Português: Análise da Cena XII do Ato I de Frei Luís de Sousa

sábado, 4 de janeiro de 2020

Análise da Cena XII do Ato I de Frei Luís de Sousa

Assunto: o incêndio do palácio.


Consequências do ato de Manuel de Sousa
-» partida da família para o palácio de D. João;
-» aumento do terror e da angústia de D. Madalena;
-» criação das condições para o desenlace trágico.

De facto, o incêndio do palácio de Manuel de Sousa:

a) é um acontecimento imprevisto: só na última cena se consuma, pois Manuel de Sousa não revelara a ninguém os seus intentos;

b) é um acontecimento significativo e dinâmico: implica o antagonismo entre o patriotismo de Manuel de Sousa e a “tirania” dos governadores, em nome de um rei estrangeiro; entre o pundonor do cidadão, senhor e dono de sua casa, e a “afronta” de estes hóspedes indesejados imporem a sua presença, sem ao menos uma consulta, ou uma atenção com o proprietário;

c) altera gravemente a situação das personagens: D. Madalena, esposa ilegítima, adúltera e bígama, volta novamente para o palácio onde tinha sido (não o era ainda?) esposa legítima de D. João de Portugal (como, aliás, ela temia – cena 8); por seu lado, Manuel de Sousa vai para o palácio de D. João como um intruso e usurpador de um lugar que não podia ocupar legitimamente;

d) precipita o desfecho pelo retorno de D. Madalena ao passado, à casa fatal, onde irão suceder os acontecimentos trágicos mais importantes e significativos, ou seja, as desgraças profetizadas por Telmo, vividas na consciência atormentada de D. Madalena, indiciadas pela perda do retrato de Manuel de Sousa, anúncio fatal da “perda” da personagem retratada, e ainda o incêndio do palácio, destruidor da “casa”, no duplo sentido de edifício e de família.


Simbologia do incêndio
▪ O incêndio e a destruição do retrato representam a antecipação da morte de Manuel de Sousa.
▪ Por outro lado, o mesmo fogo que consome o quadro vai permitir igualmente a purificação da personagem. De facto, após a morte de Manuel de Sousa para a vida mundana, dá-se a sua ressurreição espiritual como Frei Luís de Sousa, um dos grandes prosadores portugueses do século XVII.


Caracterização das personagens

Manuel de Sousa Coutinho:
- guiado pela razão, toma as suas decisões à luz de um conjunto de valores universais: a liberdade, a moral, a honra, o patriotismo (ex.: a resposta dada às tentativas dos governadores, incendiando o seu palácio);
- generoso e nobre de alma;
- bons instintos morais, servidos por uma fé cristão vivida;
- sentido de serviço para com a comunidade a que pertence, no exemplo de resistência ao rei estrangeiro;
- irónico (“Ilumino a minha casa…”; “Suas Excelências podem vir, quando quiserem.”): exprime o desrespeito que sente pelos governadores [a ironia e a metáfora presentes na primeira expressão contêm um duplo sentido: remetem para a luminosidade que receberá os governadores, proveniente do incêndio do palácio; por outro lado, a expressão traduz o patriotismo de Manuel de Sousa, que receberá os governadores com fogo e destruição. Segundo o manual Entre nós e as palavras, «D. Manuel afirma que aceita a vinda dos governadores; mas o ato de destruir demonstra a sua oposição. A ironia verbaliza a revolta da personagem e contrasta o que os governadores esperavam que D. Manuel fizesse (submeter-se) e o que ele faz (insurge-se).”];
- sereno na decisão que toma: note-se, por exemplo, no eufemismo repleto de ironia que usa para se referir ao incêndio que está a atear à sua própria casa (“Ilumino a minha casa…”);
- Manuel de Sousa é um herói romântico, porque se deixa levar pelas suas paixões de forma violenta, impulsiva e até precipitada na defesa dos conceitos de honra e patriotismo.

D. Madalena:
- aterrorizada com o ato do marido;
- dominada pelo Destino e pelo fatalismo e impotente contra ambos: a tentativa de salvar o retrato do marido, parecendo prever o que daí adviria;
- ao ver o palácio a arder, a sua única preocupação consiste em salvar o retrato, parecendo adivinhar na sua destruição algo muito grave. De facto, para ela a destruição do retrato pelo fogo prenuncia a destruição do marido e da própria família;
- o cerco vai-se fechando à sua volta e os seus contínuos medos e terrores começam a ser justificados: D. João de Portugal não regressou, mas D. Madalena vai ao encontro do passado.

NOTAS:

1.ª) Estas derradeiras cenas do primeiro ato são bastante rápidas. Aliás, desde a chegada de Manuel de Sousa, o ritmo, até então algo lento, torna-se rápido e, depois, muito rápido, o que está em sintonia com o final espetacular do ato e com a peripécia: a intriga adensa-se e afunila. Esta aceleração do ritmo da ação é traduzida pela pontuação usada: frases muito pontuadas, pausadas por vírgulas, pontos e vírgulas e reticências, mostrando o precipitar das ações; os pontos de exclamação marcam o sentimentalismo das cenas.

2.ª) Manuel de Sousa afirma conceitos e características do Barroco: nada perdura, tudo muda, a vida é perpétua mudança, tudo é aparência e sonho.


Discurso das personagens

Nesta cena, há um contraste evidente entre o discurso de D. Madalena e do de Manuel de Sousa.
Assim, ela mostra-se emocionalmente descontrolada, aterrorizada, e esse estado de espírito é visível no recurso a frases curtas, interrogativas e exclamativas, nas invocações a Deus e no uso da interjeição «ai».
Por sua vez, o marido mostra-se tranquilo, pois está convicto da decisão que tomou. Quando se refere aos governadores, é irónico e sarcástico.


Elementos trágicos das cenas

Hybris de Manuel de Sousa

A hybris de Manuel de Sousa manifesta-se de duas maneiras:

1.ª) Anteriormente ao início da ação: o amor-paixão por D. Madalena é, para ele, legítimo, porque a julga «viúva». Todos os indícios, todos os testemunhos apontavam para a certeza da morte de D. João, ao fim dos 7 anos já passados desde o desastre de Alcácer Quibir. Na sua boa fé, julga não haver qualquer impedimento para o matrimónio. No entanto, inconscientemente:
a) colabora na mentira;
b) profana o sacramento do matrimónio;
c) comete adultério;
d) passa a viver em bigamia;
e) usurpa o lugar que a outro pertence, de direito.

2.ª) Dentro da ação: rebeldia para com as autoridades de Lisboa:
. Miguel de Moura, «um vilão ruim»;
. o conde de Sabugal e o conde de Santa Cruz «que deviam olhar por quem são, e que tomaram este incargo odioso… e vil, de oprimir os seus naturais em nome dum rei estrangeiro!»;
. o arcebispo é «o que os outros querem que ele seja», isto é, uma personagem sem vontade e sem caráter, muito acomodatícia, facilmente manobrável.
É, portanto, pelos mais nobres ideais que Manuel de Sousa recusa a hospitalidade aos governadores:
-» patriotismo que não tolera essa «afronta»;
-» resistência ao rei estrangeiro nas pessoas dos seus representantes;
-» lição aos fidalgos degenerados, e a «este escravo povo que os sofre, como não tiveram tiranos há muito tempo nesta terra» (I, 7).
Revela, assim, um sentido heroico da honra, na ética feudal, paralelo à virtude romana (virtus) e à excelência grega (aretê).
Por isso:
. recusa receber, no seu palácio de Almada, os governantes de Lisboa;
. incendeia o palácio;
. desafia as autoridades e o próprio Destino (I, 11);
. entra em conflito aberto e voluntário com as autoridades (I, 8);
. aceita o risco calculado, até às últimas consequências: renúncia e perda de bens, generosa entrega da própria vida (I, 11);
. recusa o perdão dos governadores, «se ele quisesse dizer que o fogo tinha pegado por acaso» (II, 1);
. sofre presumível perseguição, mas prefere estar escondido, naquele «homizio», como diz Maria, naquela «quinta tão triste d’além do Alfeite, e não poder vir aqui senão de noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo» (II, 1).

Manuel de Sousa faz ainda sucessivos desafios ao Destino. De facto, quando afirma «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos? Seja.» (I, 11):
. evoca uma fatalidade que parece existir sobre a sua estirpe;
. se o pai morreu desastrosamente (à letra, desastre é a maléfica influência de poderes ocultos e cruéis, manifestados através dos astros, sobre os destinos humanos), também lhe poderá acontecer algo de terrível, ao incendiar o próprio palácio por suas mãos. As figuras paralelas do pai e do filho como que se sobrepõem, unidas em comum desgraça. Com efeito, Lopo de Sousa Coutinho é atravessado pela própria espada: quem com ferros mata… Manuel de Sousa, o filho, tem a intuição profética de que as «chamas ateadas por suas mãos» o poderão destruir, e com ele todos aqueles que o amam e a quem ama, D. Madalena e Maria: quem brinca com o fogo…
  De resto, não serão essas «chamas ateadas por suas mãos», simbolicamente, as chamas do amor adúltero (descontada embora a sua boa fé) a uma mulher casada com outro, que o irão queimar e destruir? Cupido, além de fatal, também é, por vezes, cruel.

Presságios / indícios:

1.º) O incêndio, que destrói o palácio onde as personagens viviam numa certa acalmia e precipita o desenlace fatal:
* pode ser o prenúncio de morte para o mundo de Manuel;
* pode significar que o homem é vítima do seu fogo, da sua paixão, que o conduz inevitavelmente à destruição;
* pode ainda significar que é a ação do Homem que cria o destino, determina o seu futuro;
* pode, igualmente, apontar para um possível renascer das cinzas de Manuel de Sousa (com a tomada do hábito).

2.º) A destruição do retrato de Manuel de Sousa, queimado também pelo fogo, e a tentativa infrutífera de D. Madalena o salvar simbolizam a destruição que também cairá sobre a família brevemente e a impotência das personagens para travarem o Destino, bem como a morte psicológica da personagem retratada.

Peripécia:
-» o incêndio do palácio;
-» a mudança para o palácio de D. João de Portugal.

▪ O páthos de D. Madalena vai-se intensificando progressivamente (clímax), até ao incêndio do palácio (acmê, o ponto culminante) e perda do retrato.

▪ O caráter trágico desta cena e de todo o final do ato é ainda evidenciado:
a) pelo apelo insistente à fuga;
b) pelas informações das didascálias:
- o deflagrar das chamas;
- os gritos;
- o rebate dos sinos;
- o cair do pano (pode simbolizar a queda que conduzirá à desagregação da família).


Marcas do drama romântico:
. o fundo histórico: a presença dos governadores, o incêndio do palácio por Manuel de Sousa;
. os valores representados por Manuel de Sousa: a honra, o patriotismo representativo da identidade nacional, a oposição à tirania, etc.;
. o culto dos sentimentos fortes: os gritos e os movimentos agitados e precipitados.

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