É frequente ouvir-se dizer que
Gil Vicente é o pai do teatro português. Sucede, porém, que antes dele havia já
encenações teatrais representadas no espaço público, na corte e nas igrejas, encenações
essas que se distribuem por dois grupos de géneros: o religioso,
cujas representações versavam temas sagrados, e o profano,
que tratava assuntos mundanos.
Os principais géneros do teatro religioso, nascido, em parte pelo menos,
das representações litúrgicas do Natal e da Páscoa, são, no século XV:
-» os mistérios: punham em cena, de forma mais ou menos
realista, por vezes com centenas de figurantes e dezenas de episódios, a vida
de Cristo segundo o Novo Testamento, e a parte do Velho Testamento que se
considerava como «prefiguração» daquele;
-» as moralidades: peças mais curtas cujas personagens
eram abstrações personificadas, figuras alegóricas, como os vícios e virtudes
(a Fé, a Virtude, o Pecado, etc.), ou os tipos psicológicos;
-» os milagres: apresentavam situações dramáticas das
vidas dos santos, ou em que estes ou a Virgem intervinham miraculosamente;
-» as laudes: cânticos
de louvor a Deus.
No que diz respeito às
manifestações teatrais pré-vicentinas de tipo profano,
encontramos as seguintes:
-» as farsas: género popular, normalmente de intenção
satírica;
-» as sotties: farsas carnavalescas cujo protagonista
era um «sandeu» (francês sot), o que
permitia críticas livres e aceradas;
-» os momos: representações feitas à base de mímica;
-» os arremedilhos: representações baseadas na imitação,
habitualmente de figuras públicas;
-» os sermões burlescos: representações breves
carnavalescas representadas por atores mascarados com vestes sacerdotais.
Faltam documentos a atestar a
existência de mistérios, moralidades e milagres em Portugal. Sabe-se, no
entanto, que se representavam ou improvisavam sermões burlescos, se mimavam
pequenas farsas sobre histórias de clérigos e freiras; que nas igrejas e
abadias, por ocasião do Natal, da Páscoa e da procissão de Corpus Christi, se realizavam «jogos» e «autos», «representações»,
com pastores e reis magos adorando o Presépio, apóstolos, santos, máscaras e
figuras alegóricas de anjos ou demónios. Por outro lado, encontramos já no Cancioneiro Geral pequenos esboços de
farsa, como os de Anrique da Mota, que podem estar na linha de desenvolvimento
de velhos arremedos truanescos e jogralescos.
Deste modo, será abusivo
considerar Gil Vicente como o pai do teatro português. Será mais correto
afirmar que foi o nosso primeiro grande dramaturgo.
Atentemos, a este propósito, nas
palavras de Luiz Francisco Rebello:
Está hoje posta de parte, pela moderna crítica literária, a tese
romântica largamente enraizada segundo a qual o teatro português teria nascido
nos alvores do século XVI, com Gil Vicente, antes do qual não existiria. […]
Não se compreenderia, com efeito, que as manifestações dramáticas
características da Idade Média, comuns a toda a Europa como eram, não
houvessem chegado ao extremo ocidental da Península Ibérica. […]
A
carência de textos escritos – e o caráter oral de todas as literaturas nos
seus primórdios pode muito bem explica-la, com especial adequação no que ao
teatro se refere – está longe de constituir um óbice intransponível a que
haja um teatro pré-vicentino. Aliás, esses textos existem, ainda que em número
reduzido; e a par deles conhecem-se documentos que dão notícia indiretas, mas
irrecusáveis, de um teatro anterior a Gil Vicente, em cuja obra,
transfigurados pelo seu génio poético, os elementos principais desse teatro
subsistem. Gil Vicente não foi (e isto em nada diminui a sua grandeza) o criador
do teatro português; mas foi com ele que este abandonou o estado larvar,
embrionário, em que vegetava desde o século XII, para assumir enfim uma existência
literária.
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