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sexta-feira, 20 de março de 2020

A importância dos episódios e da peripécia final em "Famílias desavindas"

A maior parte dos episódios do conto são de agressividade entre as duas famílias. Com efeito, eles retratam a desavença entre «semaforeiros» e médicos ao longo de cerca de um século, desavença esse que é gerada por um dispositivo insólito: os semáforos a pedal.

▪ O Dr. João Pedro Bekett ofendeu Ramon por não querer que o semáforo o impedisse de atravessar a rua quando quisesse. Em consequência, o «semaforeiro» passou a dificultar-lhe a passagem – início do conflito.

▪ O Dr. João, filho do Dr. João Pedro, «passava grande parte do tempo à janela, a encadear Ximenez com um espelho colorido».

▪ O Dr. Paulo, neto do primeiro médico, passava por Asdrúbal, neto de Ramon, e insultava-o e pedia aos clientes que o insultassem também. Asdrúbal ripostava, insultando o médico de volta e, certa ocasião, chegou mesmo a levantar a mão para ele.


Peripécia final

▪ O final do conto constitui uma inversão inesperada dos acontecimentos: Paco, bisneto de Ramon, sucedeu a Asdrúbal e sofreu um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar concretizar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido no chão. O Dr. Paulo, seguindo a sua condição de médico, em vez de o insultar, como pensara fazer, esqueceu o ódio e foi socorrer Paco. Além disso, para mitigar o remorso e o sentimento de culta decorrentes do conflito que mantivera com Paco, substituiu-o no ofício de «semaforeiro» enquanto Paco se restabelecia do acidente no hospital.

▪ A peripécia final contrasta com os episódios de conflito entre as duas famílias, pois configura uma situação de resolução desse conflito. De facto, o acidente de Paco proporcionou a paz e a concórdia, acabando com a desavença, ao trazer à tona a faceta real do Dr. Paulo, o terceiro médico da família, que esqueceu o ódio secular entre as duas famílias para socorrer o «semaforeiro».

▪ A peripécia não deixa de configurar um momento de ironia em relação a um longo passado de ódio, mas, por outro lado, encerra uma moralidade, mostrando que o rancor e o ódio não têm de ser eternos, que as pessoas podem ser más e boas e que a solidariedade pode ser mais forte do que o ódio.

▪ A peripécia final representa o fim do conflito, do ódio, entre as duas famílias e vem demonstrar que as classes sociais superiores e as inferiores podem criar uma relação harmoniosa, graças á solidariedade entre os seus elementos.


COVID-19: ponto de situação do dia 19 de março


quarta-feira, 18 de março de 2020

Análise de "Orfeu rebelde"

O mito de Orfeu

Orfeu é uma figura da mitologia grega, filho de Calíope, musa da poesia épica, e de Apolo, deus da poesia e da música, de quem recebeu uma lira como presente.
Orfeu era um poeta que se celebrizou pelo seu canto melodioso, que encantava a própria Natureza. De facto, os sons da sua lira domavam as feras, que se deitavam a seus pés, e atraía também seres humanos e a própria Natureza.
Casou-se com Eurídice, seu grande amor. No casamento, esteve presente Himeneu para abençoar a união, mas o fumo da sua tocha fez lacrimejar os noivos, o que não trouxe augúrios favoráveis. Pouco tempo depois, Eurídice passeava com as ninfas, quando foi surpreendida pelo pastor Aristeu, que, ao vê-la, se apaixonou perdidamente e a tentou conquistar. Na sua fuga, Eurídice pisou uma serpente, que a mordeu no pé e lhe causou a morte.
Orfeu, desesperado e incontrolável, desceu ao reino dos mortos para a reaver. Perante os deuses do Inferno, cantou o seu desgosto e o seu amor, dizendo que, se não lha devolvessem, ele próprio ficaria com ela no reino dos mortos. Graças ao seu canto, conseguiu comover Hades e Perséfone a autorizarem o regresso de Eurídice ao mundo dos vivos, mas com uma condição: em caso algum, Orfeu poderia virar-se para trás, olhá-la, enquanto não tivessem transposto os limites infernais e alcançado o mundo superior, a superfície. Caminhando na frente, Orfeu estava quase a chegar aos portões do Hades e a atingir o seu objetivo, mas, com receio de ter sido enganado por aqueles deuses, virou-se para trás para confirmar se a esposa o seguia. Eurídice, lavada em lágrimas, foi imediatamente levada de volta para o mundo dos mortos. Orfeu tentou alcança-la, mas sem sucesso.
Profundamente triste, permaneceu na margem do rio durante sete dias, sem comer nem dormir, suplicando o regresso da esposa. Depois, vagueou, triste e solitário, pelo mundo, sem nunca mais querer saber de mulher alguma e repelindo todas as que o tentavam seduzir, até que um dia as mulheres da Trácia, enfurecidas pelo seu desprezo, o mataram e lançaram o seu corpo ao rio Ebro, que acabou por ser levado até à ilha de Lesbos, onde, durante muito tempo, a cabeça de Orfeu, presa numa rocha, proferia oráculos. A sua lira foi colocada num templo de Lesbos.
Outra versão do mito sugere que as musas o enterraram em Limetra, num túmulo onde o rouxinol canta mais suavemente do que em qualquer outra parte da Grécia, e a sua lira foi colocada por Zeus entre as estrelas. Orfeu encontrou por fim Eurídice e, abraçando-a, nunca mais deixou de a contemplar.

NOTA: Miguel Torga reutiliza muitos mitos gregos, tirando partido do seu significado e aplicando-os quer a si mesmo quer à sua terra. No caso do mito de Orfeu, destaca a rebeldia de quem não aceita os limites que lhe são impostos.


Assunto: rebelde, o sujeito poético pretende gravar, através do canto (a poesia), a fúria de cada momento, afirmar a sua rebeldia face à transitoriedade da vida e à inevitabilidade da morte.


Tema: a revolta contra a inexorabilidade do tempo e a morte / o ofício de poeta.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Autocaracterização do sujeito poético.

▪ O sujeito autocaracteriza-se como um poeta rebelde cuja poesia corresponde à expressão de si mesmo («canto como sou»), da sua intensidade, da sua revolta, do seu perene sofrimento. Autocaracteriza-se igualmente como um poeta sincero («canto como sou»), autêntico enquanto ser, no seu sofrimento e nos seus sentimentos («Violências famintas de ternura»).

▪ O sujeito poético assume-se como um rebelde – a rebeldia de Orfeu – e revolta-se cantando como um possesso (comparação que traduz a fúria com que o sujeito poético exprime o seu «canto», a sua poesia).

▪ Essa fúria, essa violência constituem um grito contra a morte e contra a passagem inexorável do tempo, são motivadas pelo desejo de lutar contra a passagem do tempo e a efemeridade da vida, através da eternização dos momentos permitida pela escrita.

▪ O sujeito poético pretende que a sua voz obsessiva e esse grito contra o tempo se prolonguem para a eternidade, daí a gravação «a canivete» (metáfora), para que a própria evolução da casca torne mais duradoura e viva a sua revolta.

▪ De facto, a metáfora da «casca do tempo» expressa a ideia de que a casca eterniza a sua revolta, no entanto, contraditoriamente, estaremos perante algo efémero e aparente – a gravação da fúria de cada momento – por ser apenas casca. Afinal, o que o sujeito poético procura é encontrar a eternidade na realização poética, à maneira clássica.

2.ª parte (2.ª estrofe) – Oposição entre os «outros» e o «eu».

▪ O sujeito poético recusa a poesia de outros poetas, românticos, de canto suave e harmonioso, descomprometidos da realidade, que se conformam («Outros, felizes, sejam rouxinóis…» – v. 7 – metáfora e ironia relativamente à aceitação fácil da vida).

▪ Pelo contrário, o «eu» distancia-se desses outros poetas, pois não pretende exprimir emoções, mas um canto agressivo e violento, de revolta, de desafio (poesia romântica/descomprometida versus poesia de revolta), um grito violento revelador da falta de ternura. Então, recorre à violência, ou melhor, a uma expressão violenta e agressiva para vencer o que o instinto lhe adivinha e ele recusa: a inexorabilidade da morte e a opressão que se abate sobre ele (vide versos 8-11). O sujeito poético é um ser atormentado e revoltado que desafia as leis do tempo e da vida (v. 10).

▪ A metáfora «…. O céu e a terra, pedras conjugas…» (v. 9) exprime a união de todas as forças que se conjugam para triturar o sujeito, para o oprimir – «Do moinho cruel que me tritura…» (v. 10), metáfora e personificação que evocam a passagem inexorável do tempo (que provoca o sofrimento permanente do «eu») pelo movimento circular do moinho e contra a qual ele se revolta. O céu e a terra unem esforços para atormentar o sujeito poético, um espírito moído pelo sofrimento da vida que roda sem fim, como se de um moinho se tratasse, o moinho do tempo cuja mó é, precisamente, o céu e a terra conjugados.

▪ A personificação e a comparação presentes nos versos 9 a 11 [«… o céu e a terra (…) / Saibam que há gritos como há nortadas / Violências famintas de ternura…»] exprimem a força e a violência do grito do sujeito poético contra a passagem do tempo, semelhante à violência e à força dos elementos da Natureza, como as nortadas Por outro lado, a agressividade do «eu» traduz igualmente a aspiração ao afeto, que ele não possui.

▪ De facto, a personificação de sabor metafórico presente no verso 12 exprime a força e a necessidade de amor e ternura que o sujeito poético sente.

3.ª parte (3.ªestrofe) – Função interventiva da poesia.

▪ O sujeito poético afirma-se possuidor do instinto dos animais – que o leva a adivinhar a inevitabilidade da morte – e do corpo de um poeta que a recusa e contra ela luta através do seu canto.

▪ A comparação e a metáfora dos versos 15 e 16 («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa.») reafirmam a postura de rebeldia do sujeito poético e a ideia da poesia como arma e a palavra e a liberdade de expressão são veículos de denúncia.

▪ Isto remete para o conceito de poesia sugerido pelo poema: o sujeito poético canta para agir sobre o (seu) tempo, assumindo uma posição interventiva. De facto, a poesia constitui um grito, um refúgio, um desabafo, face à consciência da passagem triturante do tempo e à iminência da morte. Estes recursos estilísticos emprestam à criação poética conotações de luta: o canto poético funciona como uma arma.

▪ Os dois últimos versos do poema sugerem que o canto do sujeito poético oscila entre a exaltação e o terror em relação à realidade, visto que esta, apesar de toda a sua beleza, é caracterizada pela omnipresença da morte

NOTAS:

1.ª) Miguel Torga socorre-se do mito de Orfeu para dar voz à sua rebeldia, mas desenvolve-o de forma diferente do tratamento que lhe foi dado pelos clássicos. Por um lado, o Orfeu mitológico representa a rebeldia por causa do amor, enquanto o Orfeu de Miguel Torga simboliza a rebeldia motivada pelos seus limites e pelos limites humanos, sobretudo a impossibilidade de travar a passagem inexorável do tempo e a impossibilidade de vencer a morte. O poeta, simultaneamente, aproveita e subverte o mito: o poeta é o próprio Orfeu, o que significa que se automitifica.

2.ª) Por outro lado, de acordo com o mito grego, Orfeu caracterizava-se por ser suave e encantatório, enquanto o canto do sujeito poético é caracterizado pela intensidade, pela força, revelando a face rebelde e revoltada de um Orfeu desafiador.

3.ª) A poesia é entendida como uma arma do poeta, utilizada em legítima defesa: «Canto como um possesso», «desafio», «moinho cruel», «gritos», «nortadas», «violências». Essa arma serve de arma de defesa do sujeito poético contra o esquecimento, a morte, a passagem do tempo. A poesia é arma de combate – a única arma que pode vencer a morte; é uma poesia de desespero humanista.

4.ª) Como poeta, Miguel Torga considera-se chamado à missão suprema de gritar a sua solidariedade humanista com todos os homens, sobretudo os que são mais abandonados, e dar-lhes esperança.

5.ª) O humanismo de Torga é o humanismo de um revolucionário, de um revoltado e, mais do que um revoltado, de um rebelde. O canto poético é o seu instrumento de combate, «em legítima defesa» dos valores que «articulam» o seu humanismo, que não é de «abdicação mas de confronto».

6.ª) A mensagem do poema remete para o drama interior do homem e a sua obstinação em lutar contra esse drama, patente na imagem órfica presente nesta atitude do poeta perante a poesia e a morte, ou mesmo perante o amor feito «ternura».


Caracterização do sujeito poético
▪ O sujeito poético é um poeta revoltado e rebelde (“Orfeu rebelde” – v. 1), não por ter perdido a amada, como Orfeu, mas por causa da passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
▪ É igualmente um ser sincero, autêntico e genuíno («Canto como sou» - v. 1) e intenso («Canto como um possesso» - v. 2).
▪ É um ser sofredor, atormentado e revoltado pela passagem inexorável do tempo e pela morte, que desafia as leis do tempo e da vida («Que o céu e a terra, pedras conjugadas / Do moinho cruel que me tritura» – vv. 9-10), faminto de ternura («Violências famintas de ternura» – v. 12).
▪ É, assim, um poeta que luta contra a passagem do tempo e contra a morte.
▪ Exprime a dolorosa condição do ser humano («Bichinho instintivo que adivinha a morte» – v. 13), mas procura superá-la, recusando-a e afirmando a sua identidade.
▪ O seu canto constitui uma arma, uma arma de defesa e complexa («Canto como quem usa / Os versos em legítima defesa. / Canto, sem perguntar à Musa / Se o canto é de terror ou de beleza.» – vv. 15-18).


Título

Orfeu é uma figura mítica ligada à poesia, o que se adequa ao poema de Torga, cujo tema é a conceção do ofício de poeta.
Por outro lado, o poeta identifica-se com Orfeu, dado que, tal como sucedia com a figura da mitologia, também o seu canto tem um forte impacto naqueles que o rodeiam,
Por sua vez, o adjetivo «rebelde» corresponde à conceção de poeta veiculada pelo poema: um poeta da revolta e da intensidade e não suave, harmonioso e encantatório como o de Orfeu.
Por último, tal como Orfeu, que procurou lutar contra recorrendo ao seu canto (foi assim que resgatou Eurídice do reino dos mortos), também o poeta se revolta contra a morte e procura combatê-la e reverte-la através da sua poesia.



Outros recursos poético-estilísticos

1. Nível fónico

Estrofes: o poema é constituído por três sextilhas.
Rima:
- esquema rimático: ABCDCD/ABCDCD/ABBCBC;
- os dois primeiros versos de cada estrofe são brancos, exceto o segundo da última estrofe, que emparelha com o seguinte;
- os quatro últimos versos de cada estrofe apresentam rima cruzada;
- consoante («canivete»/«compromete»);
- rica («canivete»/«compromete») e pobre («momento»/«sofrimento»);
- grave («canivete»/«compromete»).
Métrica irregular: versos maioritariamente decassilábicos, exceto o 2.º da 1.ª estrofe e os 3.º e 5.ºda 3.ª estrofe (de 6 e 8 sílabas).
. Ritmo oscilante, dadas as características da rima e da métrica.
. Vários casos de transporte contribuem para o ritmo do poema.
. Aliteração do fonema /c/ ao longo do poema, conjugada com a aliteração do fonema /t/, que remete para a luta e rebeldia do sujeito poético.

2. Nível morfossintático

. A adjetivação (“rebelde”, “cruel”, “famintos”, “instintivo”, “legítima”) é sugestiva de rebeldia e também de ironia no caso do adjetivo felizes.
. Predomínio de verbos e nomes expressivos de ação, força, agressividade, rebeldia, ao serviço de um estilo viril.
. Verbos:
– domínio do presente do indicativo: sugere a continuidade da luta, um processo interminável, e do sentimento de revolta do sujeito poético;
– presente do conjuntivo: o desdém;
– pretérito imperfeito do conjuntivo: a hipótese.
. Predomínio de sensações auditivas.


Marcas torguianas e presencistas do poema:
- a superlativação do “eu”;
- a emotividade da linguagem;
- a aguda da consciência da função do Poeta e da Poesia;
- o humanismo revolucionário.


Síntese

Miguel Torga é um poeta órfico, no duplo sentido em que relaciona o orfismo com o glorioso Orfeu, poeta, ora com as práticas doutrinárias que inculcam a crença de que o corpo é a prisão da alma e de que a purificação do pecado se obtém pela mortificação do corpo, pela abstenção de certos atos e pelo culto de certos ritos.
No primeiro sentido, o mais glosado dos mitos helénicos é Orfeu, patrono emblemático da poesia, o portador da lira cuja música não só subjuga a própria natureza como Caronte e os deuses do Hades, das trevas infernais em que estava Eurídice nas suas “faixas de morta, incerta, suave e sem impaciência” (Rilke). No segundo sentido, o orfismo torguiano revela-se na contínua frequência com que o poeta introduz na natureza do ato poético o ingrediente ascético e catártico que lhe dão eficácia, necessidade e sentido de único vínculo e veículo que encaminha o nosso rumo interior para o projeto superior da Poesia.
À reinvenção deste mito presidem paradoxalmente as metáforas de Orfeu Rebelde, Orfeu Cansado e Orfeu Mártir.
É introduzida aqui uma rebeldia que tem como reverso o pânico de quem se deu conta que as cordas da lírica órfica são “grades” e de quem, irremediavelmente mergulhado na desafinação da melodia, deliberadamente perdida, quer “ao menos falhar em tom agudo”, insistindo em transformar cada novo som discordante num “grito/Que no seu desespero diga tudo”.
Esquecido da sua missão de ressuscitar Eurídice, Orfeu introduz no canto e na melodia que enterneciam e domavam os deuses das trevas infernais – “a fúria de cada momento”, desinteressado de “se o canto é de terror ou de beleza” e apenas determinado a usá-lo “em legítima defesa”, a ver se o seu canto compromete a eternidade no seu sofrimento.
De resto, a estratégia da arte poética torguiana da procura do paradigma formal e a tática de rotura e desvio que lhe é implícita são o próprio absoluto da contradição órfica – inerente como foi sempre o orfismo à soberania e ao culto de Dioniso, deus da fúria, da desordem catabática, meta da divina demência ou da divina intoxicação.
Rebelde, Orfeu – Torga, os dedos enclavinhados nas grades da prisão da lira, o corpo rasgado, por dentro, pelos golpes de paixão da alma encarcerada, por fora, pelo ferro dos versos da emoção endurecida, nunca deixará de ser o apaixonado para quem é tão necessário conseguir dos deuses a descida aos infernos em busca de Eurídice como ser o rebelde que contraria a lei de a não olhar para a não perder.
Toda a poesia torguiana está cheia desse imperativo órfico em virtude do qual só na autoflagelação e na catarse do exercício poético a nossa perfuração existencial adquire a direção ascensional no sentido purificador da super-existência pela Poesia.
É, com efeito, necessário que Orfeu desça aos infernos à procura de Eurídice, não para a trazer consigo para as alegrias domésticas de uma felicidade familiar, mas para a reintroduzir na inessencialidade da noite – dessa noite que, sendo o limite do dia, é também o seu pressentimento e a sua promessa. E é igualmente necessário que Orfeu suba de novo à luz do dia, à precisão luminosa da solidão do seu corpo, à cintilação do seu olhar portador da morte que é a profundidade da vida, no mesmo sentido em que a Poesia é a profundidade do absurdo do mundo sem Deus e em que o esquecimento é a profundidade da memória. Cúmplice do esquecimento e da morte, a Poesia é, portanto, a imagem do excesso da vida incomportável no esquecimento e na morte que o olhar do rosto rebelde reintroduz nas trevas e na noite, perfil da luz e do dia (cf. “Descida aos Infernos”).




 

Relação do mito com a poesia de Torga

COVID-19: ponto de situação do dia 17 de março


terça-feira, 17 de março de 2020

Em memória: Pedro Barroso



Pedro Barroso
(1950-2020)

Análise de "São Leonardo de Galafura"

Assunto

São Leonardo navega vagarosamente ao longo da terra duriense, num antecipado “desengano” do que será o “cais divino” e já vergado às saudades da terra que vai deixar.


Tema: o telurismo.


Estrutura interna

1.ª parte (1.ª estrofe) – Realidade imaginada.

O sujeito poético imagina S. Leonardo «à proa de um navio de penedos» (um barco rabelo), a navegar, sem pressas, num «doce mar de mosto» que o prende à terra, em direção à eternidade», mas já arrependido de deixar o «cais humano» (a terra duriense), «num antecipado desengano» da vida que está para lá do «cais divino».
É de salientar o recurso ao presente do indicativo («ruma», «avança») e à perifrástica («vai sulcando», «a navegar») para sugerir a realização gradual / o lento desenrolar da viagem. Essa sugestão é dada também pelo particípio («ancorado») e pelos advérbios («devagar», «lentamente»).

2.ª parte (2.ª estrofe) – Razões da lentidão e do desengano do santo.

Na eternidade, não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes.
Na eternidade, só encontrará «charcos de luz / Envelhecida»; os montes serão todos rasos, estendendo-se os horizontes até se extinguir a cor da vida.
Nesta estrofe, predomina o futuro do indicativo («terá», «serão», «deixarão»), dado que se descreve uma realidade para a qual se caminha.

3.ª parte (3.ª estrofe) – Regresso à imagem descritiva da primeira estrofe.

O santo navega cada vez mais lentamente em direção à eternidade, aproveitando os últimos momentos de contemplação da paisagem duriense para sorver o «cheiro a terra e a rosmaninho», isto é, para que se prolongue a permanência na terra.
Note-se que o sujeito poético imagina o santo a navegar, na primeira estrofe, não num barco celestial, mas num navio de penedos (alusão às serranias transmontanas), contudo, na terceira, já desliza num barco rabelo (embarcação típica do rio Douro que transporta o vinho do Porto).
O poeta volta a usar o presente do indicativo com o mesmo objetivo da primeira estrofe.


Notas

1.ª) S. Leonardo de Galafura é um miradouro que existe no alto da montanha, junto a uma capelinha, em Galafura, freguesia do concelho da Régua, distrito de Vila Real. Vista do sopé do monte, dá a imagem de navegar pelo espaço.

2.ª) Os barcos rabelos são barcos à vela, característicos do rio Douro, usados para o transporte das pipas de vinho do Porto, do Alto Douro até Vila Nova de Gaia, onde se situam as principais caves.

3.ª) Mosto é o sumo de uva, antes da fermentação completa.

4.ª) Socalcos são porções de terreno nas encostas dos montes, suportadas por muros de pedra; são característicos da paisagem duriense.

5.ª) Este poema, como tantos outros, é o testemunho do amor telúrico de Miguel Torga pela terra duriense, daí o antecipado desengano do santo/Torga, pois ama-a e vai abandoná-la. Este amor telúrico permite compreender também o pseudónimo que Adolfo Correia da Rocha adota: a escolha de Miguel é uma homenagem ao escritor castelhano Miguel de Unamuno (1864-1936), que admirava profundamente, e a Miguel de Cervantes (1547-1616), outro escritor espanhol, autor de D. Quixote; Torga é o nome de uma urze transmontana.

6.ª) Como é característico em Miguel Torga, o poema apresenta uma estrutura circular: começa com a descrição da viagem vagarosa do santo através do Douro, apresenta a razão dessa lentidão e do desengano, antecipando o que estará «lá» no final do caminho (o futuro) e retorna ao presente e à descrição da lenta viagem em direção à eternidade.

7.ª) Em suma, as razões que justificam a lentidão do santo são as seguintes:
(A) no «cais divino» não haverá socalcos, vinhedos, água do Douro e montes;
(B) o santo é feliz na terra, onde moram a felicidade, a vida e a luz;
(C) a viagem é lenta para que o santo possa prolongar o prazer de sorver «[…] mais de cheiro / A terra e a rosmaninho!» (vv. 26-27).


Estado de espírito do sujeito poético
• sem pressa de abandonar o «cais humano», a terra duriense;
• feliz no «cais humano»;
• arrependido de deixar o «cais humano»;
• desengano e desiludido antecipadamente da vida que está para lá do «cais divino»;
• saudoso da terra duriense.


Caráter alegórico do poema

O sujeito poético estabelece um paralelo entre terra e céu, o «cais humano» e o «cais divino», duas metáforas que sobrevalorizam a terra, indício do telurismo de Miguel Torga.
Esse paralelismo atinge foros de heresia, pois o «cais humano» apresenta características e encantos que se sobrepõem ao «cais divino».


A irregularidade formal

O poema é constituído por três estrofes. A primeira é constituída por 11 versos, a segunda por 9 e a terceira por 7.
Este decréscimo de versos de estrofe para estrofe poderá simbolizar a aproximação da viagem do santo do seu destino, uma viagem que se vai, portanto, aproximando do seu final.
Relativamente à métrica, também esta é irregular, alternando verso longos com curtos, o que poderá sugerir a irregularidade do percurso feito.


O mito de Anteu

Anteu foi um gigante, filho de Neptuno (Poseidon) e da Terra (Geia), que habitava na Líbia e que obrigava todos os viajantes a lutar. Depois de os ter vencido e morto, enfeitava o templo do pai com os despojos. Enquanto estivesse em contacto com a sua mãe, geia, isto é, a Terra, Anteu era invulnerável. Um dia enfrentou Hércules e nessa luta recuperava forças cada vez que tocava no solo e era invencível. Então, Hércules ergueu-o nos braços e sufocou-o sobre os ombros, conseguindo desta maneira eliminá-lo.
Fala-se deste mito sempre que alguém estabelece contactos com a origem das suas ideias ou dos seus sentimentos e recupera energias físicas ou psicológicas.
Fazendo a apologia deste mito, Miguel Torga valoriza sobretudo a terra-mãe. Tal como Anteu, o poeta é atacado por forças que o abatem, mas, à semelhança da personagem mítica, retempera as suas energias na sua terra natal, S. Martinho de Anta (cf. Diário XI, 20 de setembro de 1968, e XV, 11 de setembro de 1989).


Recursos expressivos

1. Nível fónico

. Estrofes: três estrofes irregulares (11, 9 e 7 versos).
. Métrica irregular: há versos de 2 a 11 sílabas.
. Rima      - versos soltos em todas as estrofes;
- emparelhada e interpolada (primeira e segunda estrofes), emparelhada e cruzada (última estrofe);
- consoante (“mosto”/”posto”);
- pobre (“mosto”/”posto”) e rica (“comando”/”sulcando”);
- grave (“mosto”/”posto”).
Todos estes fatores se conjugam para dar uma ideia de irregularidade do espaço observado.
. Ritmo repousado, sobretudo na última estrofe, em harmonia com o andamento moderado da viagem de São Leonardo.
. Transporte: vv. 3-4, 5-6, 10-11, etc.
. Sons dominantes:

. Aliterações:

- do fonema /p/: sugere a viagem;
- do fonema /m/: sugere o apelo à terra duriense.


2. Nível morfossintático

. Futuro do indicativo (2.ª parte): exprime a referência à vida eterna para onde o Santo lentamente se dirige.
. O número de adjetivos é reduzido e os poucos existentes ligam-se a substantivos metafóricos: “doce mar de mosto”, “cais humano”, “rasos os montes”.
. Predomínio da coordenação: desenrolar da viagem de S. Leonardo, lenta e sequente.
. Orações:
- oração conclusiva: estabelece uma relação de consequência entre o “desengano antecipado” do Santo e a sua regalada demora ao longo do Douro;
- oração subordinada relativa: “que gasta no caminho”.

3. Nível semântico

. A construção alegórica do poema do poema orienta-se no sentido de enaltecer os encantos da terra e paisagem duriense, de traduzir o apego à terra.
. Metáforas:

. Imagens:
- as metáforas da 1.ª estrofe apresentam-nos a imagem do Santo como o capitão dum “navio de penedos”, olhando saudosamente para trás, ao deixar a terra duriense em direção à vida eterna, e, simultaneamente, revelam a atração telúrica de Torga pela terra transmontana, o fulcro da sua inspiração poética;
- a imagem dos três últimos versos da segunda estrofe deixa antever a eternidade sem montes, o que roubará à vista a cor dos horizontes.
. A expressividade dos advérbios “devagar” e “lentamente” e dos três últimos versos da terceira estrofe: a morosidade da viagem = o apego de S. Leonardo à terra duriense.
  Torga imagina o Santo a navegar não num barco celestial, como as barcas de Gil Vicente, mas “num navio de penedos” (alusão às serranias transmontanas) e, para melhor se identificar com a terra duriense, na última estrofe, o Santo já desliza num “barco rabelo” (embarcação típica do rio Douro, que servia para o transporte do vinho do Porto).
. Hipálage: “Lá não terá socalcos nem vinhedos na menina dos olhos deslumbrados” (o deslumbramento com a paisagem é do Santo e não dos olhos).
. Sinestesia: “é um sorvo [paladar] a mais de cheiro” [olfato].

Durante trinta anos, Torga tentou o “retrato poético” do Santo que sempre se lhe furtava. Mas nesse dia o “instantâneo” surgiu. Para a figura do Santo está transporta a apetência telúrica de Torga, pois, mesmo o Santo, a caminho do Paraíso, como um capitão “à proa dum navio de penedos,/A navegar num doce mar de mosto” (a paisagem duriense), não tem pressa “de chegar ao seu destino”, porque “feliz no cais humano/É num antecipado desengano/Que ruma em direção ao cais divino”. E isto porque sabe que lá os seus olhos não se deslumbrarão com os socalcos e vinhedos do Douro, com os montes, com tudo o que deixa, e tudo o que vai encontrar “São charcos de luz/Envelhecida/ (...) Até onde se extinga a cor da vida”. A viagem no rabelo é, pois, lenta para poder prolongar o prazer de sorver mais um pouco o cheiro da terra e do rosmaninho.


COVID-19: ponto de situação do dia 16 de março


segunda-feira, 16 de março de 2020

Resumo do conto "Famílias desavindas"

Ramon era um galego, proprietário de um bom restaurante, que se candidatou ao cargo de «semaforeiro», função para que foi selecionado de forma caricata, e que pertencia a uma família honesta e trabalhadora, que se dedicava à profissão pelo amor à mesma e não ao salário, que era modesto («equivalente ao de um jardineiro»).
Ramon, o seu filho Ximenez e o seu neto Asdrúbal trabalhavam até altas horas da madrugada, pedalando na bicicleta que gerava a energia que mudava as luzes do semáforo ou afinando-a quando era necessário.
O Dr. João Pedro Bekett tinha-se instalado no Porto, oriundo de Coimbra, com a sua família, num primeiro andar de um prédio situado próximo do semáforo, onde tinha o seu consultório. Tratava-se de um médico afamado, mas que exagerava nitidamente no seu espírito de missão. Obcecado por encontrar doentes que pudesse curar, considerava que o semáforo dificultava a sua ação. Por isso, ofendeu, de forma arrogante, Ramon, que não gostou e passou a dificultar-lhe ainda mais a vida. Aqui teve início a inimizade, o conflito e o ódio entre as duas famílias.
O filho (João) e o neto (Paulo), igualmente médicos, herdaram o ódio à família dos semaforeiros e deram seguimento ao conflito com os descendentes de Ramon. A troca de insultos entre os dois lados da barricada prosseguiu, roçando por vezes o extremismo ou raiando o conflito físico: por exemplo, o Dr. Paulo pedia aos seus clientes que insultassem o «semaforeiro»; certa vez, Asdrúbal levantou a mão para o médico.
Quando Paco, bisneto de Ramon, sucedeu ao seu pai, Asdrúbal, deu-se um acidente: um jovem que passava de moto, ao tentar um roubo por esticão, bateu no «semaforeiro» e deixou-o estendido, no chão. Então, o Dr. Paulo, na sua qualidade de médico, esqueceu o ódio secular e socorreu Paco, cujas mazelas, no entanto, eram graves, pelo que teve de ser transportado de ambulância para o hospital.
Após o acidente, o Dr. Paulo, com a sua bata branca, por remorso, passou a pedalar todos os dias, do nascer ao pôr-do-sol, para manter o semáforo a funcionar, enquanto Paco se restabelecia.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Professores e funcionários permanecem nas escolas

     O governo vai decretar o encerramento das escolas, isto é, os alunos estarão ausentes, mas os professores e os funcionários terão de comparecer no seu local de trabalho.

     A ideia parece ser a de continuar a trabalhar com os alunos através das tecnologias.

     Desde logo, surge um entrave: há muitos alunos que não dispõem de Internet em casa, tão-pouco um computador. Para estes, talvez a comunicação se possa fazer através de sinais de fumo.

     Por outro lado, é bem possível que a ideia do governo seja a de, assim, procurar manter os alunos em casa no tempo em que, normalmente, estariam nas salas de aulas.
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