Como qualquer forma de arte, o texto
dramático serve para o entretenimento dos espectadores, ocupando o seu tempo de
lazer e libertando tensões acumuladas; é a função lúdica. Por outro lado,
alimenta a inteligência, purifica a vida, sujeita sempre à erosão do tempo e à
poluição da sociedade. Ajuda a viver, a ter amor à VIDA; é a função catártica.
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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018
Classificação das peças de Gil Vicente
1.º) Autos pastoris: diálogos cómicos de pastores, como o Auto Pastoril Castelhano ou o Auto
Pastoril Português. Ocasionalmente estes diálogos de pastores combinam-se
com alegorias, como acontece no Auto da
Fé, no Auto Pastoril da Serra da
Estrela; por vezes, também, os pastores são figuras bíblicas, como no Auto da Sibila Cassandra.
2.º) Autos de moralidade, dentre os quais se podem distinguir dois tipos.
Com efeito, há
autos que, a propósito do nascimento ou da ressurreição de Cristo, resumem a
teoria teológica da Redenção: a vinda de Cristo para redimir o pecado original
é anunciada ou prefigurada por profetas e por episódios do Velho Testamento, ou
até da literatura e da história pagãs. É o tema do Auto da Sibila Cassandra (em que os profetas e sibilas são
pastores); do Auto dos Quatro Tempos;
do Auto da Mofina Mendes; do Breve Sumário da História de Deus.
Outro tipo
constituem-no aquelas peças que, sob a forma mais pronunciadamente alegórica,
nos dão um ensinamento religioso ou moral: tal é o caso do Auto da Alma, que põe em cena a Alma solicitada entre o Diabo e o
Anjo da Guarda, e salva graças aos méritos da Paixão de Cristo; e o Auto da Feira, onde se mercam virtudes e
vícios; o dos três Autos das Barcas,
onde estes são castigados e aquelas premiadas. Estas peças estruturam-se como alegorias;
as personagens são personificações alegóricas ou tipos reais caricaturados. Por
vezes o esquema alegórico religioso parece oferecer um pretexto, um quadro
exterior para a apresentação em cena de sátiras ou caricaturas profanas. É o
caso do Auto da Barca do Inferno,
onde o propósito de sátira social predomina sobre o de edificação religiosa, ao
contrário do que sucederá com o Auto da
Barca da Glória.
3.º) Farsa: na sua forma mais simples, reduz-se a um pequeno episódio cómico
colhido em flagrante na vida da personagem típica. É o caso de Quem Tem Farelos?, onde se conta o
percalço sucedido a um triste escudeiro namorador, corrido pela mão da
requestada, sob uma chuva de troças e maldições. Por vezes estes quadros
sucedem-se, sem haver qualquer relação entre a cabeça e o cabo da peça. É o
caso da Farsa dos Almocreves, ou o de
O Clérigo da Beira. Nesta última aparecem-nos
sucessivamente um padre rezando distraidamente as matinas, um rústico roubado
na corte, e um escravo negro que rouba: as personagens dão lugar umas às
outras, sem qualquer unidade de acção. Por vezes, também, os episódios e as
personagens desfilam em torno de um motivo central, embora faltando-lhe um
processo de desenvolvimento, como no caso de O juiz da Beira, perante cujo tribunal comparecem várias causas. Há
a considerar ainda farsas mais desenvolvidas que são histórias completas, com
princípio, meio e fim. É o caso do Auto
da Índia, onde se apresenta o caso de uma mulher que engana o marido,
alistado no ultramar; ou o do Auto de
Inês Pereira, que ilustra com uma história picante o dito popular «antes
quero burro que me leve que cavalo que me derrube»; ou ainda o do Velho da Horta, que nos exibe a paixão
de um velho por uma moça. Nestes autos, a história corre em diálogos e acções
que se sucedem sem transição; são como contos dialogados no palco, sem qualquer
preocupação de unidade de tempo, e sem qualquer compartimentação de quadros ou
actos a marcar a descontinuidade dos tempos. Poderíamos talvez classificá-los
como autos de enredo. Trata-se da forma mais desenvolvida, mas excepcional, da
farsa vicentina.
Normalmente, Gil
Vicente fica nos pequenos quadros ou flagrantes, e estes aparecem
frequentemente enquadrados em esquemas que lhes são exteriores, nomeadamente em
alegorias. Por exemplo, alegorias religiosas, como o Auto da Feira, e a Barca do
Inferno e do Purgatório, encerram
várias pequenas farsas. Certas alegorias profanas parecem ter sido
especialmente concebidas para enquadrar séries de farsas, como a Romagem de Agravados, na qual, a caminho
de uma romaria, passam. Evidenciando os seus vícios típicos em monólogos e
diálogos, camponeses, fidalgos, freiras, clérigos; ou como a Floresta de Enganos, que insere uma
comédia sentimental numa cadeia de variadas vigarices. Grande parte dos autos
pode conceber-se como simples desfile de tipos ou casos a pretexto de uma
alegoria central (as Barcas, a Romagem, a Frágua ou Nau de Amores,
etc.), o que constitui o último vestígio da sua origem medieva.
4.º) Autos cavaleirescos: são meras encenações de episódios sentimentais cavaleirescos
(como, por exemplo, o Amadis de Gaula,
o D. Duardos, a Comédia do Viúvo), então em grande voga na corte. Estas peças têm
de comum com as farsas desenvolvidas, como a Inês Pereira, o serem autos de enredo, histórias dialogadas e
monologadas no palco. No D. Duardos,
tido como o melhor exemplar do género, há uma grande efusão de lirismo nos
monólogos do protagonista, dentro dos padrões do amor cortês, e o auto conclui
por um belíssimo rimance ou balada.
Dentro do mesmo
grupo deve englobar-se a Comédia de
Rubena, história de uma enjeitada, desde que nasce até que casa com um
príncipe. Esta peça tem a particularidade de estar dividida em cenas, cada uma delas com o seu
interesse próprio (por vezes de farsa) e separada da anterior por intervalos de
vários anos. A importância que no enredo destes autos cavaleirescos assume o
reconhecimento de personagens aristocráticas, antes tidas por viloas, de forma
a resolver pelo casamento o conflito entre o amor e a desigualdade social,
remete para a comédia clássica. Mas alguns (e sobretudo o de Rubena) não dispensam um narrador que
ligue as cenas entre si.
5.º) Alegorias de tema profano, que oferecem formas variadas.
Há uma alegoria
de conjunto que serve de tema central ou de quadro, à roda ou dentro do qual se
desenvolvem episódios de farsas, cenas de amor, cânticos e até bailados. Por
exemplo, Júpiter reúne cortes para garantir boa viagem e condigna despedida à
infanta D. Beatriz, duquesa de Sabóia: é o auto das Cortes de Júpiter. Ou, a propósito do casamento de D. João III, D.
Catarina, a desposada, apresenta-se-nos sob a forma de um Castelo, a cujo
alcaide (o Coração) o deus Cupido obedece; dentro do Castelo há uma grande
forja cujos ferreiros são quatro planetas, que têm por companheiros os quatro
Gozos de amor; esta forja transforma os homens: dos negros faz brancos, dos
frades leigos, e da Justiça, uma velha muito corcovada, faz uma moça
escorreita.
Esta
classificação do teatro vicentino em autos pastoris, moralidades, farsas, autos
cavaleirescos, autos alegóricos (de tema profano) não passa de simples tentame
aproximativo. O auto pastoril e a moralidade entrelaçam-se no Auto de Sibila Cassandra. A fantasia
alegórica de tema religioso e a de tema profano tocam-se por vezes, como no Auto dos Quatro Tempos, em que o
Menino-Deus é adorado pelas forças da natureza personificadas e pelo próprio
Júpiter, ou no Auto da Feira, que é
simultaneamente uma sátira social e uma «obra de devoção».
Por outro lado,
se analisarmos a estrutura das peças, verificamos que os autos pastoris são
farsas de assunto caracterizadamente campestre; que as farsas mais desenvolvidas,
como a Inês Pereira, constituem, exatamente
como os autos cavaleirescos, formas de teatro de enredo; que, enfim, só quanto
ao tema se distinguem facilmente as alegorias profanas das moralidades.
Assim, podemos
dizer que encontramos em Gil Vicente três formas de estrutura cénica: a farsa,
simples episódio característico de um caso ou um tipo social-moral, que tem
talvez o seu melhor exemplo em Quem Tem
Farelos? (autêntica Farsa do Escudeiro); o auto de enredo, com
modalidades exemplificáveis pela Inês
Pereira e pelo Amadis de Gaula; e
o auto
alegórico, quer religioso, como a dos autos das Barcas, quer profano,
como a Frágua do Amor ou o Triunfo do Inverno. Destas três estruturas,
a mais comum e a que integra maior número de elementos é a do auto alegórico,
aquele que talvez melhor represente a concepção vicentina do teatro.
A. J. Saraiva
& Óscar Lopes, História da Literatura
Portuguesa (adaptado), 16.ª edição, pp. 191-199
De acordo com Luís
Francisco Rebelo, podemos dividir o teatro de Gil Vicente em temas profanos e religiosos:
. Temas profanos:
. Comédias: trata-se de fábulas
fantasiadas e de desfecho positivo, onde intervêm quase sempre cavaleiros e
personagens mitológicas.
. Farsa: é um género caracterizado pela “mecânica do Engano”, por uma
intriga curta e concentrada, por um reduzido número de personagens e pela
verosimilhança de situações. Este tipo de peças alia a vertente satírica e
moralizante à propensão cómica e burlesca.
. Temas religiosos:
. Moralidades: este tipo de representação tem sempre uma intenção didática, “pela
destrinça rigorosa entre o Bem e o Mal e pela representação alegórica”. De acordo
com José Bernardes, globalmente o teatro de Gil Vicente pode ser “identificado
com uma espécie de moralidade transversal, na medida em que nele se observa uma
evidente intenção doutrinal e didática e uma delimitação entre o que deve ser
louvado e o que deve ser repreendido.”.
Teatro pré-vicentino
É frequente ouvir-se dizer que
Gil Vicente é o pai do teatro português. Sucede, porém, que antes dele havia já
encenações teatrais representadas no espaço público, na corte e nas igrejas, encenações
essas que se distribuem por dois grupos de géneros: o religioso,
cujas representações versavam temas sagrados, e o profano,
que tratava assuntos mundanos.
Os principais géneros do teatro religioso, nascido, em parte pelo menos,
das representações litúrgicas do Natal e da Páscoa, são, no século XV:
-» os mistérios: punham em cena, de forma mais ou menos
realista, por vezes com centenas de figurantes e dezenas de episódios, a vida
de Cristo segundo o Novo Testamento, e a parte do Velho Testamento que se
considerava como «prefiguração» daquele;
-» as moralidades: peças mais curtas cujas personagens
eram abstrações personificadas, figuras alegóricas, como os vícios e virtudes
(a Fé, a Virtude, o Pecado, etc.), ou os tipos psicológicos;
-» os milagres: apresentavam situações dramáticas das
vidas dos santos, ou em que estes ou a Virgem intervinham miraculosamente;
-» as laudes: cânticos
de louvor a Deus.
No que diz respeito às
manifestações teatrais pré-vicentinas de tipo profano,
encontramos as seguintes:
-» as farsas: género popular, normalmente de intenção
satírica;
-» as sotties: farsas carnavalescas cujo protagonista
era um «sandeu» (francês sot), o que
permitia críticas livres e aceradas;
-» os momos: representações feitas à base de mímica;
-» os arremedilhos: representações baseadas na imitação,
habitualmente de figuras públicas;
-» os sermões burlescos: representações breves
carnavalescas representadas por atores mascarados com vestes sacerdotais.
Faltam documentos a atestar a
existência de mistérios, moralidades e milagres em Portugal. Sabe-se, no
entanto, que se representavam ou improvisavam sermões burlescos, se mimavam
pequenas farsas sobre histórias de clérigos e freiras; que nas igrejas e
abadias, por ocasião do Natal, da Páscoa e da procissão de Corpus Christi, se realizavam «jogos» e «autos», «representações»,
com pastores e reis magos adorando o Presépio, apóstolos, santos, máscaras e
figuras alegóricas de anjos ou demónios. Por outro lado, encontramos já no Cancioneiro Geral pequenos esboços de
farsa, como os de Anrique da Mota, que podem estar na linha de desenvolvimento
de velhos arremedos truanescos e jogralescos.
Deste modo, será abusivo
considerar Gil Vicente como o pai do teatro português. Será mais correto
afirmar que foi o nosso primeiro grande dramaturgo.
Atentemos, a este propósito, nas
palavras de Luiz Francisco Rebello:
Está hoje posta de parte, pela moderna crítica literária, a tese
romântica largamente enraizada segundo a qual o teatro português teria nascido
nos alvores do século XVI, com Gil Vicente, antes do qual não existiria. […]
Não se compreenderia, com efeito, que as manifestações dramáticas
características da Idade Média, comuns a toda a Europa como eram, não
houvessem chegado ao extremo ocidental da Península Ibérica. […]
A
carência de textos escritos – e o caráter oral de todas as literaturas nos
seus primórdios pode muito bem explica-la, com especial adequação no que ao
teatro se refere – está longe de constituir um óbice intransponível a que
haja um teatro pré-vicentino. Aliás, esses textos existem, ainda que em número
reduzido; e a par deles conhecem-se documentos que dão notícia indiretas, mas
irrecusáveis, de um teatro anterior a Gil Vicente, em cuja obra,
transfigurados pelo seu génio poético, os elementos principais desse teatro
subsistem. Gil Vicente não foi (e isto em nada diminui a sua grandeza) o criador
do teatro português; mas foi com ele que este abandonou o estado larvar,
embrionário, em que vegetava desde o século XII, para assumir enfim uma existência
literária.
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