Português: Miguel Torga
Mostrar mensagens com a etiqueta Miguel Torga. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Miguel Torga. Mostrar todas as mensagens

terça-feira, 17 de março de 2020

Análise de "São Leonardo de Galafura"

Assunto

São Leonardo navega vagarosamente ao longo da terra duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino” e já vergado às saudades da terra que vai deixar.


Tema: o telurismo.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Realidade imaginada.

O sujeito poético imagina S. Leonardo «à proa de um navio de penedos» (um barco rabelo), a navegar, sem pressas, num «doce mar de mosto» que o prende à terra, em direção à eternidade», mas já arrependido de deixar o «cais humano» (a terra duriense), «num antecipado desengano» da vida que está para lá do «cais divino».
É de salientar o recurso ao presente do indicativo («ruma», «avança») e à perifrástica («vai sulcando», «a navegar») para sugerir a realização gradual / o lento desenrolar da viagem. Essa sugestão é dada também pelo particípio («ancorado») e pelos advérbios («devagar», «lentamente»).

2.ª parte (2.ª estrofe) – Razões da lentidão e do desengano do santo.

Na eternidade, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes.
Na eternidade, só encontrará «charcos de luz / Envelhecida»; os montes serão todos rasos, estendendo-se os horizontes até se extinguir a cor da vida.
Nesta estrofe, predomina o futuro do indicativo («terá», «serão», «deixarão»), dado que se descreve uma realidade para a qual se caminha.

3.ª parte (3.ª estrofe) – Regresso à imagem descritiva da primeira estrofe.

O santo navega cada vez mais lentamente em direção à eternidade, aproveitando os últimos momentos de contemplação da paisagem duriense para sorver o «cheiro a terra e a rosmaninho», isto é, para que se prolongue a permanência na terra.
Note-se que o sujeito poético imagina o santo a navegar, na primeira estrofe, não num barco celestial, mas num navio de penedos (alusão às serranias transmontanas), contudo, na terceira, já desliza num barco rabelo (embarcação típica do rio Douro que transporta o vinho do Porto).
O poeta volta a usar o presente do indicativo com o mesmo objetivo da primeira estrofe.


Notas

1.ª) S. Leonardo de Galafura é um miradouro que existe no alto da montanha, junto a uma capelinha, em Galafura, freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real. Vista do sopé do monte, dá a imagem de navegar pelo espaço.

2.ª) Os barcos rabelos são barcos à vela, característicos do rio Douro, usados para o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia, onde se situam as principais caves.

3.ª) Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação completa.

4.ª) Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros de pedra; são característicos da paisagem duriense.

5.ª) Este poema, como tantos outros, é o testemunho do amor telúrico de Miguel Torga pela terra duriense, daí o antecipado desengano do santo/Torga, pois ama-a e vai abandoná-la. Este amor telúrico permite compreender também o pseudónimo que Adolfo Correia da Rocha adota: a escolha de Miguel é uma homenagem ao escritor castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que admirava profundamente, e a Miguel de Cervantes (1547-1616), outro escritor espanhol, autor de D. Quixote; Torga é o nome de uma urze transmontana.

6.ª) Como é característico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular: começa com a descrição da viagem vagarosa do santo através do Douro, apresenta a razão dessa lentidão e do desengano, antecipando o que estará «lá» no final do caminho (o futuro) e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em direção à eternidade.

7.ª) Em suma, as razões que justificam a lentidão do santo são as seguintes:
(A) no «cais divino» não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes;
(B) o santo é feliz na terra, onde moram a felicidade, a vida e a luz;
(C) a viagem é lenta para que o santo possa prolongar o prazer de sorver «[…] mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!» (vv. 26-27).


Estado de espírito do sujeito poético
• sem pressa de abandonar o «cais humano», a terra duriense;
• feliz no «cais humano»;
• arrependido de deixar o «cais humano»;
• desengano e desiludido antecipadamente da vida que está para lá do «cais divino»;
• saudoso da terra duriense.


Caráter alegórico do poema

O sujeito poético estabelece um paralelo entre terra e céu, o «cais humano» e o «cais divino», duas metáforas que sobrevalorizam a terra, indício do telurismo de Miguel Torga.
Esse paralelismo atinge foros de heresia, pois o «cais humano» apresenta características e encantos que se sobrepõem ao «cais divino».


A irregularidade formal

O poema é constituído por três estrofes. A primeira é constituída por 11 versos, a segunda por 9 e a terceira por 7.
Este decréscimo de versos de estrofe para estrofe poderá simbolizar a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma viagem que se vai, portanto, aproximando do seu final.
Relativamente à métrica, também esta é irregular, alternando verso longos com curtos, o que poderá sugerir a irregularidade do percurso feito.


O mito de Anteu

Anteu foi um gigante, filho de Neptuno (Poseidon) e da Terra (Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os viajantes a lutar. Depois de os ter vencido e morto, enfeitava o templo do pai com os despojos. Enquanto estivesse em contacto com a sua mãe, geia, isto é, a Terra, Anteu era invulnerável. Um dia enfrentou Hércules e nessa luta recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo desta maneira eliminá-lo.
Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera energias físicas ou psicológicas.
Fazendo a apologia deste mito, Miguel Torga valoriza sobretudo a terra-mãe. Tal como Anteu, o poeta é atacado por forças que o abatem, mas, à semelhança da personagem mítica, retempera as suas energias na sua terra natal, S. Martinho de Anta (cf. Diário XI, 20 de setembro de 1968, e XV, 11 de setembro de 1989).


Recursos expressivos

1. Nível fónico

. Estrofes: três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos).
. Métrica irregular: há versos de 2 a 11 sílabas.
. Rima      - versos soltos em todas as estrofes;
- emparelhada e interpolada (primeira e segunda estrofes), emparelhada e cruzada (última estrofe);
- consoante (“mosto”/”posto”);
- pobre (“mosto”/”posto”) e rica (“comando”/”sulcando”);
- grave (“mosto”/”posto”).
Todos estes fatores se conjugam para dar uma ideia de irregularidade do espaço observado.
. Ritmo repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia com o andamento moderado da viagem de São Leonardo.
. Transporte: vv. 3-4, 5-6, 10-11, etc.
. Sons dominantes:

. Aliterações:

- do fonema /p/: sugere a viagem;
- do fonema /m/: sugere o apelo à terra duriense.


2. Nível morfossintático

. Futuro do indicativo (2.ª parte): exprime a referência à vida eterna para onde o Santo lentamente se dirige.
. O número de adjetivos é reduzido e os poucos existentes ligam-se a substantivos metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais humano”, “rasos os montes”.
. Predomínio da coordenação: desenrolar da viagem de S. Leonardo, lenta e sequente.
. Orações:
- oração conclusiva: estabelece uma relação de consequência entre o “desengano antecipado” do Santo e a sua regalada demora ao longo do Douro;
- oração subordinada relativa: “que gasta no caminho”.

3. Nível semântico

. A construção alegórica do poema do poema orienta-se no sentido de enaltecer os encantos da terra e paisagem duriense, de traduzir o apego à terra.
. Metáforas:

. Imagens:
- as metáforas da 1.ª estrofe apresentam-nos a imagem do Santo como o capitão dum “navio de penedos”, olhando saudosamente para trás, ao deixar a terra duriense em direção à vida eterna, e, simultaneamente, revelam a atração telúrica de Torga pela terra transmontana, o fulcro da sua inspiração poética;
- a imagem dos três últimos versos da segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a cor dos horizontes.
. A expressividade dos advérbios “devagar” e “lentamente” e dos três últimos versos da terceira estrofe: a morosidade da viagem = o apego de S. Leonardo à terra duriense.
  Torga imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil Vicente, mas “num navio de penedos” (alusão às serranias transmontanas) e, para melhor se identificar com a terra duriense, na última estrofe, o Santo já desliza num “barco rabelo” (embarcação típica do rio Douro, que servia para o transporte do vinho do Porto).
. Hipálage: “Lá não terá socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” (o deslumbramento com a paisagem é do Santo e não dos olhos).
. Sinestesia: “é um sorvo [paladar] a mais de cheiro” [olfato].

Durante trinta anos, Torga tentou o “retrato poético” do Santo que sempre se lhe furtava. Mas nesse dia o “instantâneo” surgiu. Para a figura do Santo está transporta a apetência telúrica de Torga, pois, mesmo o Santo, a caminho do Paraíso, como um capitão “à proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto” (a paisagem duriense), não tem pressa “de chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. E isto porque sabe que lá os seus olhos não se deslumbrarão com os socalcos e vinhedos do Douro, com os montes, com tudo o que deixa, e tudo o que vai encontrar “São charcos de luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no rabelo é, pois, lenta para poder prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da terra e do rosmaninho.


domingo, 25 de dezembro de 2011

Natal

Devia ser neve humana
A que caía no mundo
Nessa noite de amargura
Que se foi fazendo doce...
Um frio que nos pedia
Calor irmão, nem que fosse
De bichos de estrebaria.

                                 Miguel Torga, Diário IV (1948)

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Miguel Torga (Diário)

Miguel Torga - Diário XVI

Chaves, 30 de Agosto de 1990 - É escusado teimar. A ser banal, a dizer banalidades e a pensar banalidades é que o português é português.

domingo, 3 de julho de 2011

"Sísifo", de Miguel Torga

          O ano lectivo terminou há muito, a primeira fase dos exames nacionais também.
          Como mensagem para um novo ciclo que se aproxima para milhares de alunos, que já vislumbram a universidade no horizonte, aqui fica o poema "Sísifo", da autoria de Adolfo Correia da Rocha, mais conhecido por Miguel Torga:

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.


E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar
E vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

Miguel Torga, Diário XIII
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...