava o seguinte: "Vivo ou morto, Madalena, hei de ver-vos pelos menos ainda uma vez neste mundo.".  Por outro lado, atormenta D. Madalena com «ciúmes póstumos», por conta de D. João, o que explica as prevenções de Telmo relativamente a Manuel de Sousa e a sua aversão inicial por Maria.
     É, claramente, sebastianista, por duas razões: crê no regresso de D. Sebastião e acredita que o seu antigo amo não morreu. O único momento em que vacila, na cena II do ato I, é aquele em D. Madalena, desesperada, o atinge evidenciando a contradição que o marca e que provocará a fragmentação da sua alma: pretendendo ser tão amigo de Maria, sustenta uma crença (a do regresso de D. João) que, a concretizar-se, significará a morte dela.
     Note-se que Telmo, desde o início da ação, desempenha a função de coro das tragédias gregas: alimenta o sebastianismo, anuncia desgraças próximas, profere contínuos agouros e alimenta a presença de um passado, um tempo que D. Madalena quereria morto e enterrado, mas que não consegue - ou não a deixam.
     

Manuel de Sousa Coutinho

     Manuel de Sousa, o segundo esposo de D. Madalena, é um fidalgo ("... fidalgo de tanto primor, e de tão boa linhagem..."), um nobre culto que sabe latim ("... acabado escolar é ele."; "... o retrato daquele gentil cavaleiro de Malta que ali está..." - o ingresso na Ordem de Malta era limitado aos membros da aristocracia, aos quais se exigia certificado de nobreza). De acordo com Telmo, é um "guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português...").
     O seu nome é bíblico. Com efeito, «Manuel» é um dos nomes do Messias (Emanuel) e significa «Deus connosco», significado que se aplica, como uma luva, à personagem dada a boa fé com que se casou com D. Madalena, viúva, e a tranquilidade e a paz de espírito que daí lhe advinha, revela em cinco aspetos: a resposta aos melindres de Madalena por ter de regressar ao palácio onde vivera com D. João (I, 8); a vivência cristão da graça de Deus pela contrição do coração (II, 3); o contentamento de viver e conviver com os frades de S. Domingos como de portas a dentro; o desapego dos bens materiais ("... coisas tão vis e tão precárias..."); o desapego pela própria vida ("... vida miserável que um sopro pode apagar." - I, 11).
     De acordo com as palavras insuspeitas de Telmo, Manuel de Sousa é um "fidalgo de tanto primor e de tão boa linhagem, como os que se têm por melhores neste reino em toda a Espanha..." e "... um guapo cavalheiro, honrado fidalgo, bom português...".

D. Maria de Noronha

     Personagem nobre (a designação de "dona" e o apelido "Noronha", que indicia alta estirpe), tem 13 anos, mas é precoce ("Tem treze anos feitos (...) está uma senhora..."; "... em tantas outras coisas tão altas, tão fora de sua idade, e muitas de seu sexo também..."; ".. em tantas outras coisas tão altas, tão fora de sua idade, e muitas de seu sexo também..."; "Compreende tudo! (...) Mais do que convém."). O seu nome evoca o da Virgem Maria: é pura e angélica (Madalena e Telmo apelidam-na constantemente de "anjo") - é a mulher-anjo dos românticos.
     Filha única, manifesta um espírito vivo ("... uma viveza, um espírito..."), é generosa (".... que coração!") e muito curiosa ("... aquela criança está sempre a perguntar, a querer saber..."), mas extremamente frágil / débil fisicamente ("... não é uma criança... muito... muito forte.").
     Muito precoce, quer física, quer psicologicamente, possui uma imaginação e uma curiosidade muito férteis e pouco próprias da sua idade. Ela própria afirma que pensa muito ("... passo noites inteiras em claro a lidar nisto..."; "... a pensar em tudo...") e afirma que tem sonhos estranhos e que lê nos olhos e nas estrelas. Intuitiva, possui um conhecimento íntimo de si que escapa aos familiares ("O que eu sou... só eu o sei, minha mãe... E não sei, não: não sei nada, senão que o que devia ser não sou..."). Não será casualidade o facto de o tio Frei Jorge lhe chamar, em dado passo da obra (cena 5, ato I), Teodora, nome que significa «sábia».
     Juntamente com Telmo, constitui a dupla de sebastianistas da peça e é uma espécie de porta-voz da sabedoria popular: "Voz do povo, voz de Deus". Tem interesses culturais: lê novelas de cavalaria e romances populares. Deixa transparecer um caráter varonil, revelado no desejo de ter um  irmão ("... um galhardo e valente moço capaz de comandar os terços de meu pai...") e no desejo de resistência aos governantes (cena V, ato I), do qual transparece todo o seu idealismo e patriotismo: "Fechamos-lhe as portas. Metemos a nossa gente dentro e defendemo-nos." (cena VI). Defende o povo e insurge-se contra as injustiças sociais de que ele é vítima: "Coitado do povo!"; "... onde a miséria fosse mais e o perigo maior, para atender com remédios e amparo aos necessitados.".
     Na relação com a mãe, ressalta a bondade e a ternura com que a trata e o sofrimento que sente quando observa a tristeza e a angústia de Madalena, que não compreende. Noutro momento, quando manifesta a tristeza que sente ao ver as flores murchas, revela toda a sua sensibilidade doentia.
     Em suma, Maria de Noronha possui os traços essenciais da chamada heroína romântica:
          . os ideais de liberdade;
          . a exaltação de valores de feição popular;
          . a atração pelo mistério;
          . a intuição;
          . a doença da época - a tuberculose -, cujos sintomas conhecemos desde cedo:
                    - a febre;
                    - as mãos que queimam;
                    - as rosetas nas faces;
                    - a audição a grandes distâncias (cena 6, ato I).
     Note-se que a doença de Maria favorece, ao longo da obra, a sua extraordinária fantasia e a morte no final.

sábado, 19 de novembro de 2011

D. Madalena de Vilhena

     No monólogo que abre o ato I, encontramos D. Madalena, uma mulher nobre (observe-se o tratamento de «D.», dirigido na época às senhoras dessa classe social), só, lendo Os Lusíadas - o que faz dela uma mulher culta -, mais concretamente o episódio de Inês de Castro. Os versos que lhe morrem nos lábios ("Naquele ingano d'alma ledo e cego, / que a fortuna não deixa durar muito...") deixam-na meditabunda e conduzem à expressão, através da sua fala, da tristeza, da angústia, da infelicidade, da insegurança e da infelicidade que a afligem. Toda a sua sensibilidade e fragilidade ficam vincadas quando a própria personagem afirma que vive cheia de medo e continuamente aterrorizada ("... este medo, estes contínuos terrores, que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me dava o seu amor."). Ora, esta última fala deixa transparecer a imagem de uma mulher que ama e é correspondida, porém, ainda assim, vive infeliz: "Oh! que amor, que felicidade... que desgraça a minha!". Qual a causa, então, dessa infelicidade e dos terrores que a devastam?
     Embora ainda não o saibamos apenas pelo conteúdo desta cena inicial, ao longo da obra ficaremos a saber que o estado de espírito de D. Madalena se prende ao receio de que o primeiro marido, supostamente morto em Alcácer Quibir, ainda esteja vivo e regresse, cobrindo-a e à família de vergonha
     Ainda no monólogo, há a salientar a comparação entre as duas figuras femininas que o dominam e que, desde logo, pela tragédia que vitimou Inês de Castro, permite antecipar, enquanto presságio, a desgraça que atingirá D. Madalena, à semelhança do que sucedeu com a primeira. Note-se, porém, que, de acordo com a referida comparação, a situação de D. Madalena é «pior». De facto, enquanto Inês de Castro teve "paz e alegria", ainda que por breves instantes, a esposa de Manuel de Sousa vive em constante desassossego e contínuos terrores, sem conseguir "gozar um só momento de toda a imensa felicidade" que lhe podia dar o amor pelo marido.
     No início da cena II, surge em cena receosa e hesitante no que dizer a Telmo ("Olhai, Telmo, eu não vos quero dar conselhos..."). Ficamos a saber que casou muito jovem e que nutre grande respeito por Telmo, embora critique o ascendente que este possui sobre si e sobre Maria, pedindo-lhe que não insista nesse ascendente ("... não fales com ela desse modo, nessas coisas."). Vive atormentada e aterrorizada pelo passado e pelos agouros de Telmo ("... não entre,os com os teus agouros e profecias..."; "E de passados também...").
     Casou, pela primeira vez, com D. João de Portugal, muito jovem, tendo enviuvado pouco depois, com a singela idade de 17 anos. Nos sete anos seguintes, procurou exaustivamente D. João durante 7 anos, não se poupando a esforços ou gastos de dinheiro. Tendo em conta que a filha do segundo casamento tem, agora, 13 anos, podemos concluir que D. Madalena terá cerca de 38 anos. De facto, a batalha de Alcácer Quibir ocorreu há 21 anos, tinha ela 17; o seu segundo casamento deu-se 7 anos depois, teria ela 24; está casada há 14.
     Desde o início da peça, concluímos que vive constantemente atormentada e aterrorizada pelo passado e pelos agouros de Telmo, que lhe mantêm o passado bem vivo na memória, ou seja, a dúvida de que D. João não morreu e pode regressar a qualquer momento. E, na verdade, o velho aio não se poupa a esforços e recorda-lhe continuamente essa espada de Dâmocles que ela tem pendente sobre a cabeça: atente-se na forma como ele justifica as suas crenças, rememorando a carta escrita pelo seu amo, na véspera da batalha, na qual afirma que vivo ou morto, ainda haverá de voltar a ver a esposa.
     Mas ela própria contribuiu para o seu remorso e a consciência de viver em pecado, pois, além de não ter a certeza da morte de D. João, nunca o amou, embora o tenho respeitado sempre e lhe tenha sido fiel. Em contraste, ama profundamente Manuel de Sousa, dado visível na preocupação que manifesta com o tardar do seu regresso de Lisboa na última fala da cena II. Nesta, é também visível a tendência para o devaneio que a marca e que está de acordo com a sua tendência romântica e a extrema sensibilidade da sua alma.

Didascália inicial (acto I)


     O espaço onde decorre o ato I é um espaço colorido, iluminado pela luz que entra pelas duas amplas janelas voltadas para o rio Tejo (voltado para o exterior, portante) e ricamente decorado, ressaltando o luxo, a riqueza e a modernidade.
     Este espaço, por outro lado, contribui para a caracterização das personagens pois, simbolicamente, representa a liberdade e a felicidade (aparente) que ainda se fazem sentir, visto que a tragédia ainda não se abateu sobre a família.
     Simultaneamente, permite concluir que se trata da casa de uma família com um elevado estatuto social e económico.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

O Barroco na Literatura

1. O Barroco

          Dá-se o nome de Barroco ao estilo artístico que nasceu na Itália, nos finais do século XVI, e que, até meados do século XVIII, se desenvolveu na Europa, na América do Sul e nas colónias portuguesas do Oriente. Considerado o estilo mais conforme à Contrarreforma da Igreja de Roma e ao absolutismo, caracteriza-se pelo esplendor e pela exuberância.

          Na verdade, poderemos apresentar três causas para o aparecimento e desenvolvimento deste movimento artístico. Em primeiro lugar, a Contrarreforma na igreja católica, que pretendeu criar nos crentes uma exaltação religiosa, através do deslumbramento provocado pelas igrejas exuberantemente ricas e decoradas. Em segundo lugar, a adesão dos papas e dos soberanos europeus a um estilo artístico que, pela sua exuberância, exaltava o seu poder absoluto, através da grandiosidade excessiva dos palácios recheados de obras de arte e de decoração. Finalmente, a insatisfação dos artistas, por natureza seres insatisfeitos, que desejavam manifestar a sua rebeldia contra os limites da arte do Renascimento, cansados que estavam do equilíbrio, da harmonia e da simplicidade racional da Renascença.


2. Antecedentes


          A passagem do Renascimento para o Barroco processou-se através de um movimento designado por Maneirismo, que é um estilo italiano do século XVI, caracterizado por um certo culto da forma, por conceitos subtis, por um sentido negativo da vida, pelo desejo de obter efeitos emocionais, recorrendo a movimentos e jogos de contrastes.
          O vocábulo maneirismo teve origem no vocábulo italiano maniera, donde procede manierismo, termo muito usado pelos tratadistas e críticos de arte italianos da segunda metade do século XVI, com o significado de estilo de um artista -  a maniera de Rafael ou de Miguel Ângelo - ou de estilo de uma época ou de uma nação (maniera greca, maniera bizantina). Assim, os artistas que se preocupavam acima de tudo com a maneira ou que se esforçavam por imitar a maniera di Michelangelo foram naturalmente chamados maneiristas.
          Cronologicamente, os maneiristas nasceram entre 1525 e 1580, enquanto os barrocos nasceram cerca de oitenta anos depois.
          Este estilo veio da transformação dos valores formais do Renascimento. De facto, no século XVI, os escritores, saturados da imitação dos modelos clássicos, sem romperem definitivamente com eles, enveredaram por um caminho mais individual, com maior liberdade de imaginação. Foi a este modo de escrever que se chamou Maneirismo. Os temas prediletos deste estilo foram os que acentuavam as naturais limitações do Homem na Terra, a dor, o desengano da vida, a fugacidade do tempo. Por outro lado, sobressai o gosto pelas metáforas ousadas, pelas antíteses e pelas «agudezas verbais».
          A tendência para o exagero avoluma-se no século XVII, dando origem a uma literatura (e a uma arte) bem identificada e afastada do Classicismo primitivo. Para esta situação contribuíram vários fatores:

  • A partir de Copérnico, a Homem soube pela astronomia como estava longe de ter abrangido o espaço geográfico do cosmos. O tempo (milhões de anos-luz) surgiu-lhe concomitantemente com o infinito. Sentiu-se então demasiado pequeno para dominar a Natureza.
  • Depois da revolta de Lutero, as lutas religiosas e políticas semearam por toda a parte os horrores da dor e da morte. Em terra, múltiplos anos consecutivos de crise económica trouxeram a fome e multiplicaram os maltrapilhos. No mar, piratas cruéis assaltavam navios, roubavam fazendas e vidas.
  • Após a morte de Filipe II, a Espanha começou a mirrar até se converter no esqueleto de um gigante, numa sombra do que fora nos séculos XV e XVI. Portugal, unido a ela, não teve melhor sorte. Uma onda de pessimismo apossou-se então de todos os ânimos, aumentando a angústia provocada pelo desfazer de outros valores.
  • Acresce ainda o papel da Inquisição. Sendo-lhes vedada a análise crítica da sociedade, os escritores refugiaram-se nos malabarismos dos jogos verbais.
          Neste contexto de crise de valores, nasceu uma literatura de evasão, tendencialmente pessimista, exageradamente formalista ou conceptualista.


3. Origem do conceito


          A origem etimológica do termo barroco é discutível.
          De acordo com determinados autores, proviria do nome do pintor italiano Barocci; segundo outros, teria origem em barocco ou barocchio, duas palavras italianos que designam fraude. Outros há que entendem que deriva da palavra baroco, pertencente à lógica escolástica, designando um tipo de silogismo. Porém, a explicação mais comummente aceite é aquele que diz que provém de barroco, palavra portuguesa do século XVI que designava uma pérola de forma irregular. Aquele termo, por sua vez, provirá da palavra latina verruca, que significava uma pequena elevação de terreno; ou do nome da cidade de Barokia, na Índia, onde havia um mercado florescente de pérolas.
          Em suma, etimologicamente, a palavra «barroco» parece derivar do latim verruca, que significava, a princípio, pequena elevação de terreno e até qualquer excrescência ou mancha numa superfície lisa. Será, por isso, que nós temos, com esse sentido, o vocábulo verruga. Do sentido lato, passou-se a um sentido mais restrito: determinadas imperfeições das pedras preciosas. No século XVI, chamavam-se barruecas, baroques ou barrocas as pérolas não redondas ou manchadas. No século XVII, começou a utilizar-se a palavra baroque para significar qualquer coisa de forma irregular, desigual, bizarra; e, neste sentido, passou a qualificar determinada música e determinadas artes plásticas.
          Foi Carducci quem, em 1860, empregou o adjetivo barroco para qualificar a literatura do século XVII. Desde então barroco passou a designar o estilo dos artistas e escritores de Seiscentos.


4. Cronologia do Barroco


          O Barroco não atingiu, ao mesmo tempo, todos os países europeus. Assim:

  • na Itália, desenvolveu-se no século XVI;
  • na Espanha, a partir de 1570;
  • em França, na primeira metade do século XVII;
  • em Portugal, situa-se entre 1580 e 1756 (este delimitação está longe de ser rígida).

Regência verbal

          Certos verbos selecionam complementos que se iniciam por preposição. Esta relação que se estabelece entre certos verbos e os seus complementos designa-se regência verbal.

          Atente-se num velho exemplo: o verbo gostar seleciona um complemento oblíquo que se inicia pela preposição «de»:
                            . Eu gosto do Benfica.


          Veja-se outro exemplo: o verbo viajar seleciona, igualmente, um complemento oblíquo, neste caso introduzido pela preposição para:
                                                    . José Sócrates, graças a Deus, viajou para Paris.


          Quando um verbo que seleciona um complemento introduzido por uma preposição faz parte de uma oração subordinada relativa, a preposição antecede o pronome relativo que inicia essa oração:
                             . O clube de que eu gosto é o Benfica.
                             . A cidade para onde Sócrates viajou é Paris.

          As preposições selecionadas por estes verbos são obrigatórias na frase, visto que, se as omitirmos, ela torna-se agramatical:
                               . * O clube que eu gosto é o Benfica.
                               . * A cidade onde Sócrates viajou é Paris.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Aspeto verbal

     O aspeto verbal é a categoria gramatical que indica o modo como o locutor perspetiva o desenrolar de uma determinada situação presente num enunciado, exprimindo a sua estrutura temporal interna.

     Atentemos nos enunciados seguintes:
  • Já li o Frei Luís de Sousa.
  • Ando a ler o Frei Luís de Sousa.
  • Acabei de ler o Frei Luís de Sousa.
  • Estou a acabar de ler o Frei Luís de Sousa.
     Todas as frases enunciam a mesma ação (ler a peça Frei Luís de Sousa), mas cada uma delas transmite uma noção diferente do desenrolar dessa ação: nos enunciados 1 e 3, está já terminada; no enunciado 4, está a terminar; no 2, está a decorrer.

     O valor aspetual de um enunciado pode ser construído através do significado de uma palavra ou de um conjunto de palavras (aspeto lexical) ou através da combinação do aspeto lexical com vários elementos linguísticos (valor dos tempos verbais, verbos auxiliares, modificadores, etc.) (aspeto gramatical).

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I. Aspeto lexical

     É expresso pelo significado de uma palavra ou conjunto de palavras, independentemente de outros elementos que a acompanhem (modificadores, quantificadores, verbos auxiliares).
     Por exemplo, os verbos conversar, correr, discursar, estudar ou jogar exprimem, pelo seu significado intrínseco, um valor aspetual durativo (não se pode "conversar", "jogar" ou "estudar" apenas num instante, apenas pontualmente).
     Dentre o aspeto lexical, podemos distinguir os eventos e as situações estativas.

Eventos

     Os eventos exprimem ações, factos ou processos dinâmicos em que ocorre a passagem de um estado para outro estado - sendo este novo estado localizado num tempo imediatamente posterior ao evento.

     . Eventos não durativos: são os que expressam situações pontuais (são expressos por verbos como chocar, comprar, chegar, encontrar, entrar, estatelar-se, nascer, morrer, sair, ruir, etc.). Não são compatíveis com adverbiais temporais do género «durante x tempo» ou «em x tempo» (* O Eusébio desmaiou durante duas horas.).
               * O Eusébio desmaiou.
               * O teu filho nasceu às seis horas.


     . Eventos durativos: são aqueles a que se associa duração prolongada no tempo («durante x tempo» ou «em x tempo»).
               * O Carlos Lopes correu durante duas horas e dez minutos.
               * O Presidente da República falou durante meia hora.
               * A minha mãe fez as compras da semana.


     . Atividades: são as situações dinâmicas não delimitadas temporalmente, isto é, de que se não indica o princípio nem o fim.
               * O Pedro tem comido bem.
               * Os meus tios corriam todas as semanas.




Situações estativas


     As situações estativas exprimem situações não dinâmicas bem delimitadas temporalmente, não levando a uma mudança de estado.
     As situações estativas podem exprimir:
          . Propriedades: A Lua é um satélite da Terra.
          . Sentimentos: O Jorge está feliz.
          . Competências adquiridas: Já sei falar inglês.
          . Relações de localização: Ele mora em faro.
     Exemplificam situações estativas os seguintes exemplos:
          * Há gente em tua casa.
          * Eu gosto da tua namorada.
          * Aquele terreno pertence-me.
          * O árbitro viu a falta.
          * A sala de aula está cheia.


     Existem dois testes para distinguir os eventos das situações estativas:
          (1) Teste do progressivo (estar a + infinitivo);
          (2) Teste do imperativo.

     Os eventos são compatíveis com ambos os testes, enquanto as situações estativas tipicamente produzem frases agramaticais com os dois.
          a) O Ricardo comeu uma laranja.
          b) O Ricardo é baixo.
          (1) Teste do progressivo: O Ricardo está a comer uma laranja.
                                                 * O Ricardo está a ser baixo.
          (2) Teste do imperativo: Ricardo, come uma laranja.
                                               Ricardo, sê baixo!
     Assim, pode concluir-se que a) representa um evento e b) uma situação estativa.



II. Aspeto gramatical


     O aspeto gramatical traduz uma forma de perspetivar uma dada situação a partir de elementos linguísticos contidos na frase, como os tempos verbais, advérbios e locuções adverbiais temporais, ou verbos de operação aspetual, verbos auxiliares, modificadores (começar a, deixar de, etc.).

Aspeto perfetivo: apresenta a situação expressa pelo enunciado com concluída, como um todo completo (o tempo verbal habitual é o pretérito perfeito do indicativo).
          * Esta turma fez teste na semana passada.
          * O Miguel acabou de fugir da cadeia.


Aspeto imperfetivo: apresenta a situação expressa pelo enunciado como ainda em curso e não concluída (o tempo verbal habitual é o pretérito imperfeito do indicativo).
          * O Ricardo pintava uma aguarela.
          * Ando a ler a última obra de José Saramago.
          * Vou comer.


Aspeto genérico: a situação expressa pelo enunciado remete para conteúdos aceites como universais e atemporais (as formas verbais associadas a este valor aspetual são o presente do indicativo e o infinitivo impessoal).
          * Penso, logo existo.
          * O cão é o melhor amigo do homem.
          * Um ano tem doze meses.
          * Quem canta seus males espanta.
          * O Guadiana faz fronteira entre Portugal e Espanha.


Aspeto habitual: a situação é apresentada como sendo recorrente (isto é, uma situação que se repete) num período de tempo ilimitado (o presente do indicativo e o pretérito imperfeito do indicativo são os tempos mais associados a este valor aspetual).
          * Almoço em casa todas as quintas-feiras.
          * A Rita e a Catarina costumam estudar juntas.
          * O Cristiano Ronaldo treina todos os sábados.


Aspeto iterativo: o enunciado apresenta situações que se repetem num período de tempo delimitado ou não (o pretérito perfeito composto é o tempo verbal mais associado ao aspeto iterativo).
          * No ano passado, ia ao Estádio da Luz todas as semanas.
          * O Jorge espirrou durante toda a manhã.
          * A minha avó tem almoçado fora.


Aspeto pontual: coincide geralmente com eventos instantâneos e apresenta a realização da ação como momentânea, desprovida de duração temporal.
          * Cheguei, meus amigos!
          * O copo caiu.
          * Parti um copo.


Aspeto durativo: indica que a ação se prolonga (ou prolongou) durante algum tempo. Coincide geralmente com eventos prolongados, estados e atividades.
          * A Maria é tímida.
          * Eu vou lavar a roupa logo à tarde.
          * Continuo de férias.


Aspeto incoativo / ingressivo: a situação é apresentada no seu início (pode ser indicado por um templo simples - entardece, amanhece, etc. - ou por um complexo verbal - começar a + infinitivo, meter-se a + infinitivo, pôr-se a + infinitivo, etc.).
          * A Inês começou a fazer um bolo.


Aspeto progressivo: a situação expressa pelo verbo é apresentada como estando em curso (pode ser indicado por um complexo verbal do género estar a + infinitivo, andar a + infinitivo, etc.).
          * A Inês está a fazer um bolo.


Aspeto terminativo: a situação expressa pelo verbo é apresentada na sua fase terminal, no seu momento de conclusão (pode ser expresso por verbos como terminar, concluir, chegar ou por complexos verbais como acabar de + infinitivo).
          * A Inês acabou de fazer um bolo.


Aspeto resultativo: apresenta o resultado de uma ação / evento / processo.
          * O bolo está feito.
         * A Inês já tem o bolo feito.

domingo, 13 de novembro de 2011

Contexto histórico e cultural do Barroco

1. O desastre de Alcácer Quibir

         Conta-nos António Sérgio, na Breve Interpretação da História de Portugal, que o «infante D. João, filho de D. João III, morreu em 1554, três anos antes do monarca. Seu filho póstumo, D. Sebastião (o Desejado), sucedeu no trono a D. João III, sob a regência da avó, D. Catarina, que em 1562 se retirou para Espanha, deixando na regência o cardeal D. Henrique. O reizito, em 1568, foi declarado maior pelas Cortes. Este rapazola tresloucado foi convencido por alguns fanáticos a fazer-se paladino da fé católica contra o Protestante e o Maometano. Por isso apercebeu uma armada que fosse em auxílio de Carlos IX quando se preparou, com o cardeal Alexandrino, a matança de S. Bartolomeu; e por isso se abalançou a conquistar Marrocos, contra o conselho sensato dos mais experimentados capitães. Reuniu em Lisboa um exército aparatoso, que acampou em tendas de seda, vestindo luxuosamente, bebendo, cantando, "fazendo desonestidades". Chegado à África, cumulou erro sobre erro, com desespero dos capitães, que pensaram em prender o tonto. No dia da batalha (Alcácer Quibir, 4 de agosto de 1578), mandou que ninguém se mexesse sem ordem sua, mas esqueceu-se de dar a ordem. O exército inimigo, formado em crescente, envolveu a pequena hoste, e submergiu-a. Foi um desastre completo, que, sabido no reino, o aniquilou de espanto e dor» (Sérgio, 1981: 103-104).
            Como D. Sebastião morre sem deixar herdeiro, sobe ao trono o cardeal D. Henrique, seu tio, «caquético de 66 anos, alimentado aos peitos de uma ama; sete pretendentes à sucessão, entre os quais Filipe II de Castela, que tinha a vantagem decisiva da força: a força do ferro e a força do ouro, gasto habilidosamente pelo seu enviado Cristóvão de Moura. Opôs-se-lhe, antes, a eloquência patriótica de Febo Moniz; depois, a audácia de D. António, prior do Crato, proclamado rei em Santarém. O duque de Alba invadiu Portugal pelo Alentejo, ao passo que a esquadra castelhana se dirigia para Lisboa; e perto da cidade, em Alcântara, varreu facilimamente a tropa de D. António. Este fugiu para a França, e Filipe II foi proclamado rei (Agosto de 1580).» (Ibidem)


2. A hegemonia espanhola
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          1580 é muito mais um ponto de chegada do que um ponto de partida: não será excessivo dizer-se que consagra dinasticamente a viragem de estrutura de meados do século. Então, com efeito, os Portugueses abandonaram vários dos presídios-portos marroquinos, o ouro da Mina deixou de dar os lucros que até aí dava, e acentuou-se a recuperação dos tratos levantinos, concorrentes da rota do Cabo; em contrapartida, lançara-se a ascensão do açúcar de S. Tomé e do Brasil, indo este dominar o mercado mundial durante um século. Deste modo, o império, conquanto permaneça oriental, por um lado, torna-se sul-atlântico, por outro, Angola serve, a partir do último quartel de Quinhentos, de reservatório de escravos para as fazendas e engenhos de além-Atlântico. Enquanto o afluxo em massa de prata mexicano-peruana a Sevilha favorece o renovo mediterrâneo e firma a hegemonia espanhola  -  a prata da Europa Central e Oriental entra em declínio  -, a rota do Cabo absorve quantidades crescentes desse metal precioso, quer para a compra da pimenta quer para o comércio da China: o mundo vai ser inundado pelos reales. Assim, a ligação de Lisboa com Antuérpia enfraquece, do mesmo passo que se estreitam os laços com os empórios andaluzes e outros mercados na própria Península.


3. O domínio filipino e as desilusões da nobreza
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          Nos primeiros quarenta anos do domínio filipino, a união das coroas permitiu vencer a crise financeira em que Alcácer Quibir e a conjuntura de então lançara a nobreza portuguesa, pois os Estados reforçaram-se mutuamente quanto a segurança e finanças públicas. Além disso, essa união abria aos fidalgos e a cavaleiros portugueses perspectivas de ascensão e melhoria de estado graças aos campos de serviço em grande parte da Europa - e muitos não deixaram de as aproveitar, mesmo se para final de certo modo compulsoriamente (pretendia Olivares afastá-los da mãe-pátria). Continuarão vários deles, consumado 1640, a servir o monarca espanhol, e mesmo para Espanha fugirão ainda outros nessa altura. Por outro lado, todavia, o prosseguimento do regime filipino não pôde deixar de trazer amargas desilusões a vários nobres: a corte nunca chegou a estanciar duradouramente em Lisboa, e portanto havia que ir a Madrid requerer mercês, buscar desagravos; apoiar pretensões; a ausência da corte régia escamoteava uma boa parte da existência fidalga e cavalheiresca, não permitia participar de perto na condução dos negócios públicos, anulava ensejos de convívio e ostentação, inibia actividades de criação literária, teatral e artística. Como mostrou Oliveira França, a nobreza ruraliza-se, torna-se provincial - e provinciana -, é a época das «cortes na aldeia» (Rodrigues Lobo), e a própria moda da poesia bucólica reflecte e exprime tal configuração geográfico-social. A corte dos Braganças é em Vila Viçosa, nem sequer numa cidade de província. Acanhados em horizontes campestres, fidalgos e cavaleiros sentem-se frustrados, quando muito, rememoram através da poesia épica também em voga as passadas glórias. Para muitos não se rasgam perspectivas, é a frustração e o viver moroso, ou a inquietação insatisfeita mas sem pontos de mira; quantos não se sentem falhados.
          Mentalidade barroca, que anseia pelo fausto e pela exibição, nos círculos nobres como nos religiosos - uma religião de exuberância decorativa, aquietando-se nos ritos de subterrâneas inquietações, satisfazendo-se na exterioridade de uma insatisfeita interioridade. Religião em que a milícia de cruzada - sentido primitivo da companhia - cedeu o passo à sociedade organizada política e economicamente, transformada em potência que trafica na prata do Japão e seda da China e domina vastas áreas da América do Sul, Estado dentro do estado. Ao mesmo tempo, todas as ordens religiosas multiplicam os seus institutos e enriquecem os seus bens, o peso da organização eclesiástica sobre a sociedade civil é cada vez maior.
        Vitorino Magalhães Godinho, Ensaios



4. A repressão do Estado e da Inquisição
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          Dominante, dentro da Península, o grupo senhorial monopoliza inteiramente o Estado, de que faz parte, coisa sua. O rei abandona o seu papel tradicional de árbitro entre as diversas forças nacionais. O Estado torna-se absorvente, destrói as minorias, sejam elas os lavradores vilãos e livres, os hebreus ou os «mouriscos», impõe uma vigorosa disciplina ideológica, esmagando todas as dissidências e oposições e regressando à ideologia tradicional da grande época do feudalismo. Quando estala a grande revolução da Reforma, os dois impérios da Espanha alinham decididamente, passadas as primeiras hesitações, ao lado dos que preconizam a restauração da Igreja medieval, sem compromisso com os reformados. Com o agravamento das suas dificuldades aumenta inevitavelmente a repressão dos grupos dissidentes cujas raízes, todavia, mergulhando nas novas condições económicas, não podiam ser destruídas. (...)
          Tudo quanto constituía apanágio do Humanismo, a humanização da religião, a divulgação directa da palavra evangélica, a reabilitação da natureza, a crítica anticlerical, foi reprimido pela censura inquisitorial portuguesa.
António José Saraiva, A Inquisição Portuguesa



5. A decadência
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          O século XVII foi uma etapa decisiva no caminho do pensamento e da ciência moderna. É o século de Galileu, de Descartes, de Pascal, de Espinosa, de Bacon, de Newton. Foi também um tempo de esplendor para as letras e para as artes; grandes obras-primas foram pintadas ou escritas entre 1600 e 1700: quadros de Rembrandt, Van Dyck, Velázquez, teatro de Shakespeare, Cervantes, Corneille, Molière, Racine. A esse período excepcionalmente criador e brilhante corresponde em Portugal uma época apagada.
          Dentre os maiores nomes europeus, alguns têm relação com Portugal. Espinosa era filho de um judeu português que a Inquisição obrigou a fugir para a Holanda; Velázquez era filho de um homem do Porto que teve de ir procurar trabalho em Sevilha. São meras casualidades, mas que apontam duas das causas fundamentais da decadência: a repressão inquisitorial, com o isolamento e paralisação das iniciativas culturais que provocou, e a crise económica e política que culminou com a perda da independência em 1580 e que conduziu a uma situação de depressão e de desânimo incompatível com o brilho das letras e das artes.


6. O ensino dos Jesuítas
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          A acção dos Jesuítas foi fundamental durante todo o século XVI português. Foram eles que promoveram o ensino e que fomentaram quase toda a actividade cultural quem, apesar de tudo, se verificou. É um dos muitos aspectos que estabelecem contraste entre a obra da Companhia de Jesus e a da Inquisição: esta quis impedir a cultura, aquela tentou fomentá-la. Isso resultava do próprio fim para que tinha sido criada: para combater as ideias da Reforma. Em todos os países em que se instalaram, os Jesuítas chamaram a si o ensino e exerceram-no com grande eficiência. Em Portugal funcionaram colégios em Lisboa (o actual Hospital de S. José funciona no edifício do Colégio de Santo Antão; para esquecer isso, o Marquês de Pombal mudou o nome e escolheu o do rei), Évora, Braga, Bragança, Angra, Funchal, Faro, Portalegre, Ponta Delgada, Santarém, Porto, Elvas, Horta, Setúbal, Portimão, Beja, Pernes, Vila Viçosa, e houve vários outros no Brasil, África e Índia. Foi essa a primeira cobertura geral do território por uma organização de ensino de nível secundário. Os livros de estudo foram cuidadosamente preparados; os mais bem organizados compêndios didáticos até hoje produzidos em Portugal são os grossos in-fólios do Curso Conimbricense. Reunia-se aí todo o saber ortodoxo, isto é, o saber que no ambiente da Contra-Reforma se considerava harmónico com as verdades da fé. Esses livros, redigidos em latim, foram a base do ensino até ao tempo de Pombal, que lhes proibiu o uso.


7. O patriotismo e a História

          Não existia apenas a censura religiosa da Inquisição, mas também a censura política do governo espanhol, que reprimia tudo o que pudesse representar expressão do sentimento patriótico. O patriotismo refugiou-se, então, entre a gente culta, nas letras e, em especial, na história. Uma das formas menos arriscadas de ser patriota era ler Os Lusíadas; o grande poema foi a obra mais lida em todo o século XVII; entre 1580 e 1640 editaram-se vinte e quatro vezes as obras de Camões. O passado servia de compensação ao presente, e verificou-se uma espécie de êxodo para a história. Sem excepção, todos os escritores procuraram temas para a prosa nos tempos passados. O mais importante monumento que ficou desse gosto pela história foi a Monarquia Lusitana, constituída por oito partes, que foram publicadas ao longo de todo o século, entre 1597 e 1729. É a primeira grande História de Portugal, depois da Crónica Geral do Reino que Fernão Lopes compôs na primeira metade do século XV; as partes mais notáveis foram as escritas por Frei António Brandão, que tinha verdadeiro estofo de historiador e a quem se deve boa parte do que hoje se sabe dos primeiros reinados.


8. Templos, talha, azulejo

          As belas-artes foram pobres. A maior parte dos edifícios da  época foi construída pelos Jesuítas, o que já levou a falar-se num estilo jesuítico. O que não há dúvida é que o espírito da Companhia de Jesus marcou grandemente a arquitectura religiosa do século XVII em Portugal.
          A igreja é concebida como um grande auditório, uma enorme sala de aula. A lição é o sermão, e tudo se dispõe de forma que a figura do pregador seja vista e a sua voz ouvida de toda a parte. Desaparecem as colunas interiores, as grandes reentrâncias, e saliências, que, com o seu movimento e força, tinham marcado a arte do período anterior. As fachadas são lisas, altas, lógicas, e fazem pensar no rigor geométrico da dogmática, na proibição da fantasia, na disciplina vertical. O templo resulta assim de uma severidade fria e desinteressante. Mas essa austeridade não tarda a desaparecer sob a decoração impetuosa do azulejo e da talha, que desempenham nas artes uma função que faz lembrar a que o adagiário popular teve nas letras.
          A azulejeria e a talha são as grandes criações da arte portuguesa no século XVII. Aí não tivemos mestres estrangeiros; os ceramistas e entalhadores eram artistas do povo (de pouquíssimos se conservam os nomes) e a evolução desses géneros reflecte a cultura e o gosto populares com a sua devoção festiva e as reminiscências de arte oriental. Foi no génio popular que se encontrou a resposta para as novas condições da vida nacional; o azulejo substituiu nas paredes das igrejas e dos palácios as caras tapeçarias que dantes vinham da Flandres e da Holanda (as panos de rás) e cuja importação se tornara impossível por causa das guerras que os espanhóis ali travaram durante quase todo o século. Os especialistas falam em azulejos de «tipo tapete» e em «tapeçarias cerâmicas», designações bem significativas. A talha substituiu em grande parte a escultura em pedra (a imaginárias seiscentista é quase toda de madeira e a dos períodos anteriores quase toda de pedra) e substituiu também outros materiais muito caros: o ouro e a prata dourada. Muitos objectos de culto (relicários, sacrários, candelabros, castiçais, estantes de altar), anteriormente feitos de metal, passaram a ser feitos de madeira dourada e trabalhada por modo a parecer de metal. O material é barato e a produção destes ourives marceneiros atinge proporções enormes. O interior dos templos torna-se então magnífico e o ouro da talha, combinado com o azul do azulejo, consegue admiráveis efeitos decorativos. Por ser tão popular e tão português, o êxito desta decoração é imenso e duradouro. Prolonga-se por quase todo o século seguinte e, levado pelos emigrantes, enraíza no Brasil. A Baía é, hoje, a capital da talha portuguesa; em muitos casos, a madeira adoptada foi o castanho. No país do jacarandá, os entalhadores portugueses continuaram a recordar os soutos das suas aldeias.

José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal


9. O abismo entre a Nobreza e o Povo
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          O espetro da fome encontrava-se no horizonte visual da grande maioria dos homens de então e condicionava os aspectos fundamentais da vida seiscentista, nas suas faces social, política e cultural: o abismo entre as classes privilegiadas e o povo, a latente revolta popular que se exacerbava em momentos de aperto (fomes e preços elevados), não tanto porventura contra a nobreza (à qual cabia, por imposição de um destino inexorável, não só a posse dos bens terrenos, como as esperanças transcendentes), mas contra a avidez do fisco real e dos seus executores.
          Ao invés do que viria a ocorrer na Holanda, na Inglaterra e na França, a expansão marítima e colonial peninsular reforçou o poderio da classe dos grandes detentores da terra. Quaisquer que venham a ser, em última instância, as causas do facto, é incontrovertível que a nobreza hispânica beneficiou com a empresa marítimo-comercial ultramarina, o que lhe permitiu, mesmo iniciada a decadência da hegemonia peninsular, encasular-se nos seus domínios e preparar-se para durar. No século XVII ela alcança o zénite da sua trajectória histórica moderna, o que se poderá comprovar pela pujança da mundividência barroca  -  na literatura, na arte, no pensamento, assim como na arte de viver e de morrer, que, ao nível do devir das civilizações e da conjuntura, individualiza e define tal centúria. Ora, de um ponto de vista de história social, o barroquismo é sinónimo de mundividência aristocrática ou aristocratizante, aliás contaminada e impregnada, na Península, de influência ideológica clerical.
Joel Serrão, As Alterações de Évora

10. A burguesia dos cristãos-novo
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          Dominando a economia comercial, isto é, a economia mercantil do século XVII a burguesia de cristãos-novos exerce um grande peso na política e na administração. É ela que se ocupa das magistraturas municipais. É ela que elabora com os reis os contratos de arrendamento, contratos de cobrança de impostos, que desempenham um papel essencial na organização de certos tráficos, como, por exemplo, o dos escravos.
          É ela que empresta dinheiro ao rei, quer pela criação de companhias de navegação e de comércio, encarregadas da protecção das colónias contra os ataques holandeses ou ingleses, quer simplesmente pela organização de frotas de guerra destinadas a qualquer expedição contra uma fortaleza ou uma companhia ocupada pelo inimigo.
          É ela que, em grande parte, provém para o dote da rainha de Inglaterra e para a paz com a Holanda. É ela que pelas suas relações com todas as colónias judaicas da diáspora europeia pode encontrar os fundos estrangeiros de que Portugal precisa.
          Mas a burguesia dos cristãos-novos não se interessa somente pela ciência económica. Os Judeus eram depositários da ciência muçulmana, isto é, da ciência grega e oriental transmitida pelos Árabes.
          Portugal não é no século XVII o único país a possuir uma burguesia e um grupo de cristãos-novos. Mas o que faz a sua originalidade é a confusão existente, de facto, entre burguês e cristão-novo. Burguesia judaica logo dominada por algumas famílias de grandes negociantes. Mas precisamente por causa deste carácter religioso, a burguesia não pode, como em França ou na Itália, tomar de assalto os títulos, as terras, os ofícios. Tentou fazê-lo antes da Inquisição. Mas, durante a Inquisição, somente uns três grandes burgueses o conseguiram por meio de falsas genealogias compradas a troco de grandes somas e de pretensiosas demonstrações da sua «limpeza de sangue»  -  e sem dúvida depois de várias gerações de «aristocratização» progressiva. A burguesia portuguesa permaneceu, sem dúvida, durante o século XVII, uma burguesia activa de negócios, muito mais do que as outras burguesias mediterrânicas ou europeias. Ela não caiu naquela «traição» de que fala Fernand Braudel, pelo menos porque Portugal é desde início um país marítimo e o desenvolvimento económico do Brasil foi um estímulo para os negócios. A evolução que sofreu no decurso do século não modificou fundamentalmente esta situação.

Frédéric Mauro, Études économiques sur l’Expansion portugaise


11. A Restauração portuguesa

          Em Portugal, como em Espanha, passa-se quase insensivelmente de um ambiente de incipiente Renascença para um ambiente de Contra-Reforma e para o estilo maneirista. No entanto, certas condições peculiares, nomeadamente um sensível desenvolvimento da burguesia durante o século XVII sob o estímulo da colonização brasileira e um tardio reforço do absolutismo e do feudalismo decadente, graças às minas do Brasil sob D. João V, justificariam que reservássemos a designação de Época Barroca para o período de intensa crise política, social e cultural que se processa entre a Restauração e as reformas de Pombal.
          Embora incluída no sistema do império da Casa da Áustria, a realidade portuguesa apresenta alguns caracteres específicos já antes da Restauração.
          Com efeito, a colonização brasileira, o comércio transatlântico do açúcar, do tabaco, do pau-brasil, além do contrabando da prata peruviana, o asiento (ou tráfico de negros africanos para a América do Sul) e a incrementada exportação do sal, sustentaram e desenvolveram a burguesia comercial, ligada a uma rede mundial de comércio constituída por «cristãos-novos» emigrados. Muitas linhagens fidalgas encontram uma solução para as suas dificuldades no cruzamento matrimonial com famílias de cristãos novos, outras no comércio açucareiro. Nos colégios jesuítas, sobretudo no de Santo Antão em Lisboa e no Colégio das Artes de Coimbra, e depois nas universidades, sobretudo na de Coimbra (que desde D. João III perdeu muitos privilégios a favor da de Évora, inteiramente jesuíta, e do Colégio das Artes), muitos filhos da burguesia, em grande parte cristãos-novos, alcançam o acesso à alta convivência, apesar das terríveis revoadas de repressão inquisitorial.
          Com estas circunstâncias, e também com a resistência popular espontânea à castelhanização forçada, se relaciona a produção, em todo o período filipino, de uma intensa literatura oral ou manuscrita, e por vezes impressa, de oposição antifilipina, desde as sátiras clandestinas atribuíveis aos dois Rodrigues Lobo, até aos pasquins eborenses da sublevação rural e urbana do Sul do País em 1637, assinados com o nome de Manuelinho: são coplas, romances, cartas, diálogos, entremezes, actas supostas de câmaras municipais sertanejas, etc. Este género de literatura prolonga-se para além da Restauração, em denúncias constantes das conspirações de certos altos aristocratas e clérigos contra D. João IV, e intervém mais tarde nas intrigas em torno dos comandos militares, da corrupção burocrática, da questão judaica, do golpe de estado de Castelo Melhor, etc. A obra-prima desta literatura panfletária anónima é a Arte de Furtar. Já muito anteriormente corriam as cópias das Trovas de Bandarra, sapateiro de Trancoso condenado pela Inquisição em 1541, que foram interpretadas em sentido messiânico e especialmente sebastianista e anticastelhano, e pela primeira vez impressas em 1644 em Nantes.
          Há outras manifestações de uma certa ascensão da classe média desde fins do século XVI. A exaltação do idioma e a intensificação do seu estudo gramatical, a multiplicação de compêndios de história nacional, de elogio aos antigos reis portugueses, as reedições sucessivas d’Os Lusíadas e das Rimas de Camões, uma série de comentaristas camonianos e de poemas épicos que sucedem desde D. Sebastião, se por vezes reflectem mais particularmente um patético preconceito da linhagem (caso das epopeias), correspondem em geral a um sentimento nacional de resistência, assente principalmente na burguesia comercial e togada, nos grupos urbanos; a isto acrescem o descontentamento geral (à medida que a crise final do regime filipino intensifica a exploração tributária e a mobilização militar), que atinge artífices e camponeses, as esperanças de tolerância futura para a minoria designada com o nome de «Cristãos-Novos», as preocupações da Companhia de Jesus, atingida na sua expansão ultramarina pela Guerra dos Trinta Anos e consequente expansão à custa das possessões portuguesas, e finalmente a desilusão de uma parte da nobreza, preterida na corte madrilena por estrangeiros ou por funcionários de origem menos ilustre e, por isso, mais submissos aos ministros filipinos.
          O historiador Oliveira Marques conta-nos, no entanto, que em Novembro de 1640 «a conspiração dos aristocratas conseguira finalmente o apoio formal do duque de Bragança. Na manhã do Primeiro de Dezembro, um grupo de nobres atacou o palácio real de Lisboa e prendeu a duquesa de Mântua.» D. João de Bragança é aclamado rei, «entrando em Lisboa alguns dias mais tarde. Por quase todo o Portugal metropolitano e ultramarino as notícias da mudança do regime e do juramento de fidelidade ao Bragança foram bem recebidas e obedecidas sem qualquer dúvida. Apenas Ceuta permaneceu fiel à causa de Filipe IV.» A proclamação da independência «fora assim coisa relativamente fácil. Mais difícil seria agora conseguir mantê-la, o que custou vinte e oito anos de luta e provou ser tarefa muito mais árdua» (Marques, 1980: 440).
          Os Portugueses de 1640, tal como em 1580, estavam longe de ser unidos: «Se as classes inferiores conservavam intacta a fé nacionalista e aderiram a D. João IV sem sombra de dúvida, já a nobreza, muitas vezes com laços familiares em Espanha, hesitou e só parte dela (de onde havia provindo o núcleo revolucionário) alinhou firmemente com o duque de Bragança.» (Ibidem: 441-442). Muitos nobres conservavam-se em posição duvidosa, «outros esperaram algum tempo até se decidirem, outros ainda continuariam a servir Filipe IV, sendo recompensados com títulos e dignidades (três nobres portugueses foram governadores dos Países Baixos e um deles foi vice-rei da Sicília depois de 1640)» (Ibidem: 442). A maior parte dos burocratas apoiou D. João IV, «tornando-se seus secretários e propagandistas. Todavia, alguns escolheram a causa de Espanha e alinharam como conspiradores contra o novo regime. Quanto aos burgueses, a grande maioria não participou no movimento separatista e foi apanhada de surpresa. A sua atitude depois de 1640 mostrou-se, geralmente, de expectativa neutral. Muitos mercadores e capitalistas estavam metidos em negócios em Espanha, possuindo aí, ou no Império Espanhol, boa parte dos seus bens. Outro grupo, porém, com um núcleo importante de cristãos-novos e conexões de relevo fora da Península Ibérica – na Holanda e na Alemanha sobretudo – apoiou a revolução e ajudou a financiá-la. É que os negócios deste grupo dependiam muito mais do tráfico atlântico (Brasil) e do tráfico com a Europa Ocidental e Setentrional» (Ibidem: 442)


12. As minas do Brasil e o apogeu do Barroco em Portugal

          A descoberta do ouro e dos diamantes do Brasil, o incremento das exportações de vinhos (estabilizadas pelo tratado de Methuen em 1703) adiam de novo o problema económico e social, propiciam o prolongamento e reajuste das formas barrocas em Portugal. No tempo de D. João V, com efeito, o ouro brasileiro repete os efeitos das especiarias de Quinhentos: a indústria, ainda mesteiral, definha (excepto em certos ramos sumptuários), no movimento comercial externo destaca-se a exportação visível do ouro, como moeda cunhada ou por interpole (contrabando); emigram massas enormes de artífices e camponeses, sobretudo nortenhos; a burguesia prefere dedicar-se ao contrabando, aos contratos fiscais, ao comércio externo, ao funcionalismo e às profissões liberais; o orgulho de classe da aristocracia exacerba-se, enchendo os conventos de mulheres sem casamento condigno, o que relaxa e mundaniza a disciplina monástica; enchem-se as rodas de «expostos» (enjeitados), e as portarias conventuais ou senhoriais nos dias de esmola ou do caldo; a escolástica jesuíta repele transigências que ainda tinha em 1630 com a mecânica, e torna-se sebenteira.
          Há a orgia do espectaculoso, dos efeitos artísticos redundantes e cumulativos; a ópera de Metastásio, profusa de coros, bastidores e «tramóias»; a arquitectura imponente e recheada inteiramente de talha ou mármores variegados; procissões espaventosas, principalmente as de Corpus Christi, em que figuram inclusivamente alegorias mitológicas; recepções solenes, faustosíssimas, de embaixadores ou de prelados; autos-de-fé copiosos, com a pompa tradicional; touradas intérminas; coches monumentais.
          Publica-se então o mais extenso cancioneiro do barroquismo versejante, a Fénix Renascida, que depois será antologizada e actualizada sob o título de Postilhão de Apolo. Os títulos dos livros são muito longos e pomposos. Em 1720 cria-se a Academia Real das Ciências, que, pelo culto da documentação, progride a historiografia seiscentista, mas reproduz na erudição a mesma ansiedade do monumental que D. João V herdou de Luís XIV.
          Por outro lado, na medicina, na balística, na engenharia, na cartografia, na astronomia, na mineração, na pedagogia, como na arquitectura, na pintura, na música orquestral ou vocal, na cenografia, D. João V precisa de mandar vir estrangeiros, de consultar portugueses estrangeirados (incluindo cristãos-novos), precisa mesmo de enviar portugueses a industriar-se no estrangeiro. Oratorianos e Teatinos, mais condescendes com o espírito científico das sociedades então aburguesadas, quebram o monopólio do ensino jesuíta. Pelas fendas que se abrem nas necessidades mais clamorosas, penetra o ar de uma mentalidade antiescolástica e antibarroca. Põe-se agudamente o problema de como educar de modo mais útil a classe dirigente. A baixa na extracção do ouro e noutros produtos coloniais, que se acentuará na 1.ª metade do século XVIII, torna urgente um programa de fomento mercantilista.
          Alguns homens mais actualizados, como Martinho de Mendonça Pina e Proença, D. Luís da Cunha, Diogo de Mendonça Corte Real, Alexandre de Gusmão, Ribeiro Sanches, Verney e outros, esboçam já no reinado de D. João V o programa que o marquês de Pombal tentará levar a cabo.
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