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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Análise da Cena XIV do Ato II de Frei Luís de Sousa

Assunto

O Romeiro, na função de simples mensageiro portador de um recado, é admitido à presença de Frei Jorge e de D. Madalena, logo por ele identificada (II, 13) como «a mesma» a quem desejava falar. Esta fala do Romeiro pode ter dois sentidos: aquela que dizeis ser ou aquela que eu conheço muito bem. Obviamente, é o primeiro sentido que D. Madalena e Frei Jorge terão entendido.


Comentário global da cena

Seria esta personagem uma presença pacífica, se não fossem certas particularidades únicas e excecionais, reveladas pelas palavras e pelas atitudes do Romeiro, que o dão a conhecer como autêntica personagem e não apenas como um mensageiro qualquer. Começa por se afirmar como um português que vem dos Santos Lugares, após 20 anos aí passados. Mas logo as suas palavras e atitudes patenteiam uma inquietante luta verbal, uma presença perturbadora: "Queria rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali se obrou... e as paixões mundanas e as lembranças dos que se chamavam meus segundo a carne travavam-me do coração e do espírito, que os não deixavam estar com Deus, nem aquela terra que é toda sua".
Os sofrimentos do Romeiro, recalcados durante 20 anos, eram provocados pelas lembranças da esposa. Pois quem seriam os que se "chamavam meus segundo a carne" senão a própria esposa? Não declara ele a Frei Jorge que "não tem filhos"? E logo acrescenta: "A minha família... Já não tenho família". A amargura perante a triste realidade que veio encontrar está toda contida naqueles dois advérbios.
D. Madalena, compassiva, lembra-lhe que "sempre há parentes, amigos...", ao que o Romeiro rapidamente retorque: "Parentes!... Os mais chegados, os que eu me importava achar... contaram com a minha morte, fizeram a sua felicidade com ela: hão de jurar que me não conhecem". E a verdade é que D. Madalena, frente ao primeiro marido, dialogando com ele, não o reconhece, nem sequer pela voz. Se o que lhe importava achar eram os parentes mais chegados e estes estavam reduzidos à esposa, então a censura, na maneira de ver e sentir do Romeiro, ajustava-se perfeitamente à realidade: D. Madalena contara com a morte de D. João, fizera a sua felicidade com ela, isto é, casara-se segunda vez por se julgar viúva. E desta vez com o homem que sempre amou, desde que o viu pela primeira vez. Conclusão lógica: havia de jurar que não o conhecia.
D. Madalena, porém, parece anestesiada: nada vê, nada sente, nada compreende. E a cegueira é tão profunda que nem dá conta de se condenar pelas suas próprias palavras: "Haverá tão má gente... e tão vil, que tal faça?" A resposta do Romeiro é rápida e cortante: "Necessidade pode muito. Deus lho perdoará, se puder!". É mais um golpe certeiro no mais profundo da alma de D. Madalena, que, no entanto, o julga apenas resultado de "juízos temerários".
Oferece-lhe, então, D. Madalena "amparo e agasalho", promete-lhe proteção, sua e do marido. O Romeiro, a estas palavras, ofende-se, diante de tantos oferecimentos, sublinhados com a palavra marido. Marido, ali, em sua própria casa, para a sua própria esposa, era ele; não Manuel de Sousa, o intruso. D. Madalena pede-lhe perdão, se o ofendeu. A resposta do Romeiro fere novamente como punhal afiado: "Não há ofensa verdadeira senão as que se fazem a Deus. Pedi-lhe vós perdão a Ele, que não vos faltará de quê". Torna D. Madalena: "Não, irmão, não decerto. E Ele terá compaixão de mim", ao que o Romeiro responde: "Terá...". Ora, este futuro dubitativo significa que, no entender do Romeiro, Deus não perdoará à esposa que o abandonou e traiu. E isto dito frontalmente, cara a cara. Assim o terão compreendido Frei Jorge, que, diz a didascália, «corta a conversação».
De facto, a conversação, o diálogo, já tinha ido muito longe entre as duas personagens. Mas nem deste modo D. Madalena compreende, não obstante ficar malferida, neste começo nada prometedor. Frei Jorge corta a conversação e ordena ao Romeiro que dê o recado àquela dama. D. Madalena, procurando ganhar tempo, intervém: "Deixai, deixai, não importa, eu folgo de vos ouvir: dir-me-eis o vosso recado quando quiserdes... logo, amanhã...". Assim seria, com grande alívio para D. Madalena, se o Romeiro não estivesse preso por um juramento solene: "Hoje há de ser. Há três dias que não durmo nem descanso, nem pousei esta cabeça, nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que morresse depois; porque jurei... faz hoje um ano... quando me libertaram, dei juramento sobre a pedra do Santo Sepulcro de Cristo...".
Das palavras do Romeiro se conclui que o dia da entrega do recado era importante para o suposto companheiro de cativeiro: "Hoje há de ser"; que dar o recado nesse dia era uma questão de vida e de morte: "... para vos dar meu recado... e morrer depois... ainda que morresse depois... ". Para D. Madalena, este era o dia fatal, indesejado e temido, pela sobrecarga, pela acumulação de coincidências desastrosas (II, 10). Para quem mandou o Romeiro (e singularmente também para o próprio Romeiro) este dia também o dia fatal, em que se cumpriam 21 anos sobre o desastre de Alcácer Quibir: 20 anos de cativeiro, mais um ano de viagem, com a agravante de os 3 últimos dias serem de marchas forçadas, para o mensageiro chegar à presença de D. Madalena no dia exato, aquela sexta-feira, o dia fatal: "Hoje há de ser".
D. Madalena, «aterrada», finalmente pressente, sabe quase de certeza, que o autor do recado não pode ser senão D. João de Portugal, ainda não libertado, mas vivo. E indaga:
" E quem vos mandou, homem?
– Como se chama?".
O Romeiro, apesar de vir da parte de um "honrado homem... a quem unicamente devi a liberdade...", companheiro de todas as horas durante 20 anos, responde estranha e enigmaticamente que nada mais sabe: "O seu nome, nem o da sua gente nunca o disse a ninguém no cativeiro". Só restava ao Romeiro desempenhar-se da missão de que o tinham incumbido tão solenemente, por meio de um juramento: transmitir a D. Madalena, pelas próprias palavras de quem o tinha enviado, a terrível mensagem: ""Aqui estão as suas palavras: Ide a D. Madalena de Vilhena, e dizei-lhe que um homem que muito bem lhe quis... aqui está vivo... por seu mal... e daqui não pôde sair nem mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Ora neste recado simples e curto, de palavras medidas, mas densas de significado, diretas, claras e irrefutáveis, há vários aspetos dignos de nota:
1.º) O recado era, sem dúvida, para D. Madalena. Era ela a destinatária. Por isso é indicada pelo nome completo: "Ide a D. Madalena de Vilhena...";
2.º) O destinador da mensagem era "um homem que muito bem lhe quis...", isto é, que a amou. Não poderia ser outro senão D. João de Portugal, o primeiro marido;
3.º) Ao contrário do que D. Madalena supôs, não estava morto: "... aqui está vivo...";
4.º) Ali sofria as dores físicas e morais do cativeiro, da forçada ausência e separação da esposa: "... por seu mal...";
5.º) "Dali nunca pôde sair nem mandar-lhe novas suas", porque, se lhe fosse possível, já teria regressado a casa, ou, pelo menos, teria enviado notícias;
6.º) por fim, D. Madalena empregara, de facto, todos os meios e fizera todos os esforços para o encontrar no Norte de África, onde ele já não estava: "... de há vinte anos que o trouxeram cativo".
Não admira, portanto, a reação de D. Madalena às palavras do Romeiro: «espavorida», grita, com atroz sofrimento, vindo do fundo da alma («Meu Deus, meu Deus! Que se não abre a terra debaixo de meus pés?... Que não caem estas paredes, que me não sepultam já aqui?..."). O pavor de D. Madalena vai crescendo à medida que o Romeiro vai confirmando a identidade de quem o enviou, respondendo aos sucessivos pedidos dela de confirmação, crescendo esse que é visível nas didascálias (“na maior ansiedade”, “espavorida”), bem como na sua linguagem: frases curtas (“Cativo?”, “Português?”); frases inacabadas (“esse homem era…”); exclamações e reticências, interjeições e locuções interjetivas (“Jesus!”, “Meu Deus, meu Deus!”)
Entretanto, nas palavras do Romeiro, existem outros elementos igualmente inquietantes e que formam, numa autêntica e progressiva identificação, a imagem no espelho: "As suas palavras trago-as escritas no coração com as lágrimas de sangue que lhe vi chorar, que muitas vezes me caíram nestas mãos, que me correram por estas faces. Ninguém o consolava senão eu... e Deus".
É verosímil que o Romeiro tenha visto muitas vezes o companheiro de infortúnio chorar "lágrimas de sangue"; mas já é mais estranho que as lágrimas do outro cativo lhe tenham caído nas mãos, e muito mais estranho ainda que as lágrimas vertidas por um tenham corrido pelas faces do outro. Não estará o Romeiro, com estas ambíguas palavras e numa espécie de ilusionismo, a querer significar outra coisa, isto é, que ele e o outro eram, afinal, uma só personagem?
No diálogo que se segue com Frei Jorge, as duas primeiras respostas do Romeiro são constituídas por frases da linguagem corrente e familiar e costumam empregar-se como uma espécie de superlativo expressivo. E, no entanto, surgem aqui carregadas de preocupante segundo sentido, sublinhado não só pela prontidão e pela brevidade, mas ainda mais pelo que, em face das circunstâncias, dizem sem dizer, e pelo que sugerem ou deixam adivinhar. De facto, ao olhar para o retrato de D. João de Portugal, o Romeiro não estava só a examinar ou a comparar parecenças; com efeito, o Romeiro estava, na realidade, a ver-se ao espelho.
Que mais seria necessário para a identificação do Romeiro com D. João de Portugal?
No entanto, as reações de Frei Jorge (cena 15) e de D. Madalena não são semelhantes.
D. Madalena não conclui pela identificação da personagem aparente (o romeiro-mensageiro) com a personagem oculta ou real (o próprio marido, ali presente diante dela, embora escondido debaixo daqueles trajes, e mudado na enganosa aparência de um velho de barbas e de cabelos brancos, na anódina incumbência de trazer um recado de outro), pois sai precipitadamente da sala, aterrada, ao tomar consciência da sua situação de pecadora e da ilegitimidade da sua filha. Demasiado perturbado para com lucidez chegar a essa conclusão, apenas sente, nas palavras da terrível mensagem do Romeiro, a crueldade da reviravolta do Destino: D. João de Portugal está vivo. Se assim é, e não há possibilidade de dúvidas a este respeito, todos os sonhos de felicidade neste mundo desabam para D. Madalena, todos os laços afetivos, que a prendem a Manuel de Sousa e à filha, se destroem irremediavelmente. É a ruína da «sua» família, a desolação e a infelicidade para cada um dos seus membros. Por isso D. Madalena "foge espavorida", numa última tentativa de se afastar de tão implacáveis desgraças trazidas pelo Destino.

NOTA:
D. Madalena, geralmente tão sensível à previsão da desgraça, não é agora capaz de estabelecer qualquer relação entre o Romeiro e a situação dramática que sempre receou. De facto, o seu conflito com D. João, embora invisível, está sempre presente (I, 1, 2, 3, 7 e 8; II, 1 e 10) e, nesta cena, é intrigante a quase anestesia moral, em presença do Romeiro, de D. Madalena que, não obstante todos os elementos de identificação por ele fornecidos, de forma direta, embora velada, não reconhece o próprio marido, nem sequer pela voz.


Estrutura interna da cena

1.ª parte (do início até “… logo, amanhã…”): o Romeiro revela o local onde viveu durante os últimos vinte anos, os padecimentos que sofreu, a perda da família e a certeza de ter um só amigo.

2.ª parte (de “Hoje há de ser…” até ao fim): a noção de que D. João está vivo e o estado emocional de D. Madalena vão crescendo até


Caracterização de D. João de Portugal
- é português;
- vem do Santo Sepulcro;
- viveu nos Lugares Santos durante 20 anos;
- modelo de virtudes do cavaleiro cristão:
. no amor pelo Rei e pela Pátria, de que tem o nome;
. no combate contra os inimigos da Fé, pela qual expõe a vida;
. nos sofrimentos do cativeiro, onde está 20 anos:
* muita fome;
* os maus tratos;
* as privações;
* o distanciamento;
* a falta de notícias;
* o amor e a saudade da esposa (este amor e esta saudade de D. Madalena – as “paixões mundanas” e as lembranças dos que se chamavam seus “segundo a carne” – sobrepuseram-se sempre à sua fé, isto é, impediram-no de “rezar e meditar nos mistérios da Sagrada Paixão”);
- não tem filhos, nem família, nem parentes;
- os mais chegados consideram-no morto;
- apenas tem um amigo (Telmo);
- irritado e ofendido quando D. Madalena lhe oferece o seu "amparo e agasalho" e do marido;
- cansado, não se poupou a esforços e muito padeceu para ali chegar naquele dia;
- veio para cumprir um juramento feito a alguém: "... antes de um ano cumprido, estaria diante de vós e vos diria da parte de quem me mandou...";
- sofreu imenso: chorou lágrimas de sangue.


Caracterização de D. Madalena

O estado de espírito de D. Madalena vai evoluindo ao longo da cena e é marcado por diferentes sentimentos e emoções:
▪ boa vontade, simpatia e curiosidade iniciais quando recebe o Romeiro;
▪ admiração e estranheza pelo facto de o Romeiro dizer que já não tem família;
▪ ansiedade (e medo) de saber a identidade do homem que enviou o Romeiro;
▪ a ansiedade vai crescendo à medida que o Romeiro vai desfiando revelações que a fazem ter quase a certeza de que D. João está vivo e foi ele quem enviou aquele;
▪ o sofrimento e o terror atingem o ponto culminante quando o Romeiro, sem hesitar, identifica o retrato de D. João;
▪ terror e pavor, que a fazem gritar e fugir, quando tem a certeza de que D. João está vivo.
Note-se, mais uma vez, como o seu discurso reflete o aumento da perturbação de D. Madalena:
▪ frases interrogativas curtas (“Cativo?”);
▪ frases suspensas, inacabadas (“Sim, mas…”);
▪ repetições lexicais (“Minha filha, minha filha, minha filha!...”);
▪ acelerações rítmicas (“Estou… estás… perdidas, desonradas… infames!”).

NOTAS:

1. O Romeiro dá-se a conhecer gradualmente, por fases que se podem delimitar segundo parâmetros: local de onde vem, identidade, família, cativeiro e libertação, identidade do que o enviou, gesto de reconhecimento (cena 15).

2. O diálogo assenta num crescendo emocional gradual, que tem por finalidade contribuir para um ambiente altamente dramático, para adiar o clímax e fazer sofrer D. Madalena.

3. O Romeiro desdobra-se num eu e num ele (desdobramento de personalidade); D. Madalena recusa até ao máximo possível a verdade, pretendendo iludir-se.

4. Os espectadores/leitores depressa compreendem que o Romeiro é D. João de Portugal; D. Madalena só no final da cena tem a sua anagnórise (reconhecimento de que está vivo D. João).

5. A perturbação de D. Madalena é acompanhada da alteração da sua linguagem: frases curtas, inacabadas, repetições, ritmo acelerado.

6. D. Madalena grita pela filha e parece esquecer Manuel de Sousa. É que a filha é ilegítima e Manuel de Sousa já não existe como marido. De facto, D. Madalena grita que ela e a filha estão perdidas, pois o facto de D. João, o primeiro marido, estar vivo a reduz à condição de mulher adúltera e bígama e torna a filha ilegítima.

7. O facto de o Romeiro não revelar de imediato a sua identidade permite-lhe ter um discurso ambíguo, através do qual critica D. Madalena por ter construído uma nova vida e constituído uma nova família a partir da sua suposta morte. Ironicamente, é D. Madalena quem, mesmo sem o saber, se critica a si mesma: “Haverá tão má gente… e tão vil, que tal faça?”.


Tom dramático da cena

Esta cena é profundamente dramática. Este dramatismo é cuidadosamente construído, sobretudo a partir das falas do Romeiro:
* vai semeando pistas sobre a sua identidade, mas com um discurso ambíguo;
* a atitude orgulhosa e ofendida do Romeiro quando D. Madalena lhe oferece proteção, juntamente com o seu marido;
* a acusação velada do Romeiro a D. Madalena, quando lhe diz que ela terá de pedir perdão a Deus pelas suas ofensas;
* a descrição dos sacrifícios feitos pelo Romeiro para trazer o recado a D. Madalena;
* a informação de que foi cativo em Jerusalém e que é daí que traz o recado;
* o adiar da transmissão do recado;
* as perguntas feitas por uma Madalena ansiosa e cada vez mais apavorada na tentativa de descobrir a identidade do homem que enviou o recado;
* o momento em que o Romeiro identifica D. João no retrato.


Valor do deítico «hoje»

O advérbio de tempo «hoje» refere-se ao dia 4 de agosto de 1599. Ao estar associado ao complexo verbal com valor de obrigatoriedade “há de ser”, indica a determinação do Romeiro entregar o recado que traz naquele preciso dia, pois corresponde a um juramento feito um ano antes.
Esta determinação é reforçada pelo uso do quantificador numeral 3 (“Há três dias que não durmo, nem descanso.”). Ora, este número simboliza a perfeição e as três fases da existência, logo significa que aquele é o dia em que o recado terá forçosamente de ser entregue ao seu destinatário.


Análise da Cena XII do Ato II de Frei Luís de Sousa

Assunto

Se, no final da cena anterior, D. Madalena manifesta toda a sua boa vontade para receber o Romeiro, nesta Frei Jorge expressa algum cuidado, pois estava-se numa época em que, de facto, havia muitos peregrinos, mas também falsos romeiros que, à custa de enganos, queriam beneficiar da caridade da aristocracia.
Por outro lado, a expressão “E nestes tempos revoltos” conduz-nos ao tempo histórico da peça. Para compreender o seu significado, transcrevemos um excerto da página 135 do manual Caminhos 11, da Areal Editores e da autoria de Elsa Freitas et alii: «Na verdade, os tempos são revoltos, pois Portugal, com a morte do rei D. Sebastião em Alcácer Quibir, estava sujeito ao “domínio filipino”. Perante a perda da independência e da soberania, o país, empobrecido e desalentado, vivia um clima de contestação, popularmente alicerçado na crença sebastianista, a qual preconizava o regresso do rei e, com ele, a nova glória do reino.».

sábado, 4 de janeiro de 2020

Análise da Cena XII do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto: o incêndio do palácio.


Consequências do ato de Manuel de Sousa
-» partida da família para o palácio de D. João;
-» aumento do terror e da angústia de D. Madalena;
-» criação das condições para o desenlace trágico.

De facto, o incêndio do palácio de Manuel de Sousa:

a) é um acontecimento imprevisto: só na última cena se consuma, pois Manuel de Sousa não revelara a ninguém os seus intentos;

b) é um acontecimento significativo e dinâmico: implica o antagonismo entre o patriotismo de Manuel de Sousa e a “tirania” dos governadores, em nome de um rei estrangeiro; entre o pundonor do cidadão, senhor e dono de sua casa, e a “afronta” de estes hóspedes indesejados imporem a sua presença, sem ao menos uma consulta, ou uma atenção com o proprietário;

c) altera gravemente a situação das personagens: D. Madalena, esposa ilegítima, adúltera e bígama, volta novamente para o palácio onde tinha sido (não o era ainda?) esposa legítima de D. João de Portugal (como, aliás, ela temia – cena 8); por seu lado, Manuel de Sousa vai para o palácio de D. João como um intruso e usurpador de um lugar que não podia ocupar legitimamente;

d) precipita o desfecho pelo retorno de D. Madalena ao passado, à casa fatal, onde irão suceder os acontecimentos trágicos mais importantes e significativos, ou seja, as desgraças profetizadas por Telmo, vividas na consciência atormentada de D. Madalena, indiciadas pela perda do retrato de Manuel de Sousa, anúncio fatal da “perda” da personagem retratada, e ainda o incêndio do palácio, destruidor da “casa”, no duplo sentido de edifício e de família.


Simbologia do incêndio
▪ O incêndio e a destruição do retrato representam a antecipação da morte de Manuel de Sousa.
▪ Por outro lado, o mesmo fogo que consome o quadro vai permitir igualmente a purificação da personagem. De facto, após a morte de Manuel de Sousa para a vida mundana, dá-se a sua ressurreição espiritual como Frei Luís de Sousa, um dos grandes prosadores portugueses do século XVII.


Caracterização das personagens

Manuel de Sousa Coutinho:
- guiado pela razão, toma as suas decisões à luz de um conjunto de valores universais: a liberdade, a moral, a honra, o patriotismo (ex.: a resposta dada às tentativas dos governadores, incendiando o seu palácio);
- generoso e nobre de alma;
- bons instintos morais, servidos por uma fé cristão vivida;
- sentido de serviço para com a comunidade a que pertence, no exemplo de resistência ao rei estrangeiro;
- irónico (“Ilumino a minha casa…”; “Suas Excelências podem vir, quando quiserem.”): exprime o desrespeito que sente pelos governadores [a ironia e a metáfora presentes na primeira expressão contêm um duplo sentido: remetem para a luminosidade que receberá os governadores, proveniente do incêndio do palácio; por outro lado, a expressão traduz o patriotismo de Manuel de Sousa, que receberá os governadores com fogo e destruição. Segundo o manual Entre nós e as palavras, «D. Manuel afirma que aceita a vinda dos governadores; mas o ato de destruir demonstra a sua oposição. A ironia verbaliza a revolta da personagem e contrasta o que os governadores esperavam que D. Manuel fizesse (submeter-se) e o que ele faz (insurge-se).”];
- sereno na decisão que toma: note-se, por exemplo, no eufemismo repleto de ironia que usa para se referir ao incêndio que está a atear à sua própria casa (“Ilumino a minha casa…”);
- Manuel de Sousa é um herói romântico, porque se deixa levar pelas suas paixões de forma violenta, impulsiva e até precipitada na defesa dos conceitos de honra e patriotismo.

D. Madalena:
- aterrorizada com o ato do marido;
- dominada pelo Destino e pelo fatalismo e impotente contra ambos: a tentativa de salvar o retrato do marido, parecendo prever o que daí adviria;
- ao ver o palácio a arder, a sua única preocupação consiste em salvar o retrato, parecendo adivinhar na sua destruição algo muito grave. De facto, para ela a destruição do retrato pelo fogo prenuncia a destruição do marido e da própria família;
- o cerco vai-se fechando à sua volta e os seus contínuos medos e terrores começam a ser justificados: D. João de Portugal não regressou, mas D. Madalena vai ao encontro do passado.

NOTAS:

1.ª) Estas derradeiras cenas do primeiro ato são bastante rápidas. Aliás, desde a chegada de Manuel de Sousa, o ritmo, até então algo lento, torna-se rápido e, depois, muito rápido, o que está em sintonia com o final espetacular do ato e com a peripécia: a intriga adensa-se e afunila. Esta aceleração do ritmo da ação é traduzida pela pontuação usada: frases muito pontuadas, pausadas por vírgulas, pontos e vírgulas e reticências, mostrando o precipitar das ações; os pontos de exclamação marcam o sentimentalismo das cenas.

2.ª) Manuel de Sousa afirma conceitos e características do Barroco: nada perdura, tudo muda, a vida é perpétua mudança, tudo é aparência e sonho.


Discurso das personagens

Nesta cena, há um contraste evidente entre o discurso de D. Madalena e do de Manuel de Sousa.
Assim, ela mostra-se emocionalmente descontrolada, aterrorizada, e esse estado de espírito é visível no recurso a frases curtas, interrogativas e exclamativas, nas invocações a Deus e no uso da interjeição «ai».
Por sua vez, o marido mostra-se tranquilo, pois está convicto da decisão que tomou. Quando se refere aos governadores, é irónico e sarcástico.


Elementos trágicos das cenas

Hybris de Manuel de Sousa

A hybris de Manuel de Sousa manifesta-se de duas maneiras:

1.ª) Anteriormente ao início da ação: o amor-paixão por D. Madalena é, para ele, legítimo, porque a julga «viúva». Todos os indícios, todos os testemunhos apontavam para a certeza da morte de D. João, ao fim dos 7 anos já passados desde o desastre de Alcácer Quibir. Na sua boa fé, julga não haver qualquer impedimento para o matrimónio. No entanto, inconscientemente:
a) colabora na mentira;
b) profana o sacramento do matrimónio;
c) comete adultério;
d) passa a viver em bigamia;
e) usurpa o lugar que a outro pertence, de direito.

2.ª) Dentro da ação: rebeldia para com as autoridades de Lisboa:
. Miguel de Moura, «um vilão ruim»;
. o conde de Sabugal e o conde de Santa Cruz «que deviam olhar por quem são, e que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro!»;
. o arcebispo é «o que os outros querem que ele seja», isto é, uma personagem sem vontade e sem caráter, muito acomodatícia, facilmente manobrável.
É, portanto, pelos mais nobres ideais que Manuel de Sousa recusa a hospitalidade aos governadores:
-» patriotismo que não tolera essa «afronta»;
-» resistência ao rei estrangeiro nas pessoas dos seus representantes;
-» lição aos fidalgos degenerados, e a «este escravo povo que os sofre, como não tiveram tiranos há muito tempo nesta terra» (I, 7).
Revela, assim, um sentido heroico da honra, na ética feudal, paralelo à virtude romana (virtus) e à excelência grega (aretê).
Por isso:
. recusa receber, no seu palácio de Almada, os governantes de Lisboa;
. incendeia o palácio;
. desafia as autoridades e o próprio Destino (I, 11);
. entra em conflito aberto e voluntário com as autoridades (I, 8);
. aceita o risco calculado, até às últimas consequências: renúncia e perda de bens, generosa entrega da própria vida (I, 11);
. recusa o perdão dos governadores, «se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso» (II, 1);
. sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele «homizio», como diz Maria, naquela «quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo» (II, 1).

Manuel de Sousa faz ainda sucessivos desafios ao Destino. De facto, quando afirma «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos? Seja.» (I, 11):
. evoca uma fatalidade que parece existir sobre a sua estirpe;
. se o pai morreu desastrosamente (à letra, desastre é a maléfica influência de poderes ocultos e cruéis, manifestados através dos astros, sobre os destinos humanos), também lhe poderá acontecer algo de terrível, ao incendiar o próprio palácio por suas mãos. As figuras paralelas do pai e do filho como que se sobrepõem, unidas em comum desgraça. Com efeito, Lopo de Sousa Coutinho é atravessado pela própria espada: quem com ferros mata… Manuel de Sousa, o filho, tem a intuição profética de que as «chamas ateadas por suas mãos» o poderão destruir, e com ele todos aqueles que o amam e a quem ama, D. Madalena e Maria: quem brinca com o fogo…
  De resto, não serão essas «chamas ateadas por suas mãos», simbolicamente, as chamas do amor adúltero (descontada embora a sua boa fé) a uma mulher casada com outro, que o irão queimar e destruir? Cupido, além de fatal, também é, por vezes, cruel.

Presságios / indícios:

1.º) O incêndio, que destrói o palácio onde as personagens viviam numa certa acalmia e precipita o desenlace fatal:
* pode ser o prenúncio de morte para o mundo de Manuel;
* pode significar que o homem é vítima do seu fogo, da sua paixão, que o conduz inevitavelmente à destruição;
* pode ainda significar que é a ação do Homem que cria o destino, determina o seu futuro;
* pode, igualmente, apontar para um possível renascer das cinzas de Manuel de Sousa (com a tomada do hábito).

2.º) A destruição do retrato de Manuel de Sousa, queimado também pelo fogo, e a tentativa infrutífera de D. Madalena o salvar simbolizam a destruição que também cairá sobre a família brevemente e a impotência das personagens para travarem o Destino, bem como a morte psicológica da personagem retratada.

Peripécia:
-» o incêndio do palácio;
-» a mudança para o palácio de D. João de Portugal.

▪ O páthos de D. Madalena vai-se intensificando progressivamente (clímax), até ao incêndio do palácio (acmê, o ponto culminante) e perda do retrato.

▪ O caráter trágico desta cena e de todo o final do ato é ainda evidenciado:
a) pelo apelo insistente à fuga;
b) pelas informações das didascálias:
- o deflagrar das chamas;
- os gritos;
- o rebate dos sinos;
- o cair do pano (pode simbolizar a queda que conduzirá à desagregação da família).


Marcas do drama romântico:
. o fundo histórico: a presença dos governadores, o incêndio do palácio por Manuel de Sousa;
. os valores representados por Manuel de Sousa: a honra, o patriotismo representativo da identidade nacional, a oposição à tirania, etc.;
. o culto dos sentimentos fortes: os gritos e os movimentos agitados e precipitados.

"Waiting for her", A-ha


1990

Análise da Cena XI do Ato I de Frei Luís de Sousa

Retrato de Manuel de Sousa
Este monólogo de Manuel de Sousa exemplifica a sua determinação, coragem e patriotismo.
De facto, “como homem de honra e coração”, o seu foco está no afrontar os governadores: se for caso disso, está disposto a perder os seus haveres e até a sacrificar a própria vida, que considera efémera (“vida miserável que um sopro pode apagar em menos tempo ainda!”), para se opor à tirania.
Por outro lado, a cena enfatiza os valores que Manuel de Sousa representa e que já conhecemos: a honra, o amor à pátria e à liberdade, o despojamento dos bens materiais.


Função da cena: só nesta cena se compreende cabalmente o plano de Manuel de Sousa e, por conseguinte, a necessidade de abandonar a sua casa.


Presságio
A evocação por Manuel de Sousa da morte desastrosa do pai (caiu sobre a própria espada) associa esta morte a uma morte provável, no meio das “chamas ateadas por suas mãos”. É mais uma prolepse da desgraça que irá suceder. Por outro lado, esta passagem chama a atenção para a ideia de que é o homem que constrói o seu destino e de que todas as ações acarretam consequências.

Análise da Cena X do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto: saída precipitada das personagens da casa
a) Jorge e Telmo acompanham as senhoras;
b) Manuel de Sousa fica sozinho em cena e seguirá depois.

Análise da Cena IX do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto:
a) Telmo traz a notícia da súbita chegada dos governadores de Lisboa (à exceção do arcebispo, que ficou hospedado n convento de Almada);
b) Manuel de Sousa sente-se enganado por eles, mas não o apanharam desprevenido.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Vida de Manuel de Sousa Coutinho

Antes de ser frade, chamava-se Manuel de Sousa Coutinho, nascido em Santarém cerca de 1555. Cavaleiro da Ordem Militar de Malta, Manuel de Sousa foi aprisionado por piratas e esteve algum tempo cativo em Argel (1576-77?), onde teria conhecido outro cativo ilustre, Cervantes. Por volta de 1584-86, de regresso a Portugal depois de dois anos passados em Valência, casou com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, desaparecido com D. Sebastião em Alcácer Quibir. Em 1599, foi nomeado capitão-mor de Almada. Em 1600, lançou fogo a uma das suas casas, para impedir que ali se hospedassem os governadores do Reino em nome do rei Filipe de Espanha, fugidos da peste que grassava em Lisboa. A causa do incêndio assenta em razões pessoais e não em hostilidade ao rei castelhano, de quem até recebera, em 1592, uma recompensa de 200$000.
Em 1613, quando já lhes falecera a única filha, Manuel e D. Madalena seguiram o exemplo recente dos Condes de Vimioso, professando ambos, ele no convento de S. Domingos de Benfica e ela no convento, dominicano também, do Sacramento. Sobre esta sua decisão de professar, entre várias opiniões que corriam, o primeiro biógrafo de Frei Luís de Sousa, Frei António da Encarnação, elegeu a seguinte e pouco verosímil versão: um peregrino trouxera a nova inesperada de que D. João de Portugal, desaparecido trinta e cinco anos atrás, vivia ainda na Terra Santa; assim, a vida em comum de Manuel e D. Madalena tornara-se impossível, pois este segundo casamento era nulo e insustentável. Foi esta versão que constituiu o ponto de partida do Frei Luís de Sousa.
No convento, levou uma vida austera e dedicou-se à escrita, tendo desempenhado também a função de enfermeiro – ele que fora guarda-mor da Saúde de Lisboa. Da sua pena saiu a obra Vida de Frei Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga. Ainda se dedicou à ordenação e redação da História de S. Domingos particular do Reino e Conquistas de Portugal, um conjunto de monografias sobre os conventos dominicanos do país. Finalmente, escreveu por incumbência de Filipe III uns Anais de D. João III, publicados por Alexandre Herculano em 1844. Consta que terá escrito ainda outras obras, que se perderam.
Faleceu em 1632.

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