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domingo, 19 de janeiro de 2020

Análise da Cena 12 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto: o Romeiro entra em cena, Maria morre e os pais tomam o hábito.


Acontecimentos da cena

▪ O Romeiro, numa derradeira tentativa de reparar a situação que criou e por que se sente responsável, manda Telmo intervir e dizer aos presentes que é um impostor.

▪ Maria ouve a sua voz e reconhece-o imediatamente. Sendo tuberculosa, tem uma acuidade auditiva mais desenvolvida. Cumpre-se, assim, a última etapa da anagnórise: o reconhecimento da identidade do Romeiro por Maria e pelos circunstantes.

▪ Para Maria, o Romeiro/D. João é o “homem do outro mundo”, morto e ressuscitado para trazer a desgraça e confirmar a sua ilegitimidade. Ela não aguenta a “vergonha” de ser filha ilegítima e morre. De facto, é possível considerar que o trauma psicológico que sofreu tenha agravado o seu estado de saúde debilitado (pela tuberculose), contribuindo para a sua morte.

▪ A tomada de hábito configura um duplo suicídio: Manuel de Sousa e D. Madalena abandonam voluntariamente o mundo profano (morte para o mundo), para se entregarem à religião.

▪ D. Madalena e Manuel de Sousa tudo deixam para trás: bens materiais, lugar de relevo na sociedade, amigos, parentes e até o nome. Como diz o Prior, despiram “o homem velho”, para se sepultarem vivos, embrulhados naquelas “mortalhas”, um na solidão do convento de S. Domingos de Benfica e a outra no convento do Sacramento.

▪ Na cena 2 do ato II, Telmo deixa escapar o seguinte presságio: “… tenho cá uma coisa que me diz que, antes de muito, se há de ver quem é que quer mais à nossa menina nesta casa.”. O terceiro ato vem confirmar esse presságio, visto que acaba por ser a única personagem que se mostra disposta a abdicar de um princípio que o norteava – o de nunca mentir – em nome do seu amor por Maria. É por este motivo que tenta levar a cabo a missão de que foi encarregado pelo Romeiro, passando a mensagem de que é um impostor.

▪A derradeira fala da peça, saída da boca do Prior (“Meus irmãos, Deus aflige neste mundo aqueles que ama. A coroa de glória não se dá senão no céu.”), aponta para a possibilidade de uma felicidade futura (a “coroa de glória… no céu”), embora à custa de sofrimento redentor, neste mundo, pela contrição, pela penitência, pela ascese. Estas palavras de conforto apontam para a esperança, só possível na mundividência cristã.
Por outro lado, desta fala pode concluir-se que o desenlace da tragédia se projeta em dois planos. No plano humano, as personagens não têm saída, não podem voltar atrás, tal como na tragédia grega, que reflete o mundo clássico-pagão, mundo sem esperança, nem redenção, em que o Destino, entidade cega e cruel, parece ter ciúmes da grandeza das personagens e só se satisfaz com a sua destruição e o aniquilamento das vítimas, sejam elas culpadas ou não. No plano da mundividência cristã, as personagens, embora destruídas como tal, infelizes no plano humano, desgraçadas no relacionamento familiar ou social, podem mesmo assim suportar todas as dores, todos os sofrimentos, porque lhes será sempre possível, mesmo neste mundo, atingir a paz de consciência, e, com os esforços próprios de uma vida de penitência, aspirar, com a ajuda da graça de Deus, a uma suprema felicidade futura.
Por outro lado, no mundo antigo clássico, a morte era vista como o aniquilamento total, o fim de tudo: nada mais se poderia esperar para além dela. A lei da morte era o esquecimento, do qual só se salvavam, como escreveu Camões, “… aqueles que por obras valerosas / se vão da lei da morte libertando”. As obras valorosas eram os feitos guerreiros dos heróis, os feitos intelectuais dos poetas, os feitos atléticos dos jogos. Só esses eleitos tinham direito à imortalidade, sublinhada pela ereção de uma estátua (ou retrato), duplo da personagem. A imortalidade, ou glória, era, portanto, a memória do herói, do poeta, do atleta nas gerações vindouras.
Na mundividência cristã, a alma humana é imortal; o homem morre, mas a alma não é destruída, antes tem um destino feliz ou infeliz, para além da morte. Os santos são os heróis da Fé, só eles atingem a bem-aventurança, simbolizada na estátua, ou imagem, com honras e culto nos altares. É neste sentido que apontam as palavras do Prior.

▪ É, pelo exposto no ponto anterior, que para Sóror Madalena das Chagas, no Convento do Sacramento, se abre uma possibilidade de reabilitação e redenção, pela contrição, pela oração, pela penitência, que a poderá levar, com a ajuda da graça de Deus, à felicidade e à bem-aventurança no Céu.
É, por isso, que, para Frei Luís de Sousa, no Convento de Benfica, as perspetivas são mais largas ainda, se juntar à penitência e à oração, a ascese que o levará à glória do escritor (o mito romântico do escritor/poeta) e a uma quase santificação, promissora da suprema glória no Céu.
Por fim, Maria, a vítima inocente das paixões dos pais (sobretudo da mãe), a morte que a destrói leva-a imediatamente à glória do Céu (“este anjo que Deus levou para si” – III, 12), nimbada pelas virtudes que a exornam, pelos sofrimentos e provações a que foi sujeita, pela inocência e pela beleza. Do ponto de vista transcendente, é a personagem mais feliz de todas.


Funções das didascálias

As indicações cénicas salientam o estado de espírito de Maria, nomeadamente a sua dor, o seu desespero e a sua revolta. Elas indicam os movimentos e os gestos feitos por Maria para se juntar aos pais, procurando neles um refúgio: ela agarra-os, abraça-nos, procura proteção no hábito do pai e no rosto da mãe, dirige-se aos presentes, aponta para o Romeiro, em sinal de reconhecimento, acabando por cair no chão, morta.


Características românticas:
▪ a exacerbação dos sentimentos;
▪ o domínio da emoção e da sensibilidade;
▪ a morte como solução para os problemas;
▪ a intenção pedagógica: a problemática dos filhos ilegítimos.


Características trágicas

Catástrofe:
- O Romeiro sofre uma morte psicológica: o anonimato. Ele é atingido pela dor que causou nos outros, pela morte de Maria, uma inocente, e por não ter remediado o mal que involuntariamente causou. Consigo transporta as memórias da breve felicidade passada e dos infortúnios com que o Destino o sobrecarregou. Nunca quis desonrar a sua viúva, mas também não deseja a honra para si. Bastar-lhe-á um nome honrado e uma memória sem mancha.
- Telmo morre psicologicamente também. Conseguirá ele sobreviver a tantos desgostos e a tão grande sofrimento?
- Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para o mundo com a tomada de hábito, para suportar a sua dor. No lugar de Manuel de Sousa, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa. No de D. Madalena, igualmente outro ser: Sóror Madalena das Chagas.
- Maria é a vítima inocente de um destino trágico e morre fisicamente, revoltada, de vergonha. Como era usual na tragédia grega, a catástrofe faz-se sentir na vítima (mais) inocente.

Peripécias:
- a tomada de hábito;
- a morte de Maria.

Pathos (sofrimento) das personagens.

Éleos (piedade) e phobos (medo): Garrett pretendia levar os espectadores a sofrer os terrores (phóbos) perante os castigos do Destino (neste caso, da Justiça de Deus) e sentir a piedade (éleos) pelas vítimas.

Catarse: a purgação das paixões humanas. Os espectadores viveram (e vivem) as paixões, as angústias, os desesperos das personagens, com quem idealmente se identificaram. Sofreram os terrores de D. Madalena, choraram as lágrimas de Manuel de Sousa, morreram com Maria, antipatizaram com a dureza do Romeiro, sensibilizaram-se com a «traição» do Romeiro, de modo que, no final de contas, no momento do julgamento final, o prato da balança se inclina a favor das vítimas.
              Garrett quis combater os preconceitos e a condenação da chamada “moral social” contra os filhos ilegítimos (como era o caso de Maria Adelaide, sua filha), mas, mais ainda, atrair a simpatia, a desculpa, a absolvição para os amores românticos (os “direitos da paixão”), à margem das leis de Deus e das leis humanas (como era o seu próprio caso).

Bibliografia: MENDES, João. Introdução à Leitura do Frei Luís de Sousa. Livraria Almedina.

Análise da Cena 11 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Maria entra em cena e interrompe a cerimónia da tomada de hábito dos pais, produzindo um discurso prenhe de revolta contra tudo e todos os que responsabiliza pela tragédia que se abateu sobre si e a sua família.


Didascália inicial:
- entrada precipitada de Maria na igreja;
- estado de Maria (“de completa alienação” física e psicológica);
- reação dos presentes na cerimónia (“Espanto geral”);
- interrupção da cerimónia.


Caracterização de Maria

▪ Maria surge em cena “em estado de completa alienação”, despenteada (“os cabelos soltos”), vestida de forma imprópria (“traz umas roupas brancas desalinhadas e caídas”), com o “rosto macerado mas inflamado com as rosetas hécticas, os olhos desvairados”, como se pode ler na didascália inicial. A sua entrada precipitada mostra o quão perturbada está.

▪ De seguida, doente (febril) e desesperada, profere um discurso violento, revoltado e desafiador das normas vigentes na época, acabando a desejar a morte.

▪ Esse discurso é extremamente emotivo, como se pode verificar pelo recurso aos modos imperativo e conjuntivo com valor exortativo (“Mate-me”, “deixe-me”), às apóstrofes, repetições e interrogações. Além disso, são várias as frases interrompidas por ela produzidas. Esta linguagem emotiva evidencia a sua lucidez e a violência crítica das suas palavras.

▪ Por outro lado, o seu discurso é transgressor e questionador das normais sociais e religiosas dominantes, motivado pela sua revolta, que tem vários alvos:
- aqueles que participam na cerimónia da tomada de hábito e que, portanto, comparticipam na dissolução do casamento dos pais e da sua família;
- a falta de humanidade de Deus que lhe reservou um destino tão cruel e lhe rouba os pais legítimos (“Que Deus é esse que […] quer roubar o pai e a mãe a sua filha?”);
- D. João de Portugal, que voltou para a condenar à morte (não é tolerável que alguém que desapareceu há 21 anos e do qual nada se soube durante esse período de tempo, tendo sido considerado morto, venha agora destruir o que de mais sagrado existe: uma família feliz e temente a Deus);
- um mundo hipócrita e desumano em que os inocentes são castigados;
- as convenções sociais e religiosas, que a obrigam a separar-se dos seus pais e condenam vítimas inocentes (estará aqui em causa a lei da indissolubilidade do casamento, que gera situações dramáticas).

▪ Em determinado momento, lança um apelo lancinante aos pais: “«Essa filha é a filha do crime e do pecado!...» Não sou; dize, meu pai, não sou… dize a essa gente toda, dize que não sou. […] Pobre mãe! Tu não podes… coitada!... Não tens ânimo… - nunca mentiste?... Pois mente agora para salvar a honra de tua filha, para que lhe não tirem o nome de seu pai. / […] Não queres? Tu também não, meu pai? – Não querem. […]”. Maria desafia as normas dominantes ao pedir aos pais que mintam e afirma não se importar com «o outro» (D. João de Portugal), que veio dizer que ela era “filha do crime e do pecado”, o que mostra que, para si, a família tem um valor superior aos valores sociais e religiosos.

▪ Maria não se considera “filha do crime e do pecado”, por isso não se conforma e não aceita a sua ilegitimidade, e acusa as pessoas de a julgarem e de a impedirem de ser feliz por causa da sua ilegitimidade.

▪ O objetivo final de Maria é demover os pais da resolução de tomar o hábito (“levantai-vos, vinde”).

▪ No seu discurso, Maria volta a referir-se aos sonhos e visões que a mantinham acordada e não deixavam dormir: o anjo que surgia com uma espada em chamas na mão e a atravessava entre ela e a mãe. Essa espada constituía um presságio que remetia para a separação da família (o atravessar a espada entre ambas) e a sua destruição (o facto de a espada estar em chamas).

▪ A sua fala final anuncia a sua morte (“E eu hei de morrer assim…”) e a entrada em cena do Romeiro (“e ele vem aí…”).

▪ Com este discurso, Almeida Garrett pretende suscitar a piedade (éleos) do leitor/espectador relativamente a Maria, uma vítima inocente das normas sociais e religiosas.

▪ Para Maria, o Romeiro-D. João de Portugal é o “homem do outro mundo”, isto é, alguém considerado morto e agora ressuscitado para atormentar e trazer a desgraça; por outro lado, é o homem do outro mundo, ou seja, de outra família, anterior à ilegal construção da sua, o qual tem direitos e os reivindica nesta hora fatal. Sucede que essas duas realidades nunca poderiam coocorrer: D. Madalena não poderia ser, face à lei de Deus e à dos homens, esposa legítima de dois lares em simultâneo.

Análise da Cena 10 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. Madalena e Manuel de Sousa preparam-se para tomar o hábito. Por causa disso, o espaço da ação muda, passando esta a decorrer na igreja de S. Paulo.


Didascália inicial

▪ Espaço:
- igreja de S. Paulo, um espaço solene;
- é neste espaço que vai ocorrer a cerimónia da tomada de hábito, a qual implica o abandono dos bens terrenos por parte de Manuel de Sousa e D. Madalena, incluindo a própria filha, o que lhe confere um caráter trágico.

▪ Elementos do cenário – predominantemente religiosos:
- o coro
- o altar-mor
-dois escapulários dominicanos
- o órgão

▪ Personagens:
- os frades que constituem o coro
- o Prior de Benfica
- Manuel de Sousa
- o Arcebispo
- os clérigos
- Jorge
- Madalena

▪ Ambiente: as personagens estão envolvidas numa cerimónia religiosa; Manuel de Sousa e D. Madalena estão ajoelhados e de hábito vestido para professarem.


Manuel de Sousa, ao adotar o hábito, muda o nome para Frei Luís de Sousa, o qual dá o título à obra. Esta mudança de nome constitui a morte simbólica da personagem: Manuel de Sousa morreu para o mundo e, em seu lugar, surge um novo ser: Frei Luís de Sousa.
A fala do Prior traduz, exatamente, estas ideias: “… pois em tudo quisestes despir o homem velho [0 deixar para trás tudo o que fostes], abandonando também ao mundo o nome que nele tínheis!”. Esta fala quer dizer que Manuel de Sousa Coutinho, ao professar, vai renunciar a mundo, como se morresse, e inicia um novo ciclo, uma nova vida, que passa também pela adoção de um novo nome. O mesmo se pode afirmar a propósito de D. Madalena: “– Sóror Madalena!”.


Função do coro

O coro dos frades testemunha a tomada de hábito de Manuel de Sousa e D. Madalena, uma ocasião de recolhimento e entrega a uma nova vida, transformando-o num momento de grandiosidade.
A recitação litúrgica confirma a decisão de “despir o homem velho” e “morrer” para o mundo.
Note-se que a função tradicional do coro da tragédia clássica de prever os acontecimentos é desempenhada por Telmo Pais.

Análise da Cena 9 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

O assunto desta cena é a tentativa frustrada de D. Madalena de mudar o seu destino e o da sua família, seguida da resignação e aceitação do futuro.


Evolução do estado de espírito de D. Madalena

▪ Inicialmente, D. Madalena mostra-se inconformada com a decisão do marido.

▪ Posteriormente, como não vê saída para a situação, apela a Deus que a ampare, apelo esse que é traduzido pelas palavras do coro: “Fiant aures tuae intendentes; in vocem deprecationis meae” (Que os vossos ouvidos estejam atentos à voz da minha súplica).

▪ No final da cena, parece tomar consciência de que nada há a fazer, resigna-se e conforma-se com o seu destino.

▪ É de notar que a tomada de hábito por parte de D. Madalena não resulta da sua vontade ou de qualquer crença de que aquela é a solução adequada à situação. De facto, ela luta até ao fim pelo seu amor e, só quando se apercebe que Manuel de Sousa já partiu para a cerimónia da tomada de hábito, abdica da sua felicidade e aceita a decisão do segundo marido (“Ele foi?”; “E eu vou.”), colocando o seu destino nas mãos de Deus.

▪ Para D. Madalena, a religião constitui o derradeiro refúgio (“refúgio de infelizes”) para as adversidades da sua vida.

sábado, 18 de janeiro de 2020

"Os peixes grandes comem os pequenos", Bruegel

Tópicos de análise:
a) Descrição do quadro;
b) Simbologia;
c) Crítica;
d) Relação com o Sermão de Santo António.

Pieter Bruegel, o Velho, de origem holandesa, foi o maior pintor flamengo do século XVI, nascido provavelmente em 1525, na cidade de Breda, e falecido a 5 de setembro de 1569, em Bruxelas. Uma das suas obras, “Os peixes grandes comem os pequenos”, é uma pintura a tinta de 22 X 29 cm, datada de 1556, encerra uma alegoria profundamente crítica: note-se que os homens e os peixes se misturam, pelo que a alegoria é dirigida a ambos.
O quadro é dominado por um enorme peixe morto numa margem de um curso de água. O animal está a ser esventrado por dois homens, um deles com uma faca enorme, maior do que ele mesmo, e o outro, suspenso numa escada segurando um tridente. De dentro do grande peixe, saem muitos outros mais pequenos, que aquele engoliu. Pela boca, aberta, saem-lhe vários desses peixes, o que poderá indiciar uma espécie de “indigestão”, resultado do facto de ter comido tantos que teve de os vomitar. Da boca desses peixes engolidos pelo maior saem outros mais pequenos.
Na imagem, observamos diversos homens à pesca, barcos, uma ilhota em segundo plano e o que parece ser uma localidade piscatória bem em fundo, entre outros elementos. Na água, são visíveis também peixes que comem outros mais pequenos. No barco, encontram-se três homens, estando um deles, de faca na boca, com a qual esventrou um peixe grande, a retirar outro mais pequeno do seu interior. Em terra, vislumbramos outros homens, ocupados com diversas tarefas (pendurar peixes numa árvore, pesca, etc.), bem como figuras com pernas humanas e corpo de peixe, simbolizando que estes peixes e os seus vícios são também, ou afinal, praticados pelos seres humanos. No céu, é visível um peixe voador que se precipita, de boca aberta, sobre o grande, o que pode representar a voracidade exagerada destes animais (alegoricamente, dos homens), pelos mais diversos motivos: poder, bens materiais, etc.
A leitura simbólica da imagem sugere que, embora possamos ser predadores, isto é, explorar, dominar, etc.) dos mais fracos, podemos acabar por ser presas de outros mais agressivos ou poderosos.
Se relacionarmos o quadro com o Sermão de Santo António, é possível verificar que existe uma sintonia entre as duas obras, desde logo porque o texto é alegórico e, enquanto tal, representa características do ser humano nos peixes. Tal como estes se comem uns aos outros e os grandes comem os pequenos, também os homens o fazem (ou seja, também os indivíduos se exploram e os mais fortes, os mais fracos), podendo ser predadores dos seus semelhantes, e servir de presas para outros, uma espécie de cadeia alimentar simbólica.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Análise das Cenas 7 e 8 do Ato III de Frei Luís de Sousa


● D. Madalena, acompanhada de Frei Jorge, deseja entrar no compartimento, pois ouviu vozes conversando dentro e, supondo que uma delas é a de Manuel de Sousa, deseja falar com ele. A sua entrada em cena mostra-nos uma mulher «desgrenhada e fora de si, procurando com os olhos todos os recantos da casa», sinal de que quer desesperadamente encontrar Manuel de Sousa e julga que a estão a impedir. D. Madalena “vive” estas duas cenas desesperada e completamente dominada pelos sentimentos, ao gosto romântico, sem controlo sobre as suas emoções, como se pode comprovar através da didascália “(Entrando desgrenhada e fora de si, procurando, com os olhos, todos os recantos da casa)”.


● D. Madalena deseja falar com ele por um motivo claro: tentar remediar a situação, impedir a tomada de hábito. Para tal, argumenta que talvez estejam a agir de forma precipitada, ao acreditarem nas palavras de “um romeiro, um vagabundo… um homem enfim que ninguém conhece”, mas Manuel de Sousa, tratando-a novamente pelo primeiro nome, contraria-a, jurando-lhe que o amor de ambos é impossível. Ele mostra-se decidido a aceitar o seu destino, chamando a atenção de D. Madalena, na cena 8, para a impossibilidade de o mudarem.


● Esta postura diferente de Manuel e Madalena é facilmente justificável: ele conhece toda a verdade, ou seja, que o Romeiro é D. João de Portugal, ao contrário dela, que ainda ignora este facto, e vê a entrada no convento como a única solução digna para a situação. E critica mesmo a esposa e, num tom ríspido e decidido, despede-se dela.


● O tom inicial com que Manuel de Sousa se dirige à esposa é ríspido e frio, tratando-a, de forma formal, por “senhora”, o que a deixa magoada: “Oh, que ar, que tom, que modo esse com que me falas.”. Comovido (“enternecendo-se”), Manuel trata-a então pelo nome próprio, mas logo cai em si e retoma a formalidade e rispidez iniciais.
De facto, ele dirige-se à esposa usando diferentes formas de tratamento:
. formal (“senhora”): atitude de distanciamento;

. familiar (“querida”): atitude de proximidade, de intimidade.


● Esta oscilação das formas de tratamento traduz o contraste entre o amor que Manuel de Sousa sente por D. Madalena (que lhe corresponde) e a dor de não o poder cultivar e marca a despedida emotiva entre ambos.


● Na parte final da cena 7, Telmo procura falar à parte com Frei Jorge (“Tenho que vos dizer, ouvi.”) e os dois “Conversam ambos à parte.”. Embora não saibamos as palavras que trocaram entre si, é fácil deduzir que o velho aio estará a dar seguimento à solicitação de D. João, tentando convencer o frade de que o Romeiro é um impostor. A finalidade é evitar a destruição da família, nomeadamente de Maria.


● Ao constatar que a sua tentativa fracassou, procura fazer o mesmo junto de D. Madalena, mas sem sucesso, visto que Frei Jorge o impede de falar com ela: “Telmo sai com repugnância, e rodeando para ver se chega ao pé de Madalena. Jorge, que o percebe, faz-lhe um sinal imperioso; ele recua, e finalmente se retira pelo fundo.”.


● Por que razão age Frei Jorge assim?
Contrariamente a D. Madalena, o frade sabe que o Romeiro é D. João de Portugal, por isso, enquanto membro do clero, assume a defesa da verdade dos factos, impedindo Telmo de mentir para salvar Maria. Ele não pode aceitar uma mensagem que iria contra as leis de Deus. Na sua perspetiva de religioso, a única solução para a situação será o ingresso na vida monástica. Pelo contrário, se tivesse aceitado a proposta de D. João via Telmo, estaria a ser conivente com uma relação adúltera e bígama. Estando D. João vivo, ali ou na Palestina, o segundo casamento de D. Madalena com Manuel de Sousa era nulo. Eles viviam em pecado e Maria era uma filha ilegítima. Esta situação, agora que a verdade é conhecida, não pode continuar.


● A cena 8, na sequência da anterior, confirma as atitudes contrastantes de Manuel e de D. Madalena:
- Madalena: crê que é possível recuperar a sua família e que a mensagem do Romeiro não passou de um embuste (cena 7);
- Manuel: não vê salvação e, decidido, enfrenta a vida religiosa.


● As didascálias ajudam a evidenciar o estado de espírito e a postura de Manuel de Sousa [“(Caindo em si e gravemente)”, “(Tomando os hábitos de cima do banco.)”, “(Vai para a abraçar e recua)”, “(Foge precipitadamente pela porta da esquerda)”]: racional e determinado, pega nos hábitos que vai usar juntamente com D. Madalena, recusa abraçá-la e sai rapidamente para evitar mais sofrimento.


● A fala final de Manuel de Sousa da cena 8 está prenhe de expressões que associam a decisão tomada a uma morte simbólica: “Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca), e a sepultura de um claustro.”. A referência aos condes de Vimioso é significativa neste contexto.

Análise da Cena 6 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

D. João de Portugal sai de cena, numa atitude de grande dignidade, depois de confirmar que D. Madalena já não o ama.


● A cena abre com novo equívoco: D. João, ao ouvir D. Madalena chamar por seu marido (“Esposo, esposo!”) e pensando que a esposa já sabe quem ele realmente é, julga por instantes que ela se refere a si e sente-se tentado a abrir-lhe a porta, como ela pedia. Por momentos, a ilusão do amor toma conta de D. João e o que solicitara a Telmo parecer ser esquecido (“É ela que me chama! Santo Deus! Madalena que chama por mim…”; “Que encanto, que sedução! Como lhe hei de resistir?!”), mas rapidamente toma consciência que a esposa se referia a Manuel de Sousa.
Seja como for, é mais do que óbvio que D. João ama a esposa e, mesmo que por momentos, estaria disposto a abandonar todas as resoluções se ela lhe correspondesse.


● Quando se apercebe do equívoco (quando ela nomeia “Manuel”, chamando-lhe “meu amor”), D. João fica furioso e dirige-se para a porta, para se vingar de D. Madalena, provocando-lhe um choque profundo (“Investe para a porta com ímpeto; mas para de repente.”). No entanto, reconsidera e mantém a decisão que anunciara a Telmo, saindo violentamente da cena (sinal da sua deceção), o que confirma que se trata de um homem digno, íntegro, generoso, abnegado e virtuoso. Esta saída intempestiva da sala mostra também o quão solitário é e frustrado se sente: “Ah! E eu tão cego que já tomava para mim!...”.


● Tendo em conta a sua postura, o seu comportamento e atitudes desde que entrou em cena, podemos concluir que, quanto à caracterização, D. João de Portugal:
» simboliza as virtudes do cavaleiro cristão: amor ao rei e à pátria, combate contra os inimigos da fé, pelos quais expõe a sua vida, sujeitando-se a maus-tratos, privações, distância, ausência de notícias e saudade da esposa durante mais de 2º anos;
» revela grande generosidade e grandeza de alma e caráter ao querer preservar a honra de D. Madalena, optando, não obstante a sua dor, frustração e mágoa pela perda da esposa, passar por impostor, mentiroso, apagando-se voluntariamente, para tentar remediar o problema que o ser regresso gerou e preservar a família da destruição.

domingo, 12 de janeiro de 2020

Análise da Cena 5 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

A anagnórise cumpre nova etapa: Telmo Pais conhece a identidade do Romeiro.
Nesta cena, dá-se o tão esperado encontro entre Telmo e D. João, o qual confirma que o amor por este foi suplantado pelo amor a Maria. Por outro lado, nela assistimos ao arrependimento do Romeiro/D. João e ao pedido ao velho aio para que reverta a situação criada.


● A cena abre com um equívoco, técnica que Garrett utilizou mais do que uma vez na peça: o Romeiro pensa que a prece de Telmo se dirige a si, quando, na verdade, o motivo da preocupação do velho criado era Maria, o que é confirmado pelo aparte: «Já não sei pedir senão pela outra.».


● O que permite o reconhecimento de D. João de Portugal é a voz e, posteriormente, o rosto: «Que voz!»; «Esta voz… esta voz!»; «oh! é o meu filho todo: a voz, o rosto…». De facto, assim que o Romeiro entra em cena, Telmo encontra algo de estranho na sua voz, algo que lhe faz lembrar, nas inflexões, no timbre, uma voz familiar e conhecida.


● Entre as duas personagens existe uma relação paternal, de amizade e de lealdade. Durante o diálogo entre ambos, D. João duvida que essa relação se mantenha após tantos anos de ausência: «E contudo, vinte anos de ausência, e de conversação de novos amigos, fazem esquecer tanto os velhos!...». De facto, com a decorrência do diálogo, D. João vai-se apercebendo, gradualmente, do conflito com que o velho aio se debate. Começa por manifestar algumas dúvidas sobre se a longa ausência não alterou em nada o amor de Telmo e compreende, finalmente, a dimensão desse conflito no momento em que o criado lhe fala de Maria.


● No início da cena, Telmo faz uma pergunta idêntica à que Frei Jorge fizera ao Romeiro e a resposta, para além dos gestos com que descobre o rosto, é semelhante, só que dada de forma muito mais sentida, parecendo bem mais melindrado do que aquando do encontro com D. Madalena. A repetição do pronome indefinido «ninguém» e a razão que apresenta para a sua utilização («se nem já tu me conheces!») evidenciam os seus sentimentos (perplexidade, tristeza, dor, mágoa…) e a sensação de anulação, motivada pelo esquecimento a que foi votado por todos os que lhe eram queridos, incluindo agora também a dúvida sobre o velho criado.


● No final, D. João de Portugal reconhece o quão imprudente, injusto e cruel foi: «Fui imprudente, fui injusto, fui duro e cruel.». E reconhece também a sua anulação: ninguém queria o seu regresso, exceto Telmo e mesmo este mudou de comportamento neste ato, ninguém desejava sequer que estivesse vivo, todos contavam com a sua morte e sobre ela foram construídos um amor e uma família. A partir desse momento, D. João de Portugal não existe, é ninguém: «Na hora em que ela creditou na minha morte, nessa hora morri. Com a mão que deu a outro riscou-me do número dos vivos.».


● Note-se que Telmo tinha razão com a sua superstição segundo a qual D. João de Portugal iria regressar e cumprir a promessa feita na carta enviada a D. Madalena na véspera da batalha de Alcácer Quibir: primeiro, visitaria a esposa e, depois, não se iria sem «aparecer ao seu velho aio». Com efeito, a primeira visita foi, efetivamente, para D. Madalena e a segunda para o velho aio.


● A atitude do Romeiro foi-se alterando desde o momento da sua chegada até esta cena. De facto, quando fez a sua aparição diante da esposa, estava profundamente magoado e dominado por instintos de vingança por D. Madalena ter refeito a sua vida com outro homem, construindo a sua felicidade sobre a sua morte, o que Telmo considera injusto. Depois de o velho aio ter confirmado as diligências da esposa, bem como a sua virtude e honra, revela-lhe a sua resolução e pede-lhe que a cumpra: o Romeiro era um impostor e tudo não passara de um embuste. De seguida, desaparecerá para sempre e salvará a nova família de D. Madalena: sabedor de que havia uma filha na equação, sentiu-se responsável pelo «mal feito».


● O objetivo do Romeiro ao procurar o seu velho criado é simples: aferir a verdade do que ouvira sobre o seu desaparecimento e o comportamento de D. Madalena, isto é, que fizera todos os esforços para saber notícias e para encontrar o primeiro marido após a batalha de Alcácer Quibir. E fê-lo junto de Telmo, porque era o único em quem confiava e que era seu amigo.


● Confirmada a verdade, D. João expõe a sua decisão: pede a Telmo que minta e diga que o Romeiro era um embuste, para poder reparar o mal infligido à atual família de D. Madalena. Mostra-se assim disposto a abdicar da sua própria existência, a anular-se enquanto D. João de Portugal, para impedir a destruição daquela família. D. João de Portugal revela, deste modo, um extraordinário espírito de abnegação, o que mostra que é uma personagem exemplar.


● No entanto, Telmo não acata o pedido e, apesar de reconhecer a nobreza do gesto e o caráter de D. João, questiona a possibilidade de se reverter a situação, mostrando, assim, a sua crença na inexorabilidade do Destino e o momento trágico vivido por todos. Note-se que Telmo seria a única pessoa que poderia levar a cabo tal proposição, já que ninguém conhecia melhor D. João do que ele e ansiava pelo seu regresso, o que lhe conferia toda a credibilidade para fazer passar o embuste como credível junto das outras personagens. Seja como for, nada disto poderia resolver o conflito do aio, visto que viveria sempre com o remorso de ter renegado o velho amo, «um filho».


● Os apartes de Telmo adquirem grande relevância neste passo da obra, pois revelam todo o drama vivido por Telmo: o conflito interior entre o amor a Maria e o amor a D. João e a conclusão de que aquele superou este. Como não o consegue revelar diretamente ao seu primeiro amo, fá-lo através dos apartes, que revelam igualmente os seus sentimentos e emoções.


● Esta cena confirma o que a anterior deixava adivinhar: a transformação psicológica sofrida por Telmo.
De facto, o velho criado, depois de ter desejado e alimentado o regresso do antigo amo durante 21 anos, apercebe-se de que, afinal, já não o deseja, uma vez que tal implicaria que Maria passasse a ser filha ilegítima e, por outro lado, constata que o amor pela filha de Manuel de Sousa e D. Madalena superou o que sentia por D. João.
Depois de este último se ter certificado de que a esposa não se poupara a esforços para o encontrar, decide pedir a Telmo que minta, que diga que o Romeiro é um impostor e o velho escudeiro sente-se tentado a acatar o pedido, apenas para salvar Maria, que também considera sua filha.
Deste modo, pode concluir-se que, ao longo da peça, Telmo se humaniza, pois deixou de ser a figura inflexível e atormentadora de D. Madalena a que fomos apresentados no ato I, para passar a ser alguém angustiado e dilacerado por um conflito interior que o consome, acabando por abdicar dos seus princípios por amor a Maria.


A figura de D. João de Portugal em Frei Luís de Sousa

De acordo com Luís de Amaro Oliveira (Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, p. 162):

A. D. João de Portugal é uma entidade dupla:

1 – É uma entidade abstrata (desde o começo até à cena 15 do segundo ato), porque
a) até ao fim do II ato, não tem senão uma existência física provável (é a simples representação de um indivíduo dado como morto);
b) não tem uma existência moral individualizada até aos fins do mesmo ato (é um simples vago de Fatalidade e de Destino – vestígio literário da vontade superior dos deuses da tragédia grega).

2 – É uma entidade concreta (desde a cena 15 do segundo ato até ao fim da peça), porque
a) a partir dos fins ao ato II, surge na figura do Romeiro;
b) procura interferir voluntariamente na ação dramática, esforçando-se por impedir a tomada de hábito de Madalena.

B. D. João de Portugal não é, em rigor, uma personagem real, no sentido dramático e vivo da palavra:

1 – Não é uma personagem real como entidade abstrata, porque não atua direta e voluntariamente na ação dramática. Não é ele quem vem, são os outros quem o traz ao conflito. Mas, como fonte de toda a energia dramática da peça, está quase permanentemente em cena. E permanece através:
a) das evocações angustiosas de Madalena;
b) das convicções, sempre renovadas, de Telmo no seu regresso;
c) do sebastianismo de Maria (se D. Sebastião pode regressar, porque não D. João?) (II, 1);
d) das intuições de Frei Jorge e Manuel de Sousa (II, 9);
e) da crença nos agouros e sinas (II, 1), nas revelações dos sonhos (III, 11), nas almas penadas (I, 1).

2 – Não é uma personagem real como entidade concreta, porque, embora atuando direta e voluntariamente, a sua atuação carece de força e de intenção. É como se toda a natureza simbólica de que viveu nos dois primeiros atos extravasasse e o tivesse esvaziado de autenticidade humana. A simples prova da sua existência é suficiente para o desenlace.
De facto:
- Quem pensa mais seriamente no destino do Romeiro após a sua identificação?
- Quem adere em profundidade ao seu drama de prisioneiro, de marido ultrajado, de amigo esquecido?
- Quem acredita na eficácia das suas tentativas de solução da crise?

C. D. João de Portugal é uma personagem virtual

D. João é a presença simbólica de uma «força trágica» permanente que atua sobre as personagens reais, exacerbando-lhes as paixões, avolumando o clima patético através de situações psicológicas progressivamente tensas até ao desfecho.

Análise da Cena 4 do Ato III de Frei Luís de Sousa

Assunto

Nesta cena, Telmo, num monólogo em forma de solilóquio, expressa em voz alta as suas preocupações, as suas dúvidas, em suma, o seu dilema.


Elementos da cena

Segundo Carlos Reis (Frei Luís de Sousa, Leituras Orientadas, pp. 80-81, Porto Editora), neste monólogo «estão concentrados dois sentidos, que dizem respeito a um drama interior vivido por Telmo:
. O sentido da fidelidade ao antigo amo, uma fidelidade que agora está em crise.
. O sentido da culpa pelo facto de a fidelidade ao passado ter sido perturbada: o afeto sentido por Maria foi mais forte.
Para além disso, as palavras de Telmo confirmam os presságios e as ameaças: ou seja: quem por várias vezes, no primeiro ato (sobretudo na cena 2), expressou a crença de que o passado não estava morto, confirma agora, pela chegada do romeiro, que os presságios estavam certos. Convém lembrar; neste momento Telmo ainda não sabe que o romeiro é o próprio D. João de Portugal, seu antigo amo.».


Conflito interior de Telmo

Telmo Pais sempre desejou o regresso de D. João de Portugal e sempre acreditou que estaria vivo e iria, efetivamente, regressar. Porém, agora que sabe que está vivo é confrontado com um dilema terrível: o amor a Maria versus o amor a D. João.
No momento em que o sonho alimentado durante 21 anos (a vida e o regresso de D. João, que ele criou como um filho) está prestes a concretizar-se, Telmo não se sente feliz, pois apercebe-se de que vive um conflito insanável, já que tem dois filhos, mas, para um existir, o outro tem de desaparecer: «Virou-se-me a alma toda com isto: não sou já o mesmo homem.». Além disso, conclui que o amor por Maria superou («apagou») o que dedicava ao antigo amo, por isso fica amargurado com a possibilidade de ela morrer em resultado dos recentes acontecimentos. A jovem é um anjo que não merece tanto sofrimento. E tudo isto o deixa dividido, confuso e aterrado.
Com efeito, Telmo já não é o mesmo homem, dado que já não tem a certeza de desejar o regresso do primeiro amo e dado que o amor por este foi suplantado pelo amor por Maria.
Na parte da final da cena, Telmo oferece a sua vida em sacrifício em troca da de Maria, pois pressente a morte próxima desta: «Levai o velho que já não presta para nada, levai-o, por quem sois!».

Estilisticamente, o conflito de Telmo é traduzido pelo recurso às reticências e frases interrompidas, as quais traduzem fielmente a dificuldade que a personagem tem em concluir os seus pensamentos, que se cruzam, atropelam e precipitam. Por outro lado, as exclamações refletem a sua emotividade, enquanto as interrogações traduzem as suas dúvidas.
Relativamente à adjetivação, possuem uma carga profundamente negativa (“aterrado”, “confuso”, “terrível”), traduzindo o estado de espírito de Telmo e a sua lancinante divisão interior. Nota também para determinadas expressões que exprimem, igualmente, o conflito, a dor e a angústia da personagem: «Virou-se-me a alma toda»; «Perdoe-me Deus se é pecado», etc.
O uso do diminutivo “inocentinho” reflete o carinho e o amor de Telmo por Maria, mas, por outro lado, evidencia a fragilidade desta.


Personagens e linguagem dramática

Citando novamente Carlos Reis (op. cit.), «Embora esteja só em cena, Telmo parece acompanhado por duas figuras ausentes:
. Maria, esta “última filha” (II. 10-11), “aquele anjo” (ll. 12-13) que ocupou o lugar que antes pertencia a D. João. Maria é filha, evidentemente, apenas no sentido afetivo.
. D. João de Portugal, o “filho que eu criei nestes braços” (l. 6), assim considerado no mesmo sentido afetivo.
Estas duas personagens são a razão do dilema de Telmo, como se nele existissem duas personalidades em conflito: uma que está ligada ao passado, outra que está situada no presente.
Pela intensidade daquele dilema (que não atinge nenhuma outra personagem do Frei Luís de Sousa), Telmo já foi considerado a personagem principal da ação. O seu comportamento, nesta cena, apresenta, além disso, uma forte teatralidade, criada por recursos de linguagem dramática:
. Toda a fala de Telmo revela as emoções que ele expressa através de exclamações, reticências e interrogações.
. Junta-se a isto a linguagem do corpo, quando Telmo se ajoelha.
. Em certo momento, a personagem dirige-se a Deus e transforma o monólogo em diálogo com essa divindade invisível.
A cena termina com uma situação tipicamente teatral. Telmo não vê que o romeiro entra em cena; ao falar no ser “inocentinho que eu criei para Vós, Senhor” (ll. 18-19), ele é entendido pelo romeiro como estando a referir-se a D. João, É isso que se percebe logo na abertura da cena seguinte: “Não pedias tu por teu desgraçado amo, pelo filho que criaste?”, pergunta o romeiro a Telmo. A resposta confirma o engano e deixa o romeiro/D. João de Portugal consciente de que todos o abandonaram.».

Didascália inicial do ato III de Frei Luís de Sousa


NOTAS:

1.ª) Se compararmos o espaço onde decorrem os três atos, constatamos que há um afunilamento progressivo desse mesmo espaço. Com efeito, no ato I, a câmara onde a ação decorre tem duas grandes janelas para o exterior e duas portas desimpedidas. Já o segundo ato decorre num espaço fechados, sem janelas e com portas cobertas de reposteiros, ocupando lugar de destaque uma tribuna que comunica com a Capela da Senhora da Piedade, da igreja de São Paulo dos Domínicos. Por último, o ato III decorre num espaço ainda mais fechado (o piso inferior do palácio de D. João), cuja única porta de comunicação para o exterior dá para a tal capela.

2.ª) O espaço em que decorre o último ato é um casarão sombrio, decorado apenas com objetos litúrgicos, associados às cerimónias religiosas, em especial à Semana Santa, e com ligação direta à capela (onde decorrerá a tomada de hábito e se concretizará a morte de Maria), configurando um afunilamento/concentração do espaço ao longo da peça.

3.ª) O espaço descrito simboliza a clausura e o aprisionamento das personagens; por outro lado, trata-se de um local que sugere desconforto, frieza, tristeza.

4.ª) A nota sobre o tempo coloca a ação a decorrer quando é alta noite, o que, à semelhança do espaço, permite concluir pelo afunilamento desta categoria do texto dramático, o qual é intencional. Os antecedentes da ação, que abarcam um longo período de 21 anos, são apenas evocados nas falas das personagens, ocupando a intriga propriamente dita apenas uma semana. O segundo e o terceiro atos sucedem num dia, o que confirma que estamos perante uma forte concentração temporal.tt

5.ª) Por outro lado, simbolicamente, a noite está associada à morte, o que se pode relacionar com o facto de todos os elementos da família morrerem no final da peça: Manuel de Sousa e D. Madalena morrem para a vida, isto é, morrem psicologicamente, e Maria morre fisicamente. No entanto, se considerarmos que a alta noite antecede a manhã de um novo dia, a noite alta representa simbolicamente a possibilidade de redenção dos pecados através do renascimento e da purificação proporcionados pela religião, mais concretamente pela tomada de hábito (estaríamos, assim, na presença do processo de morte seguida de ressurreição, ideia prenunciada pelos elementos do cenário que remetem para a Semana Santa).

6.ª) A luminosidade do ambiente é escassa. Mergulhado na penumbra, o cenário, apenas iluminado por «tocheiras», «tocha acesa e já gasta», «vela acesa», propicia uma introspecção profunda onde tudo indicia a “entrada” para a vida religiosa, para a Ordem dos Dominicanos, ideia acentuada pela presença das «alfaias e guisamentos de igreja» e pelo hábito.

7.ª) A cruz negra com o letreiro, aliadas aos restantes elementos ligados à vida religiosa, simboliza que alguém passará por sofrimento, sacrifício, martírio e morte para a vida mundana.

8.ª) O jogo penumbra / luz e o ambiente secreto, intimista, de intenso recolhimento possibilitam o encontro do «eu» com os mais recônditos lugares do seu espaço interior.

9.ª) A obra não obedece à unidade de espaço, pois decorre em lugares diferentes, embora todos os acontecimentos decorram em Almada.

10.ª) O espaço ganha uma dimensão trágica, pois fecha-se gradualmente, não possibilitando a saída das personagens para a dimensão física da vida.
A progressiva escassez de elementos decorativos e de luminosidade adensam a atmosfera trágica que culminará na catástrofe.

11.ª) O espaço, despojado (não há elementos de decoração, os adereços e o mobiliário são reduzidos ao mínimo), tumular, prenuncia o fim das inquietações terrestres e a entrega à espiritualidade. Os bens e os valores materiais e mundanos são abandonados. Predominam os adereços necessários à realização de cerimónias religiosas: tocheiras, cruzes, círios e outras alfaias e guisamentos de igreja, etc.). Todos estes elementos se adequam ao desenrolar do terceiro ato, dado que Manuel de Sousa e D. Madalena vão professar como forma de expiar a sua culpa.

12.ª) O facto de a ação decorrer de madrugada, de acordo com os princípios românticos, contribui para adensar a atmosfera funesta.

13.ª) Não há qualquer ligação ao exterior. As saídas dão unicamente para a capela e para os baixos do palácio de D. João.

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