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quinta-feira, 23 de novembro de 2017

O amor cortês

            As cantigas de amor veiculam um conceito de amor muito próprio: amor cortês, porque este tipo de cantar teve a sua origem na corte e, por isso, transmite um certo refinamento de atitudes e comportamentos. Este amor é um amor fino, refinado, que traduz uma certa excelência em termos morais (cortesia) a que corresponde um comportamento social (mesura): saber falar, andar, olhar, rir.
            Este amor obedecia a um código designado por fin' amors, que implicava determinadas regras:
-» este amor era, para o trovador, fonte de felicidade e, mesmo quando não correspondido,  ele devia continuar a servi-la,  pois essa atitude só mostrava como era mesurado e comedido;
-» o sofrimento inicial do trovador é necessário para que ele se mostre digno dela;
-» para se aproximar e alcançar a mercê da dama, à maneira do vassalo para com o seu senhor, o trovador seguia um certo ritual, composto por várias fases:
1.ª- suspirante ou fenhedor: tímido, olha a dama de longe, suspirando e ansiando;
2.ª- suplicante ou precador: já consegue/ousa dirigir-se à dama, solicitando-lhe atenção para a sua humilde pessoa e correspondência ao seu amor;
3.ª- namorado ou entendedor: consegue ser ouvido pela dama e a correspondência é quase completa;
4.ª- amante ou drudo: o trovador é correspondido espiritual e fisicamente (na cantiga de amor lusa, era raríssimo atingir o grau de drudo, pois este amor era a arte pela arte, um amor puro, platónico);
-» o amor é uma submissão de vontades e compromisso de prestação de serviços do trovador à dama: ele humilha-se, serve, ajoelha e adora-a;
-» se não queria incorrer na sanha (ira) da sua "senhor", o trovador deveria ter presente as seguintes obrigações:
                                   . vassalagem amorosa, humilde e paciente;
                                   . obediência e sujeição absoluta à dama;
                                   . servi-la e honrá-la até à morte;
                                   . ocultar o nome da "dona" cantada, através do uso do senhal;
. ter em atenção a  mesura  e  a  cortesia  ( a  falta  deste preceito podia acarretar a sanha da dama e "quitar-lhe o preito", isto é, romper a fidelidade a que se obrigavam).
            Como se pode constatar, a mulher cortejada pelos trovadores não era a donzela, a mulher solteira, mas a casada, pois a donzela, no feudalismo, não tinha importância: não era independente, não possuía bens materiais.

            Neste tipo de cantiga, o trovador empreende a confissão, dolorosa e quase elegíaca, de sua angustiante experiência passional frente a uma dama inacessível aos seus apelos, entre outras razões porque de superior estirpe social, enquanto ele era, quando muito, um fidalgo decaído. Uma atmosfera plangente, suplicante, de litania, varre a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-se alto, num plano de espiritualidade, de identidade ou contemplação platónica, mas entranham-se-lhe no mais fundo dos sentidos: o impulso erótico situado na raiz das súplicas transubstancia-se, purifica-se, sublima-se. Tudo se passa como se o trovador "fingisse", disfarçando com o véu do espiritualismo, obediente às regras de conveniência social e da moda literária vinda da Provença, o verdadeiro e oculto sentido das solicitações dirigidas à dama. À custa de "fingidos" ou incompreendidos, os estímulos amorosos transcendentalizam-se, graças ao torturante sofrimento interior que se segue à certeza da inútil súplica e da espera dum bem que nunca chega. É a coita (= sofrimento) de amor que, afinal, ele confessa.
            As mais das vezes, quem usa da palavra é o próprio trovador, dirigindo-a em vassalagem e subserviência à dama de seus cuidados (mia senhor ou mia dona = minha senhora), e rendendo-lhe o culto que o "serviço amoroso" lhe impunha. E este orienta-se de acordo com um rígido código de comportamento ético: as regras do "amor cortês", recebidas da Provença. Segundo elas, o trovador teria de mencionar comedidamente o seu sentimento (mesura), a fim de não incorrer no desagrado (sanha) da bem-amada; teria de ocultar o nome dela ou recorrer a um pseudónimo (senha), e prestar-lhe uma vassalagem que apresentava quatro fases: a primeira correspondia à condição de fenhedor, de quem se consome em suspiros; a segunda é da precador, de quem ousa declarar-se e pedir; entendedor é o namorado; drut, o amante. O lirismo trovador português conheceu as duas últimas fases, mas o drut (drudo em português) encontrava-se exclusivamente na cantiga de escárnio e maldizer. Também a senha era desconhecida do nosso trovadorismo. O trovador, portanto, subordina todo seu sentimento às leis da corte amorosa, e ao fazê-lo, conhece as dificuldades interpostas pelas convenções e pela dama no rumo que o levaria à consecução dum bem impossível. Mais ainda: dum bem (e "fazer bem" significa corresponder aos requestos do trovador) que ele nem sempre deseja alcançar, pois seria pôr fim ao seu tormento masoquista, ou início dum outro maior. Em qualquer hipótese, só lhe resta sofrer, indefinidamente, a coita amorosa.
            E, ao tentar exprimir-se, a plangência da confissão do sentimento que o avassala – apoiada numa melopeia própria de quem mais murmura suplicantemente do que fala – vai num crescendo até à última estrofe (a estrofe era chamada, na lírica trovadoresca, de cobra); podia ainda receber o nome de cobla ou de talho. Visto uma ideia obsessiva estar empolgando o trovador, a confissão gira em torno dum mesmo núcleo, para cuja expressão o enamorado não acha palavras muito variadas, tão intenso e maciço é o sofrimento que o tortura. Ao contrário, parece que seu espírito, caminhando dentro dum círculo vicioso, acaba por se repetir monotonamente, apenas mudando o grau de lamento, que aumenta em avalanche até ao fim. O estribilho ou refrão, com que o trovador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante ideia fixa para a qual ele não encontra expressão diversa.
            Quando presente o estribilho, que é recurso típico da poesia popular, a cantiga chama-se de refrão. Quando ausente, a cantiga recebe o nome de maestria, por tratar-se dum esquema estrófico mais difícil, intelectualizado, sem o suporte facilitador daquele expediente repetitivo.

                                               Massaud Moisés

            O carácter repetitivo do nosso lirismo explica-se por razões de ordem psicológica e artística. Em primeiro lugar, a nossa poesia é mais do coração que a poesia provençal. Nesta, (...) a inteligência e a imaginação suprem muitas vezes a falta de emoção. Por isso, a poesia se alonga, num recreio dos sentidos, através de seis e sete estrofes e mais ainda. O trovador compraz-se no jogo da sua fantasia, sente-se a divisória entre o artista e o Homem. A nossa cantiga d' amor dá-nos uma impressão diferente e de maior verdade psicológica.
            O amor, entre nós, é uma súplica apaixonadamente triste. E não há nada que exprima tão bem esse carácter de prece do que a tautologia, a repetição necessária do apelo para alcançar um dom, que não chega mais. Por isso o nosso lirismo é por vezes um documentário precioso de poesia pura: todo se exala num suspiro, numa queixa, numa efusão exclamativa. É uma voz que vem dos longes da alma. A emoção não se pulveriza em cintilações de forma artística; sempre uno, o turbilhão emocional permanece até ao fim substancialmente o mesmo, com uma ou outra modificação levíssima de forma. Isto dá à cantiga d' amor um cunho de obsessão, de monotonia pungente, que resultaria fastidiosa se fosse desenrolada em mais de três ou quatro estrofes. Talvez por isso mesmo os trovadores limitassem a este número a repartição estrófica das cantigas.
            Para exprimir esta devoradora monotonia do nosso sentimentalismo os trovadores tinham já na cantiga tradicional dois elementos que habilmente utilizaram: o paralelismo e o refrão, que se completam um ao outro. (...) Por outras palavras: devendo todos os versos da estrofe confluir no refrão, e sendo este, naturalmente, o mesmo para cada estrofe, é inevitável a repetição da ideia, com ligeiras variantes de forma.

                        Manuel Rodrigues Lapa, Lições de Literatura Portuguesa, pp. 132-133

A supremacia da mulher e a cantiga de amor

            No sul de França, a mulher dispunha de uma certa independência social e económica, que tem o seu reflexo na poesia provençal.
            Com efeito, a mulher é o centro do cantar de amor. Ao contrário do cantar de amigo, aqui a dama é sempre casada e, por isso, o trovador, quando se lhe dirige, usa uma espécie de código ou senha (senhal) – referência à cor dos olhos, do cabelo, expressões como "mia senhor", etc. – para evitar a sua identificação. Por isso, o retrato que nos é dado é de natureza genérica e pouco concreta: bela, devota, sabe falar e estar socialmente, é bondosa, meiga e cordata.
            Mas este amor cortês, puro, impõe um ritual bem apertado, à maneira da estrutura feudal: assim como o vassalo deve vassalagem e obediência ao seu senhor, também o trovador deve vassalagem e obediência à sua dama – ela é a sua suserana, ele seu vassalo. O trovador coloca-se abaixo da mulher cantada e que ele quer servir. Por isso se diz que esta relação é uma verdadeira relação feudal.


            Daí o trovador tratar a dama por "mia senhor"/"midons". Outras palavras ligadas ao feudalismo são: "liam" (vínculo suserano-vassalo // senhora-trovador), vassalo, serviço. etc. O amor é um serviço feudal que implica o mesmo ritual sócio-político e que vive da admiração recíproca.
            O trovador admira a sua dama, sobretudo as suas virtudes morais, a sua dignidade, a sua fidelidade. É um amor quase idólatra, um amor absorvente, torturado, saudoso, de um fatalismo passional.
            Vários são os elementos que contribuem, na Provença, para o nascimento deste hino amoroso: o clima ameno, a terra, fértil, o contacto com o Mediterrâneo e a sua abertura para as civilizações que por ali passaram. As suas gentes eram alegres, a paisagem verdejante, com horizontes a perder de vista. Tudo era favorável ao despertar do amor e desse lirismo de amor.

            A mulher que, na Grécia e em Roma, no paganismo, era até desprezada, considerada pior que uma besta (Séneca via-a como impudens animal), começa a ser reabilitada com o cristianismo e agora, no regime feudal, vai ser exaltada, endeusada, sobretudo no sul da Provença, onde ela gozava de uma situação privilegiada: herdava e possuía bens próprios e podia dispor deles, a seu belo prazer, independentemente do consentimento do marido. Era, afinal, uma espécie de compensação para os efeitos negativos que a guerra lhe trazia: o marido partia para a guerra e a mulher ficava só a enfrentar a vida.

O lirismo de amor

            A partir de determinada altura, a guerra começa a esmorecer, outros interesses renascem e no sul desponta um novo ideal amoroso. Uma elite de nobres e clérigos procura nas letras outras distracções que tivessem mais a ver com as suas almas sensíveis e líricas. E no século XI desperta o espírito cortês, cria-se um universo novo de sonho e fantasia, que faz nascer uma literatura popular, que se tornou artística e penetrou nas cortes senhoriais e reais.
            Como a canção do povo era cantada e bailada, os trovadores distinguem-se não só pela arte de trovar, como de "cantar e bailar a la provençalesca". E a poesia, cuja origem radica no desafogo da vida burguesa durante a época das cruzadas, entre a primeira, em 1095, e a segunda, em 1268, entra, assim, nas cortes e é imitada por reis e príncipes, mas nem por isso deixa de perder a sua origem plebeia. E não é só a divulgação deste lirismo por toda a Europa: é o renascer destas canções nas populações românicas.
            O cavaleiro já não combate mais pelo seu Deus nem pelo seu senhor, mas pela sua dama.
            Nasce, então, a arte dos trovadores, a arte do amor cortês, o amor puro que leva à virtude, à perfeição, à razão de existir.


Canções de gesta

            No Norte de França floresce uma literatura de exaltação nacional e mística. Os trovadores cantam e imortalizam os feitos heróicos de cavaleiros que partem, indómitos e ferozes, a defender a pátria e a fé de Cristo, criando epopeias onde celebram a coragem, a honra, o heroísmo, a determinação desses homens bravos que ficarão para sempre imortalizados na alma dos povos. Estas epopeias dirigem-se a todas as classes, cantando e celebrando o presente e recriando um passado através de tradições e mitos fabulosos e heróicos.

            No Norte estes cantares, de tom épico, heróico, majestoso, conduzem à morte. São as canções de gesta.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Abreviações e particípio passado


     Mais uma peça da imprensa...

     Pelo menos dois erros são evidentes:

     1.º) A abreviação sem o pontinho: 1.ª e não «1ª».

     2.º) O complexo verbal «ter aceite» está incorreto. Determinados verbos possuem duas formas de particípio passado. É o caso de «aceitar»: «aceitado» e «aceite». Ora, a primeira forma é usada com o auxiliar "ter", enquanto «aceite» é utilizada com o auxiliar «ser»:
 
          - Williams foi o único a ter aceitado a proposta.

          - A proposta foi aceite por Williams.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Análise da cantiga "Que soidade de mha senhor ei"

. Assunto: o trovador exprime a saudade e o desespero que sente face à ausência da "senhor", de tal forma que o levará à morte se não a vir rapidamente.


. Tema: a saudade pela "senhor".


. Estrutura interna

. 1.ª parte (vv. 1-6) - O trovador exprime:
- a saudade provocada pela ausência da amada;
- a recordação dela: "qual a vi", "que bem a oí falar", "quanto ben dela sei";
- refrão: o pedido a Deus para a ver.

. 2.ª parte (vv. 7-12) - Consequências de não ver a amada:
- a loucura
        ou
- a morte.

. 3.ª parte (vv. 13-20) - Exaltação das qualidades da mulher amada ("non lhi fez par", "fez das melhores melhor") e confissão da certeza de que morrerá se não vir rapidamente a "senhor" (dependência total em relação à mulher amada).


. Caracterização da "senhor":
- boas maneiras (fala bem);
- formosa;
- não há outra igual;
- ideal;
- perfeita;
- divinizada;
- altiva, distante, indiferente aos sentimentos do trovador (v. 7);
- inacessível;
- encontra-se ausente.


. Caracterização do trovador:
- recorda a "senhor" com saudade;
- sofre por ela (coita de amor);
- está triste;
- apaixonado;
- suplica a Deus que lhe permita voltar a vê-la;
- enlouquecerá e/ou morrerá se não voltar a vê-la;
- esperançado em voltar a vê-la;
- ansioso;
- desesperado;
- totalmente submetido à "senhor";
- comedido na expressão do sentimento amoroso (mesura);
- sente dor;
- revoltado;
- encontra-se na fase de fenhedor, pois suspira e pede a Deus que lhe permita vê-la.


NOTAS:

            a) Amor associado à saudade: o trovador ama a "senhor" e basta um dia sem a ver para morrer de saudades.

            b) O "ensandecer" e a morte de amor: o amor é considerado um sentimento que pode levar à loucura e mesmo à morte.

            Os nossos trovadores sofrem a "coita de amor". Não lhes basta cantar as perfeições idealizadas da mulher, a aspiração ao inacessível não os satisfaz. O amor é entendido como um sentimento que esvazia a vida de sentido e leva à loucura e à "morte".
            A cantiga de amor galaico-portuguesa é um repetir monótono da necessidade vital de ver a "senhor"; daí que a realidade e a ficção acabem por se entrelaçar e aquela, por vezes, sobrepor-se a esta. Todavia, a afirmação da "morte de amor", repetida vezes sem conta, torna-se um lugar-comum que destrói a sinceridade, se presta ao ridículo e à sátira.


. Concepção do amor (amor cortês):

. A "senhor" é um ser superior a quem o trovador presta vassalagem amorosa. Ela é a suserana do coração dele ("todo en seu poder ten"), que enlouquecerá ou morrerá se não a vir.

. A relação amorosa caracteriza-se, portanto, pela admiração e pela submissão do trovador face à dona.

. Ao contrário da cantiga de amigo, o amor não tende, por princípio, à união sexual; é, em geral, fingimento e convenção. Apresenta-se como um ideal a atingir, como um estado de espírito que deve ser alimentado. É uma aspiração sem correspondência, em que se invertem as relações de domínio e de vassalagem:


              O trovador vê-se atingido por um amor fatal, porque, um dia, viu uma formosa dama, "das melhores a melhor", e pelos olhos lhe vai surgir todo o sofrimento, toda a sua coita, que o leva a dizer que morrerá se não a vir.
              Consiste este amor, em suma, numa aspiração e estado de tensão por um ideal de mulher ou ideal de amor.

. Deste modo, o trovador segue de perto a teoria platónica do amor:


              A "senhor" é cheia de formosura, é o tipo ideal de mulher. A sua beleza e o bem que possui são, de acordo com a teoria platónica, uma ideia pura. Ela é uma projecção platónica do Bem, do Belo e da Virtude. O amor cortês apresenta-se, pois, como ideal, como aspiração que não tende à relação sexual, mas surge como estado de espírito que deve ser alimentado.

. Este amor (em geral fingimento e convenção na poesia provençal), na língua galego-portuguesa, parece sincero, numa súplica apaixonada e triste.


. Outras características:
® não totalmente declarado, devido ao seu carácter adúltero;
® com poucas hipótese de ser vivido a nível físico;
® submissão total do EU à dona, numa atitude de vassalagem amorosa;
® fidelidade eterna do EU à dona;
® beleza, altivez e indiferença da dona face ao seu "vassalo";
® sofrimento  -  coita de amor do trovador, de acordo com as regras:
. vassalagem amorosa;
. comedimento na expressão do sentimento amoroso  -  mesura;
. não mencionar o nome da amada  -  o "trobar clus";
. amor faseado:     fenhedor (suspirar);
precador (suplicar);
entendedor (namorar);
drut (amar);
® os artifícios poéticos do enlouquecer e da morte de amor.


. Recursos poético-estilísticos

            1. Forma / Estrutura externa

. Cantiga composta por três estrofes isométricas de 4 versos e um refrão dístico e ainda uma estrofe final dística, que é a finda.
. Rima      - abbaRR;
- interpolada e emparelhada;
- consoante ("ei"/"sei");
- pobre ("ei"/"sei") e rica ("ben"/"ten");
- aguda ou masculina.
. Metro: versos decassílabos.
. Refrão (influência da cantiga de amigo): dístico de versos monórrimos que traduz a ansiedade e do desejo do trovador de ver a dona, bem como a angústia e o desespero que o dominam.
. Finda: conclusão, remate ou assunto da cantiga. Exprime a certeza da morte se não conseguir ver a mulher.
. Atafinda: forma de encavalgamento ou de ligação sintáctica e ideológica entre as estrofes. A ligação é realizada através da repetição de "veer" no fim da estrofe e de "cedo" no início da seguinte.


                        1.1. Outros elementos fónicos

. Transporte: vv. 3-4, 8-9, etc.  -  prolonga o queixume e a mágoa do sujeito.
. Assonância em i, e, a.
. Ritmo predominantemente binário e lento.


            2. Nível morfossintático

. Substantivos [1]:
- "soidade": o sentimento central do trovador em virtude da ausência da dona e que é a matriz dos outros sentimentos  -  dor, desespero, desilusão, tristeza, sofrimento, ansiedade, amor, esperança, admiração, revolta;
- Deus:     ® o responsável pela beleza ímpar da dona;
® o objecto da súplica do trovador no sentido de voltar a ver a amada;
- senhor:     ® o objecto do amor-vassalagem do trovador, o ideal da perfeição;
® a causadora dos sentimentos do trovador, quer pela sua inigualável beleza, quer pela indiferença face ao amor dele.
. Verbos:
. pretérito perfeito: a recordação da época em que conheceu a dona (início da sua coita de amor presente) e os aspectos que o cativaram;
. presente: a coita de amor do trovador e o desejo e a rever;
. futuro ("prouguer" ® futuro do conjuntivo do verbo "prazer"): voltar a vê-la ou a morte se não a vir.
            O verbo ver é bastante expressivo no contexto da cantiga de amor, na evocação visualista da dona e porque remete para a estética da luz:
. O trovador vê-se enredado no amor fatal porque, um dia, viu uma formosa dama "das melhores melhor"; e pelos olhos vai surgir todo o sofrimento. Os olhos intrometem-se nos negócios de amor.
. Ver é ter luz = poder participar do objecto e difundir-se indefinidamente até ao ser amado. A actividade da luz é difundir-se indefinidamente e provocar todos os movimentos.
. Luz  -  do latim lux = esse lucidum (ser lúcido); ou seja, pela luz participa-se de todas as coisas criadas.
. A exploração do simbolismo da luz faz parte da própria estética medieval, que é uma estética da luz.
. Hipérbatos: "Que soidade de mia senhor ei", etc.
. Anáfora: vv. 7, 13, 19.
. Função expressiva:
- substantivos ("soidade");
- verbos ("rogo");
- carácter exclamativo do primeiro verso;
- adjectivos.


            3. Nível semântico

. Hipérboles: a saudade é tamanha que, se não a vir, enlouquecerá e morrerá:
- "se a non vir, non me posso guardar / d' ensandecer ou morrer con pesar";
o encarecimento da dama  -  perfeita, ideal, divinizada, a melhor:
- "non lhi fez par";
- "fez das melhores melhor".
. Antíteses:       - "mi nunca fez ben" ¹ "ensandecer ou morrer con pesar";
- ver  ¹  não ver a dona
   ¯                    ¯
 vida             morte
. Metáforas do "ensandecer" e do morrer de amor.
. Perífrases: o retrato da mulher ideal, perfeita, divinizada, inacessível:
® "ca tal a fez Nostro Senhor:
 de quantas outras no mundo son
 non lhi fez par";
® "se a non vir, non posso viver" (eufemismo).
. Repetição do verbo "fazer": reforça a ideia da superioridade da dama.
. Gradação na expressão dos sentimentos do trovador: sente saudades ® enlouquece ® morre de amor.


. Classificação

1. Cantiga de amor: composição poética trovadoresca de carácter lírico, cujo emissor é um trovador que exprime os seus sentimentos amorosos em relação a uma dama designada por "mha senhor".
            O poeta elogia as qualidades invulgares da mulher amada a nível físico, moral e social e fala do seu sofrimento (coita de amor).

1.1. Formal:
- cantiga de refrão;
- cantiga de finda;
- cantiga de atafinda.





[1] O vocábulo saudade e a sua evolução semântica

. O vocábulo soidade tem na 1.ª estrofe um prestígio sugestivo que se prolonga em:
- nembrar;
- na lentidão do ritmo
   e traduz o sentimento de melancolia que parece realmente vivido.
. Saudade  -  palavra que se repete obsessivamente ao longo da literatura portuguesa:
soidade  -  traduzida em:  ½coitas de amor
½ cuidado
½ pesar
½ morte (de amor)
                O seu emprego literário é anterior ao de soledad, apesar de ambos os vocábulos derivarem da soletatem latina. Já na Idade Média havia em Portugal Marias da Soidade ou Suidade, enquanto em Espanha só depois do século XVII surgem Marias de la Soledad. O valor significativo entre os dois vocábulos é diferente:
soledad ® saudade ½ valor subjectivo-objectivo
® solidão   ½
soidade (sensibilidade portuguesa)  -  valor subjectivo ® saudade.

Verbos "ter" ou "estar"?


     Este erro (a confusão entre os verbos "ter" e "estar") é muito comum entre a «malta jovem» e (Ó tempos! Ó costumes!) começa a ser cada vez mais frequente no meio jornalístico.

     No caso concreto, o autor da tirada escreveu "Em declarações ao jornal Daily Mail, um dos casais afetados diz que tiveram "toda a vida a poupar (...)» quando, na realidade, deveria ter registado «estiveram».

Causas do despertar da cantiga de amor em Portugal

            A influência provençal foi reconhecida entre nós publicamente desde o meado do século XIII. É conhecida a censura de Afonso X a Pêro da Ponte de não trobar como proençal, mas à maneira do segrel galego Bernal de Bonaval (CV 70); e mais conhecida ainda é a cantiga de D. Dinis, em que ele se propõe imitar a poesia occitânica.
            Crê-se geralmente que a imitação da cultura francesa entre nós data da vinda do conde borgonhês D. Henrique, ou melhor, desde quando começou a reger o Condado Portucalense, em 1094 ou 1095.
            Os cantares provençais penetraram na Península Ibérica devido a várias causas, a saber:

1.ª) A transmissão da coroa da Provença, em 1092, aos condes de Barcelona.

2.ª) A emigração, motivada pelas perseguições das cruzadas contra a heresia dos Albigenses.

3.ª) O recrutamento de gente francesa, no governo do conde D. Henrique, para as necessidades correntes da paz e da guerra. Com os reis seguintes continuou a infiltração francesa, por via do repovoamento de terras.

4.ª) As Cruzadas, que trouxeram ao litoral peninsular gente oriunda de França. Por exemplo, a tomada de Lisboa, em 1147, na qual entraram cruzados flamengos e anglo-normandos, teve grande importância, por serem a Flandres e a Inglaterra focos intensos de civilização em língua francesa. Realizada a conquista, Afonso Henriques repartiu com eles as terras desde Santarém até Lisboa. Guilherme Descornes foi povoar, com outros, a Atouguia; Jourdan estabeleceu-se na Lourinhã, Allardo em Vila Verde. Azambuja, Alenquer, Santarém ficaram também sendo núcleos de população franca.
Com D. Sancho I entramos no período áureo da colonização francesa. Agentes do rei andavam pela Europa, sobretudo pela Flandres, a aliciar colonos. Protegiam-se por meio de forais as colónias existentes e fundavam-se outras em Leziras, Sesimbra, Montalto de Sor, etc.

5.ª) As peregrinações a santuários (Santiago de Compostela – a partir de 829 tornou-se apóstolo protetor das Espanhas contra os árabes, chegando Compostela a rivalizar com Roma –, Tours, Santa Maria de Rocamadour), que reuniam peregrinos quer vindos de França, quer da Península, peregrinos esses que traziam consigo novas ideias, novas formas de vida, a música, poesias e danças.

6.ª) A influência de Afonso X de Castela, avô de D. Dinis, grande criador da poesia castelhana e um dos melhores poetas em galaico-português, onde as cantigas à Virgem se destacam com um lirismo, uma espontaneidade e um espiritualismo bem expressivos.

7.ª) Os casamentos de D. Mafalda, filha do conde de Sabóia, com D. Afonso Henriques; o de D. Teresa, filha de D. Afonso Henriques, em 1180, com o conde Filipe de Flandres, grande protector de trovadores, e o de D. Sancho I com D. Dulce, filha dos condes de Barcelona, que, tal como D. Mafalda, eram princesas de cortes muito ligadas à Provença e contribuíram também para a difusão destes cantares.

8.ª) O regresso a Portugal de D. Afonso III, que esteve treze anos exilado em Bolonha, onde frequentou as cortes e casou e onde conviveu com o gosto de trovar.

9.ª) As saídas de estudantes peninsulares para as grandes universidades além Pirenéus, onde contactaram com novas ideias e saber.

10.ª) D. Dinis, um dos grandes trovadores portugueses, foi educado por um professor francês, Américo d' Ebrard, futuro bispo de Coimbra, e casou com uma princesa de Aragão, corte onde a poesia era muito apreciada.

11.ª) As movimentações dos trovadores que, segundo o costume, andavam na Primavera ("no tempo da frol"), de castelo em castelo, divulgando as suas composições. Além disso, houve também o contacto e convivência com trovadores provençais. O conhecimento pleno, directo, da poesia provençal efectivar-se-ia, para os portugueses, fora do país, em Leão, sobretudo depois de terem saído para aquela corte numerosos fidalgos, descontentes com a política cesarista de Afonso II.

12.ª) A acção dos monges de Cister e Cluny, que deixaram muitas das suas influências na arquitectura e nas letras, antes de Portugal se tornar reino independente.

13.ª) O intercâmbio comercial entre Portugal e a França.

            A influência provençal nas cantigas de amor galego-portuguesas manifesta-se inclusivamente ao nível da linguagem. A missão da cultura francesa foi a de despertar os germes da poesia nacional; e aqui em Portugal esse facto produziu-se com maior intensidade, devido à existência dum rico filão de poesia popular cujo valor e qualidade são inquestionáveis.
            A nossa imitação foi sobretudo uma apropriação de formas. Ainda assim, não há um único verso português traduzido de autores estrangeiros. As semelhanças explicam-se mais por inevitável encontro de ideia e de expressão. Mantivemos, pois, intacto como nunca o nosso génio literário, o nosso temperamento nostálgico, a nossa humildade amorosa, que tão bem se espelha na saudade e no fatalismo das cantigas. E a influência francesa deu-se precisamente entre nós nos pontos e na medida em que lisonjeava esse temperamento.


Situação político-social e cultural da Provença

            A Provença, do latim Província, nome criado pelo imperador Augusto, é uma região do sul da França, um condado que, a partir do século XI, foi o "berço" de uma poesia lírica masculina e que vai fazer despontar o lirismo europeu nos séculos vindouros.
            A Provença também sentiu a força e a crueldade dos Árabes e tentou defender-se. O feudalismo era um meio eficaz contra estes invasores, a que ficavam expostas as pobres populações indefesas.
            Mas a cristandade também estava ameaçada por outros povos, como os Eslavos, Magiares e Dinamarqueses.
            O cavaleiro armado e o castelo transformam-se, assim, em formas ou meios de defesa extremamente importantes, acabando por se constituir uma hierarquia, desde o mais alto suserano ao mais desprezível servo da gleba.
            A Cavalaria surge como uma bênção, guerreira e combativa, que protege a pátria contra os infiéis. Surge, então, uma poesia épica que canta estes heróis.


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